‘A pátria, como a mãe, quando não existe para os filhos mais infelizes, não existe para os mais dignos.’ (Joaquim Nabuco)
A pena do cearense José de Alencar (1829-1877) estava sempre de ponta afiada, cortante como navalha. Servia de arma contra os que lhe atravessassem o caminho. Qualquer um, alto, forte, baixo ou mirrado, gente graúda ou do povo não o amedrontava, menos ainda o imperador Pedro II, alguém da família real ou outra autoridade merecedora de atenção.
O duque de Caxias, envolto numa áurea de glórias e respeito público, não passava de ‘Penacho funesto’. Desaforado, brigava como moleque de rua sobre irrelevantes motivos. Bastava uma provocação e lá o grande jornalista, autor de uma obra formidável, mostrava o perigoso instrumento que costumava puxar, não para advertir o adversário, mas para feri-lo na carne, impiedosamente e logo na primeira estocada. Esse tipo de comportamento o acompanhou por toda a vida, até poucos anos antes de morrer. Quando não tinha onde escrever, criava jornal. Como deputado à corte, quando lhe cassaram a palavra, usou outro recurso: mandou imprimir um folheto com o seguinte título, cujas verdades alcançaram repercussão: ‘Discurso que seria pronunciado na sessão de 2 de maio de 1873 pelo deputado José de Alencar’ – e saiu a distribuí-lo.
Apesar da coragem incomum, de não levar desaforo para casa, da disposição de trocar insultos, se fosse o caso topava desafio de esgrima, um costume da época, quando honra se lavava com mutilação e sangue. Mas ele encontrou o que se pode considerar um ‘osso duro de roer’. José de Alencar, doente, por motivo de uma tuberculose, cruzou com um rapazote, em 1875, de 26 anos de idade, ele com 46. O novo adversário, desconhecido nos meios intelectuais, revelou-se um ousado polemista. Não o respeitou por ser mais velho, ter fama de escritor, teatrólogo e temido como panfletário abusado: Joaquim Nabuco (1848-1910, Recife-PE). Tratavam-no pelo apelido de Quincas, o belo, pela aparência física que seduzia mulheres, e os homens, pelas ideias e as palavras.
‘Pêsames ao conselheiro Alencar’
O encontro entre os dois homens ilustres tratado no presente texto justifica-se… O moço merece lembrança por deixar um dos livros que levou os estudiosos a mais bem compreender a formação histórica do nosso povo, O abolicionismo, que igual em valor e cumpre a mesma finalidade, isto no século 20, só Casa grande e senzala, de Gilberto Freire e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, além de se haver distinguido na luta contra o hediondo crime da escravidão. Merecidamente, recebeu o epíteto de Patrono da raça negra. Prestou serviços à história, política e diplomacia. Na qualidade de monarquista convicto, acreditava em certos valores consagrados pela democracia. Com ideias avançadas, ainda serviu à República, como embaixador do Brasil, em Washington, em 1905, onde faleceu.
Antes, em Londres resolveu problema de interesse nacional acerca da questão fronteiriça com a Guiana inglesa. Por ser um pensador respeitado no século 19 e posteridade, o Congresso Nacional votou um decreto, sancionado pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, criando em 2010 o Ano Nacional Joaquim Nabuco, pelo centenário de sua morte.
A polêmica se tornou célebre pelo nível cultural dos contendores. Começou com uma nota saída no jornal O Globo, do Rio de Janeiro, escrita por Nabuco, sem assinatura, sobre a peça O jesuíta, de autoria de Alencar, que se constituiu num fracasso. O autor, inconformado, transferiu a culpa ao público, que no seu entendimento não soube apreciar uma boa e saudável história, cujo conteúdo estava longe de ofender alguém ou alguma instituição. Estava frustrado com uma plateia que foi generosa quando apresentara anos antes, a peça Demônio familiar. Recebeu os aplausos gerais e da crítica. Irritou-se, certamente, por uma linha debochada publicada pelo jornal humorístico Mequetrefe (abelhudo, enxerido, patife): ‘os nossos pêsames ao conselheiro Alencar’.
