Um enorme escândalo de escutas telefônicas clandestinas vem incentivando uma ampla reavaliação entre liberdade de imprensa e privacidade na Grã-Bretanha, enquanto a França se vê às voltas com as consequências de sua tradição de proteger os poderosos. Caso Dominique Strauss-Kahn consiga livrar-se do caso de assédio sexual contra ele em Nova York, agora que parece esfriar, erá o público francês o direito – ou mesmo o apetite – de saber mais do que aquilo que emergiu dos tribunais norte-americanos? E se as pessoas menos exaltadas acharem que seus segredos deveriam ser protegidos na Grã-Bretanha, como se defenderiam de jornalistas inescrupulosos violando suas conversas telefônicas mais íntimas?
As perguntas enfatizam os contrastes entre culturas que, no passado, fizeram da Grã-Bretanha um templo para revelações estridentes e da França um abrigo para sussurros discretos. Em ambos os países, o debate chegou ao que parece ser um ponto de extravasamento.
Em Londres, um tabloide, News of the World, foi acusado de escutas clandestinas dos celulares de uma menina sequestrada e assassinada, dos parentes de pessoas que morreram quando explodiram bombas em Londres em 2005 e, possivelmente, de famílias de soldados britânicos mortos no Iraque e no Afeganistão. A indignação pública foi tamanha que, na sexta-feira (8/7), o primeiro-ministro David Cameron, encurralado, se viu obrigado a pedir dois inquéritos – um sobre o próprio escândalo das escutas clandestinas e o outro sobre o comportamento irresponsável da imprensa britânica. Numa entrevista coletiva, Cameron insistiu que a tradição da imprensa britânica de autorregulação tinha falhado. “Acredito que precisamos de um sistema inteiramente novo”, disse, provocando rumorosos protestos entre jornalistas britânicos – que vêm há muito resistindo às restrições estatutárias a suas liberdades – e argumentando que a imprensa tem condições de policiar suas próprias questões.
“Imprensa não está acima da lei”
“Enquanto político, David Cameron talvez possa ser perdoado por tentar se livrar da culpa”, disse o colunista Stephen Glover no jornal conservador The Daily Mail. “Mas não se pode permitir-lhe que obstrua uma imprensa livre.”
No entanto, a amplitude das regras continua carregada de ambiguidade, definida por duas cláusulas aparentemente contraditórias da Convenção Europeia de Direitos Humanos: uma defende o direito à privacidade; a outra, o direito à liberdade de expressão. Nos últimos meses, essa lacuna legal foi preenchida por decisões judiciais favoráveis a celebridades que procuravam manter suas vidas privadas na intimidade. Mas Cameron apontou dificuldades. “É uma situação curiosa, quando juízes definem a lei, ao invés do Parlamento”, disse ele este ano.
Na sexta-feira (8/7), o primeiro-ministro foi muito mais longe ao defender, não apenas uma nova forma de regulação da imprensa, mas o fim de uma relação promíscua entre as organizações jornalísticas – que são vistas como exercendo enorme influência – e políticos, desesperados para controlar o apoio da imprensa para fins eleitorais. “É claro que é vital que nossa imprensa seja livre”, disse Cameron. “É um componente essencial à nossa democracia e ao nosso modo de vida. Mas liberdade de imprensa não significa que a imprensa esteja acima da lei. É vital que a imprensa possa questionar o poder, mas é igualmente importante que aqueles que estão no poder possam questionar a imprensa.”
“A mais séria crise das últimas gerações”
A França – assim como grande parte da Europa continental – optou, há muito tempo, por uma atitude menos extravagante no que se refere a questões de privacidade, ao oferecer aos poderosos um tipo de proteção que seria inimaginável na Grã-Bretanha ou nos Estados Unidos. Os políticos franceses têm conseguido se preservar por trás de algumas das mais restritas leis de privacidade da Europa, protegidas pelo que é quase um código de silêncio sobre transgressões dos poderosos. A atividade sexual, entre políticos, na realidade ainda é vista como um sinal de vigor, ao invés de uma causa para preocupação moral.
A reputação sexual de Dominique Strauss-Kahn, por exemplo, era do conhecimento de muitos jornalistas, mas raramente divulgada. A amplitude desse conhecimento só emergiu quando ele foi preso em Nova York no mês de maio e acusado de tentar estuprar uma camareira no hotel Sofitel, em Manhattan. Posteriormente, na semana passada, a escritora Tristane Banon, de 32 anos, deu entrada a uma queixa-crime na qual acusa Strauss-Kahn de ter tentado estuprá-la há oito anos – acusação que Strauss-Kahn descarta como “imaginária”.
Na França e na Grã-Bretanha, os últimos dias e semanas mostraram ambos os modelos jornalísticos levados ao ponto do fracasso, deixando aos jornalistas de ambos os países a definição do papel que deveriam desempenhar. Essa manifestação, segundo Alan Rusbridger, editor do jornal londrino The Guardian – que saiu na dianteira ao expor o escândalo das escutas clandestinas – representa “a mais séria crise das duas ou três últimas gerações”. E, como disse o escritor Christophe Deloire em Paris, “se amanhã os franceses, leitores e eleitores, nos voltarem a acusar de termos guardado segredos entre nós, de termos aceitado padrões diferentes para os ricos e para os humildes, o que lhes iremos dizer? Nossa ambição deveria ser a de dizer apenas a verdade – mas toda a verdade”.
Jornalistas sob vigilância?
De certa forma, o mal-estar em ambos os países representa a conclusão lógica de antigas e contraditórias definições de tolerância. Só quando o News of the World foi acusado, na Grã-Bretanha, de grampear telefones de pessoas comuns em seus momentos de dor, é que estourou a raiva pública. Na França, o espetáculo de da queda de um único homem poderoso provocou um debate igualmente apaixonado. Porém, quando os promotores revelaram dúvidas sobre a credibilidade da acusadora de Strauss-Kahn em Nova York, muitos de seus aliados da elite parisiense – em especial, homens – já começaram a falar em seu retorno à política. Antes do episódio do hotel Sofitel, Strauss-Kahn eram amplamente considerado como o mais provável desafiante do Partido Socialista para a eleição presidencial do ano que vem.
E aí surge a questão: seria a França tão magnânima em relação às aventuras sexuais dos poderosos que Dominique Strauss-Kahn, ex-diretor administrativo do Fundo Monetário Internacional, de modo a permitir um retorno à vida pública sem um relato dos acontecimentos que seus advogados dizem não ter envolvido força ou comportamento criminoso? Alguns jornalistas dizem que o caso quebrará – ou deveria quebrar – a redoma de silêncio. “Mais do que nunca, a regra do jornalismo deveria ser falar”, escreveu o blogueiro Jean Quatremer, “e a exceção seria ficar em silêncio.”
Mas ainda há algum ceticismo sobre se a cultura deverá mudar na França tanto quanto procura fazer David Cameron na Grã-Bretanha. “Os jornalistas darão um pouco mais de atenção às vidas privadas” de celebridades, disse Lucas Delattre, escritor e ex-correspondente do jornal Le Monde, “mas não muito.”
Na Grã-Bretanha, talvez os jornalistas concluam que aqueles que defendem o direito de chamar a elite a prestar contas poderão, em pouco tempo, enfrentar eles próprios a mesma vigilância.
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[Alan Cowell é jornalista do New York Times, em Paris]