O escritor Luis Fernando Verissimo é muito conhecido em toda a mídia brasileira, pois suas crônicas, charges e outros textos vêm sendo publicados nos grandes jornais e revistas há várias décadas. Mas o que menos gente sabe – ou sabe, mas o lê apenas na imprensa e não nos livros – é que ele é referência de nossas letras também como romancista, de que são exemplos O Jardim do Diabo – sua estreia no gênero, em 1988; Gula – o clube dos anjos (1999) e Borges e os orangotangos selvagens (2000) – este último está disponível também em francês na Livraria Cultura, em São Paulo – todos reeditados várias vezes, já que ele é um campeão de vendas. É um dos poucos autores nacionais a romper o domínio quase absoluto de autores estrangeiros na lista dos mais vendidos, a maioria dos quais sem a inegável qualidade dos textos do brasileiro.
Ele está de volta com um novo romance. É Os espiões (Alfaguara/Objetiva). A mídia está presente de um modo curioso e singular, além de divertido, pois esta é uma das marcas do escritor, conhecido humorista. As ações desenvolvem-se entre Porto Alegre e Frondosa, pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul que, como quase todas as localidades daquele estado, também tem o seu jornal.
A Folha da Frondosa é mantida por um mecenas, Diamantino Reis, mais conhecido pelo apelido de Uruguaio, benfeitor da comunidade que apoia também outros projetos. ‘O Uruguaio gastava todo o seu dinheiro ajudando os outros para se redimir da culpa por ter apostado contra o Brasil em 50 e vivia modestamente’ (p. 117). A afluência a seu velório, que ocorre a poucas páginas do desfecho da trama solar do romance, servirá para medir também a gratidão dos agraciados com seus favores. Guardadas as proporções, é para Afonso o que Engels foi para Marx, sustentando o intelectual local para que ele possa escrever.
Nunca às segundas-feiras
Como o filho sempre se refere ao pai com carinho e admiração, é pertinente lembrar que Erico Verissimo, na segunda parte do último romance que publicou, Incidente em Antares (1971), dá relevo especial à figura do jornalista Lucas Faia que, em prosa barroca, ainda forte nas centenas de jornais do interior, narra a ressurreição de um pequeno grupo de mortos notáveis que caminha para o centro de Antares, onde revelarão os podres de altas figuras do poder local, alguns dos quais com poder de vida e de morte sobre os munícipes, mas que nada mais podem fazer contra quem já morreu! O jornalista Lucas faz uma grande reportagem sobre o incidente que, entretanto, jamais será publicada.
Mas termina aqui a semelhança, já que pai e filho têm estilos distintos e o filho chegou à qualidade literária por caminhos bem diferenciados, sem que a fama do pai o atrapalhasse. Ou, como diz um dos presentes à sessão de autógrafos de Astrologia e Amor, de Fulvio Edmar, em Frondosa: ‘É, sou judeu como Jesus Cristo, mas a semelhança termina aí’ (p.121).
Todos estão ali para desvendar o enigma lançado ao leitor logo nas primeiras páginas: quem é Ariadne, a autora do romance inédito enviado à editora de Marcito, onde o narrador, rigoroso funcionário, devolve todos, especialmente se chegam pelo correio às segundas-feiras, quando as cartas de rejeição são desoladoras e definitivas. ‘Se Guerra e Paz caísse na minha mesa numa segunda-feira, eu mandaria seu autor plantar cebolas. Cervantes? Desista, hombre. Flaubert? Proust? Não me façam rir. Graham Greene? Tente farmácia. Nem Le Carré escaparia.’
Desempenho deslumbrante
Mas o romance é construído justamente no interesse que o original de Ariadne desperta. E é preciso fazer alguma coisa, pois a autora, como outras que já se mataram, anunciando ou não, diz que vai suicidar-se depois de escrever o último capítulo do livro que remete em pedaços para a editora. O motivo? Serão segredos muito bem guardados, cuja revelação ameaça as poderosas forças locais de Frondosa?
O inédito rompe o desânimo do funcionário, que abre o romance com estas frases: ‘Formei-me em Letras e na bebida busco esquecer. Mas só bebo nos fins de semana.’
Imaginoso Luis Fernando Verissimo! Espalha ao longo do livro os sinais de seus gostos literários, mas isso é apenas uma gorjeta que dá aos leitores, pois vai prendê-los da primeira à última página – ou melhor, da 7 à 142 – com a desconcertante história de Ariadne. É a ela que entrega o fio da meada que encontraremos à saída: quem é autora que escreve aquele inédito, qual a identidade de seu secreto amor, por que anuncia o suicídio, que coisas tão graves revela em doses tão homeopáticas a tão mal-humorado editor e afinal o que será dela e de todos os que, por caminhos tão insólitos, procuram ajudá-la?
Estamos diante de um texto repleto de manhas muito criativas, revelando que o craque da crônica obtém desempenho deslumbrante também no gênero literário por excelência, o romance.
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Escritor e professor da Universidade Estácio de Sá e doutor em Letras pela USP; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e De onde vêm as palavras