‘Um soberbo assunto de comédia’
Nabuco, em solidariedade ao teatrólogo, escreveu um texto que lamentava o ocorrido. Para incentivá-lo, preconizou que O jesuíta, mesmo ignorado pelos contemporâneos, um dia receberia aplausos da posterioridade. Mas… Aí não resistiu a tentação de alertá-lo para os seguintes descuidos cometidos: a peça, escrita quinze anos antes, não merecera a preocupação de ser atualizada, inclusive na gramática, para torná-la compreensível aos novos tempos. Alencar partiu à réplica:
‘Este zelador de alheios créditos literários deveria começar por inquirir se o público atual dos teatros merece ao autor as atenções e deferências do público de há vinte anos, que aplaudiu o Demônio familiar.’
O jovem polemista iniciou as atividades jornalísticas após se formar em Ciências Jurídicas, em Recife, depois de transferido de São Paulo, onde estudou ao lado de Castro Alves e Rui Barbosa, em 1870. Escreveu e trabalhou para os jornais A reforma, Comércio de São Paulo, O abolicionismo, Revista brasileira e como correspondente em Londres para as folhas Jornal do Comércio (RJ) e La Razón (Montevidéu), dinheiro que serviu para complementar com outro emprego e se manter na Europa, passando boa temporada entre Paris e Londres. Não gostou do que escreveu o cearense e considerou o ato deselegante. Passou à ofensiva e dispensou o anonimato. O circo ia pegar fogo.
Uma das páginas de O Globo, aos domingos, trazia a seção ‘Folhetim’ e Joaquim Nabuco a redigia; às quintas-feiras, José de Alencar assumia o lugar do ‘Folhetim’. O sucesso era inevitável pelo brilho da inteligência, destreza verbal e cultura dos gladiadores. Eis a linha divisória da contenda: a luta do moderno com o passado, do realismo contra o romantismo, da defesa do geral, com foco na França, contra o regional, ou seja, as coisas e a gente do Brasil. É só acompanhar as expressões candentes, usadas com rigor, firmadas na irreverência e na crítica quanto a certas passagens. Determinados momentos foram repassados de gravidade e graça, sem se perderem nos abusos discursivos, apesar da agressividade do cearense. Resposta de Joaquim Nabuco sobre o insucesso da peça e a propósito do que escreveu Alencar:
‘No fim de contas, entre as liberdades que temos, nenhuma é mais preciosa do que a de não ir ao teatro. Essa desforra tomada pelo dramaturgo contra os ausentes, entre os quais estava quase toda a cidade, é original e não se compreende, bem como, uma inteligência clara não viu que seria esse um soberbo assunto de comédia.’
O espetáculo verbal emocionava os leitores
Reprovou o cearense e criticou seus colegas de jornais, para concluir:
‘O senhor José de Alencar, tanto como qualquer escritor, depende da crítica, e a imprensa daria uma prova real do nosso adiantamento se estudasse as obras do autor popular em vez de tanto incensar-lhe o nome.’
Quincas, para irritar o contendor, prometeu estudar a sua obra e apontar falhas gramaticais, plágios e personagens exóticas, como algumas que considerava desajustadas, logo um caso de polícia, ou manicômio. Alencar o desafiou a fazê-lo e ao mesmo tempo disse não encontrar-lhe autoridade intelectual para tanto; recriminou-o por utilizar o conceito da família, como filho do senador Nabuco de Araújo, um dos personagens importantes da política do império. Acrescentou ser essa a reputação que traz embriagado o folhetinista parisiense (deboche), que viveu até agora num beático sonambulismo, imaginando-se um Apolo, ainda mesmo de gesso.
