Wednesday, 13 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

Escritor ‘etc.’ não vai à feira

A Festa Literária Internacional de Parati (Flip) é um acontecimento louvável. Na esteira de eventos semelhantes, como a Feira do Livro de Porto Alegre, as Jornadas de Literatura de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, e a Feira Nacional de Ribeirão Preto, em São Paulo, cumpre função decisiva: ao aproximar o público dos escritores, aproxima os leitores dos livros. Se fizesse somente isso já estaria de bom tamanho. Mas faz muito mais.

Seus organizadores, porém, estão dando alguns tropeços perfeitamente evitáveis, se fossem mais cuidadosos e dessem o devido respeito a quem os faz por merecer. Os ofendidos podem consolar-se com Camões, que, como é infelizmente normal na vida de muitos escritores, morreu pobre e esquecido. Tratando de outros temas, fez estes belos versos:

‘melhor é merecê-los sem os ter/ que possui-los sem os merecer’.

O escritor João Ubaldo Ribeiro reclamou com razão e seu desabafo foi parar na Veja que está nas bancas: ‘A divulgação só promovia autores da Companhia das Letras’, disse ele, acrescentando que seu nome nunca era citado. ‘Fui diminuído à condição de etc.’

O repórter Jerônimo Teixeira aproveitou a pauta e fez um artigo que estende e aprofunda o que se passa com a Flip. Bafejada pela mídia de forma evidentemente exagerada em sua primeira edição, ano passado, anuncia para este ano, de 7 a 11 de julho, a vinda de 21 escritores brasileiros e 16 estrangeiros. Pode-se prever um convívio frutuoso e agradável para esta segunda edição. Mas está antecedido de uma confusão que precisa ser esclarecida.

Única opção

‘Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras, preferiu não comentar o episódio’, escreve Veja. Bem, não se pode obrigar alguém a falar, seria atitude fascista. Mais autoritário do que proibir a expressão é torná-la compulsória. Isto, porém, não tira o direito de os leitores interpretarem o silêncio do editor.

Schwarcz fez boa aprendizagem como editor na Brasiliense. Ao deixá-la para fundar a Companhia das Letras, começou publicando apenas autores estrangeiros, foi criticado na imprensa por opção tão estranha para um editor brasileiro, inclusive pelo signatário em artigos no Estado de S.Paulo, e respondeu às críticas também pela imprensa. A discussão atendeu aos interesses do público, principalmente dos habitantes da Galáxia Gutenberg, entre nós ainda muito raros, e o editor mudou, passando a dar atenção também a escritores nacionais.

Seu catálogo está hoje repleto de obras indispensáveis, entre as quais a do Prêmio Nobel José Saramago e a de Rubem Fonseca. Outros autores, igualmente importantes, depois de publicados pela Companhia das Letras, mudaram de casa. A imprensa poderia pautá-los. Não para fofocas editoriais, sempre lamentáveis, mas para esclarecer o distinto público a respeito de questões que fazem por merecer mais transparência.

Até hoje, por exemplo, os editores se irritam quando é posta a questão da numeração dos exemplares. Os argumentos são simplesmente risíveis. Impossível, encareceria demais as edições, dizem eles. Conversa macia para bovino cochilar. Eles não numeram os exemplares por razões inconfessáveis! Vários editores já confidenciaram isso a seus autores em momentos de alegre convívio, que, aliás, deve presidir a relação entre autores e editores. Nos termos em que vige no Brasil, é a única opção dos escritores. No dia que a confiança é quebrada, é melhor deixar a Casa.

Obras consagradas

Por que o véu levantado por João Ubaldo Ribeiro é importante?

Além dos temas de domínio conexo, a imprensa pode contribuir para discussões certamente proveitosas que cercam autores, editores e leitores num Brasil mais moderno do que o foi quando o selo de algumas editoras por si só já era garantia de qualidade. Quantas vezes não fomos às livrarias e compramos livros, nos anos 1960 e 70, simplesmente porque eram publicados por casas como a Civilização Brasileira e a Paz e Terra? E o governo as apoiava? Ao contrário. Eram combatidas furiosamente. E uma delas sofreu atentado terrorista no Rio, assim como bancas de jornais em todo o país, que foram explodidas já no governo Figueiredo, dito de ‘abertura’.

(Aliás, onde hoje se realiza a Bienal do Livro, o Riocentro, no Rio de Janeiro, foi palco de atentado monstruoso que quase termina em tragédia ainda maior. Uma sindicância militar arquivou tudo, sem identificar os responsáveis! Ah, este capítulo! Há de render ainda mais escritos o costume nacional de silenciar os discordantes por meio de manipulação de sindicâncias!)

De todo modo, é preciso apurar se a Companhia das Letras ou qualquer outra tenha tido hegemonia na Festa Literária Internacional de Parati (Flip), ainda mais quando verbas públicas estão envolvidas. Se existe tal hegemonia, ela será preliminarmente uma atitude pouco inteligente. Grandes autores nacionais chegaram a um patamar que, acima de gostos e desgostos, indica o óbvio: suas obras foram consagradas por crítica e público, e estão espalhadas por várias editoras de prestígio e qualidade, apesar de sistematicamente excluídas de eventos semelhantes! Não apenas de Parati. Não se pode pegar a Flip para Cristo, mas pode-se fazer dela um momento de reflexão desapaixonada e útil à vida de autores e livros.

Dedicação ao ofício

Apesar de não ser o caso do artigo de Veja, não se pode acusar sem provas e macular um evento importante. Talvez a Veja tenha dito menos do que ocorre em Parati porque a vida literária brasileira é regida por maledicências de todo tipo, mas na hora de honrar a declaração é costume nacional omitir-se, evitando a indispensável conversa clara.

A Flip é boa, mas está dando alguns tropeços, absolutamente normais em quem dá primeiros passos. Se um dos convidados está fazendo fiasco, que os outros não sejam impedidos de continuar na festa e nem seja feita a exclusão de eventuais desafetos do convidado que está na berlinda.

Talvez seja bom lembrar que novas editoras, algumas surgidas no alvorecer deste milênio, estão se destacando entre as cerca de 3.000 editoras brasileiras pela qualidade dos livros lançados. E muitas delas continuam sistematicamente ignoradas pela imprensa, por festivais, por feiras e por eventos, quando o certo seria apoiar o novo ou quando menos informar ao distinto público que algo de muito novo está ocorrendo em nossa vida editorial.

Por último, editor nenhum publica autor chamado ‘etc’. Todos têm nomes e seus nomes são indicativos da qualidade do que escrevem. João Ubaldo Ribeiro está certíssimo. Por ser o autor de livros como Sargento Getúlio, Viva o povo brasileiro e A casa dos budas ditosos, seu nome, construído em décadas de dedicação ao ofício, é garantia de qualidade. Tratá-lo como ‘etc.’ é ato reprovável.

O escritor baiano foi gentil em sua exasperação. Até para reclamar, tirando ACM, o baiano é doce.