Tuesday, 24 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Escritor acusado de dedo-duro

A revista Respekt se negou a fazer um pedido formal de desculpas conforme havia solicitado o escritor Milan Kundera, acusado de ser informante do governo comunista da então Tchecoslováquia num artigo (o link é para a versão em inglês do artigo publicado pela Respekt) onde foram reproduzidos documentos encontrados no arquivo da polícia secreta, a temida STB.

Kundera afirma que os documentos são falsos, mas a revista mantém a versão do historiador Adam Hradilek, um investigador do Instituto para Estudos sobre Regimes Totalitários que assinou o artigo junto com o jornalista Petr Tresnak. Hradilek descobriu o documento, redigido em 1950, ao pesquisar os arquivos do Instituto de História Militar, em Praga, um órgão privado de tendência conservadora.

Os editores de Respekt alegam que o instituto confirmou a autenticidade do documento onde se afirma que Kundera, então militante do Partido Comunista tcheco, denunciou Miroslav Dvoracek, um opositor do governo da época que foi preso e condenado a 14 anos de prisão. Dizem também que tentaram entrevistar Kundera por telefone antes da publicação do artigo, mas ele se recusou a falar.

Informações incômodas

A polêmica sobre a suposta colaboração do escritor Milan Kundera com a polícia secreta do governo comunista da Tchecoslováquia já sumiu das páginas dos jornais mas continua inflamada na internet, como mais de 4.700 textos e comentários publicados em blogs do mundo inteiro, nos últimos 30 dias, segundo o sistema de buscas Google Blog Search.

As dúvidas sobre a conduta de Kundera, há mais de cinqüenta anos, talvez não sejam esclarecidas rapidamente porque o escritor leva uma vida reclusa em Paris e se nega a ter contato com a imprensa. Do outro lado, tanto a revista como as instituições tchecas envolvidas na denúncia têm uma notória posição anticomunista e nunca perdoaram Kundera de por ter ingressado no PC tcheco, embora o escritor tenha rompido com o partido nos anos 1970.

A personalidade controvertida de um autor best-seller e os mistérios de um arquivo recheado de informações incômodas sobre centenas de pessoas são um prato feito para publicações especializadas em fofocas, em especial, tanto na imprensa convencional como na internet. Principalmente levando em conta que os principais protagonistas do caso, com exceção de Kundera, estão mortos ou sofrem de deficiências mentais.

Arquivos digitalizados

O ‘assassinato de reputações’ tornou-se um recurso corriqueiro no mundo midiatizado em que vivemos e ganhou escala planetária graças ao fenômeno da internet. Hoje, estamos diante de uma situação em que, por um lado, a tecnologia dificulta enormemente o controle dos boatos, e por outro, a imprensa não consegue mais ‘filtrar’ os fatos como antigamente.

Antes de Milan Kundera, outro escritor famoso já teve seus problemas com os catadores de lixo histórico. O alemão Gunther Grass, prêmio Nobel de Literatura de 1999, foi obrigado a pedir desculpas em 2006, depois da publicação pela revista Der Spiegel de documentos capturados pelo exército americano nos quais o escritor era descrito como membro da SS, o serviço secreto nazista.

Como os arquivos do passado estão sendo digitalizados rapidamente, fica muito fácil descobrir áreas cinzentas no currículo de pessoas com grande visibilidade pública. O próprio Google faz isso, mostrando como a questão da privacidade já não pode mais ser avaliada por parâmetros anteriores à internet.

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Jornalista, editor do blog Código Aberto