O troco viria na edição seguinte de O Globo e outros jornais, que se aproveitaram da polêmica para transcrever a mesma e aumentar a circulação. O pernambucano, referindo-se à gozação de ‘Apolo de gesso’, retribuiu com veneno: ele não passa de um fauno de terracota. Anunciou que se dava por satisfeito em conseguir uma vingança, ao obrigar o sr. José de Alencar a elogiar a si próprio todas as quintas-feiras, com essa pontualidade e esse ardor que são as suas duas melhores qualidades. Adiante: o seu teatro só abala a escravidão no nosso espírito, não no dele. (…) Alencar acha a escravidão poética, eu aborreço tudo que a lembra.
O título do texto escrito pelos birrentos protagonistas era ‘Aos domingos’ e ‘Às quintas’ e durou dois meses. Nessas semanas, a fervura da água aumentava. Lenha não faltava na fogueira de vaidades. O espetáculo verbal tomou conta da cidade, que se divertia e emocionava os leitores, que assumiram posições.
O beato folhetinista
As provocações seguiram rumos imprevisíveis, com as ironias e acusações que em certos momentos feriam. Foi o que houve quando o autor de O Guarani, revoltado com a acusação de negligência com o escravismo, sentiu-se vítima de maldade que definiu como intolerável. Pisou pesado no acelerador das discussões, que atingiu à família Araújo:
‘O folhetinista [Nabuco] nasceu em um país de escravos, no seio de uma respeitável e ilustre família servida por escravos. Esses lábios purpurinos, que já não podem sem náuseas pronunciar a palavra `moleque´, talvez sugassem o leite de uma escrava, como aconteceu não a mim, porém a muitos outros que lhe excedem no respeito a dignidade humana (referia-se a Quincas, que entregue pelos pais, criança, aos padrinhos ricos, donos do engenho Massangana e com eles ficou até os oito anos de idade, precisava amamentar-se nos seios de uma escrava).’
Manifestando indignação prossegue nas investidas:
‘Mas o nosso alfenim (`ai, não me toque!´) aborrece tudo o que lembra a escravidão. Aborrece então o seu país, que ainda a conserva? Aborrece sua infância, passada entre ela? Aborrece seu venerando pai, que não se animou a propor a abolição imediata? Aborrece a si mesmo, que deve a sua educação e seu bem-estar ao café, ao algodão e à cana, plantados pelo braço cativo?’
José de Alencar não brincava em serviço. Em polêmica, então, não perdoava os mínimos defeitos do adversário. O historiador cearense Lira Neto, autor do livro O Inimigo do rei, observa: ‘Era um desabafo típico de quem havia sido atingido em seu calcanhar-de-aquiles.’ É isso aí: quem entrava numa polêmica era para se molhar e nunca saia limpo e lépido. O autor de uma obra formidável sabia como envolver o oponente com a coragem e a malha do seu verbo arrasador.
Nem tudo estava perdido para Nabuco, que reiterou as críticas sobre o que escreveu o adversário e se concentrou no romance Lucíola, no qual acusava haver licenciosidade, para os padrões da época, e não criatividade. Referia-se a uma personagem, Lúcia, que dançava nua e estigmatizou o escritor: essa parte do romance, ou antes, esse romance, só deve ser lido nas casas de tolerância. Resposta: ‘Qualquer destes próximos domingos, o nosso beato folhetinista (tentativa de diminuí-lo intelectualmente) começa o artigo fazendo o pelo sinal (sinal da cruz) (…)’
A grandeza do autor
A polêmica entre Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo e José Martiniano de Alencar se constituiu num grande momento do jornalismo brasileiro do século 19. Exageros à parte, não houve baixaria nas discussões, com cada qual demonstrando civilidade. Houve, é verdade, passagens tensas, mas nada de ofensas pesadas. As regras da velha e boa polêmica perderiam a autenticidade se não houvesse ingredientes recheados de acusações, com ênfase no deboche e na gozação. Nabuco, que sofreu com as investidas, teve a grandeza de reconhecer, anos depois, que se exagerou na dose para ele não passava de fruto da juventude, sem a intenção de ofender o adversário. Deixou registrado no livro Minha formação o seguinte depoimento:
‘Travei com José de Alencar uma polêmica, em que receio ter tratado com a presunção e a injustiça da mocidade o grande escritor – digo receio porque não tornei a ler aqueles folhetins e não me recordo até onde foi a minha crítica, se ela ofendeu, o que há de profundo, nacional em Alencar: o seu brasileirismo.’
Todo brasileiro, a começar pelas escolas, deveria conhecer Joaquim Nabuco, uma extraordinária figura, e sua obra, principalmente o combate duro e sistemático contra o vergonhoso crime da escravidão, cujas vítimas eram tratadas como se fossem animais – aliás, estes eram mais bem cuidados, enquanto aqueles pagavam pelo tributo por nascerem com a pele negra. Caçados no continente africano como feras e trazidos em embarcações que enfrentavam quase um mês de viagem, vinham amontoados, sujos, doentes, famintos, comendo o pão que o diabo amassou e despojados do menor conforto, sob a tensão e a covardia dos verdugos, que pelo menor motivo os açoitavam. Muitos morreram em viagem e tiveram seus corpos jogados em alto mar. Os que conseguiam chegar vivos conheceriam uma vida que, pior só no inferno. O Brasil enfrentou essa vergonha por séculos. Poucos homens públicos tiveram a coragem de enfrentar o poder e os que se enriqueciam com o trabalho escravo.
Nabuco destacou-se nessa luta, pela grandeza do ideário e coragem em enfrentar os aproveitadores da situação. Nos discursos que fez em praça pública, nos teatros e nas sessões da Câmara dos Deputados, sua voz era ouvida em silêncio e respeito pelo brilho e o domínio das palavras. A Igreja, com outras instituições públicas e privadas, não escapou de sua azeda crítica, ao considerá-la conivente com essa triste condição humana. Não desistiu até o dia em que a princesa Isabel, a 13 de maio de 1888, assinou o ato, dando fim ao ignominioso escravismo, que manchou a nossa história. O que dizia? ‘É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil.’ Presente, Joaquim Nabuco esboçou um sorriso. Beijou a mão da grande benfeitora dessa imensa legião de sofredores e deu-se por satisfeito. No ano do pernambucano, vale lê-lo e acompanhá-lo nas ideias que, naquela época, tratavam de assuntos delicados como, entre muitos, reforma agrária, direito indígena, imigração espontânea, amparo aos ex-escravos e, incrível, a questão ecológica. Grande Nabuco, um herói nacional de verdade e para sempre.
Suas obras
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Balmaceda. São Paulo, Instituto Progresso Editorial, 1949.**
Camões e Os Lusíadas. Rio de Janeiro, Tipografia do Imperial Instituto Artístico, 1872.**
Campanha abolicionista no Recife: eleições de 1884. Recife, Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 1988.**
O dever dos monarquistas. Rio de Janeiro, Tipografia Leuzinger, 1895.**
O direito do Brasil. São Paulo, Instituto Progresso Editorial, 1949.**
Discursos e conferências nos Estados Unidos. Tradução do inglês de Arthur Bomílcar. Rio de Janeiro, B. Aguila, c.1911.**
Discursos parlamentares. São Paulo, Instituto Progresso Editorial, 1949.**
A escravidão. Recife, Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 1988.**
Escritos e discursos literários. São Paulo, Instituto Progresso Editorial, 1949.**
A intervenção estrangeira durante a revolta de 1893. Rio de Janeiro, Freitas Bastos & Cia., 1932.**
Minha formação (1900). Rio de Janeiro, Topbooks, 1999.**
Pensamentos soltos. Camões e assuntos americanos. Tradução de Carolina Nabuco. São Paulo, Instituto Progresso Editorial, 1949.**
Um estadista no Império: Nabuco de Araújo. Rio de Janeiro, Topbooks, 1997, 2º v.Fonte: Livro, O abolicionismo.
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Professor universitário, jornalista e pesquisador