Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Exercícios de tiro livre e de afagos

Há um tempo para recitar poemas e um tempo para lutar, escreveu Roberto Bolaño em Os Detetives Selvagens (1988), seu libidinoso e elaborado romance. Sua prosa de não ficção, reunida pela primeira vez neste volume, demonstra que o Bolaño espadachim podia declamar e brigar ao mesmo tempo. Ele era um amoroso e um brigão.

Os trabalhos exóticos e o jornalismo de esquerda que enchem Between Parentheses (Entre Parênteses; ainda sem previsão de lançamento no País) – o soberbo título foi escolhido por Bolaño para uma coluna que publicava na imprensa espanhola e latino-americana – têm importância pela maneira como seus romances pairam sobre o último meio século de ficção latino-americana. Ele é a figura mais controversa e incontornável que surgiu desde que Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa começaram a soltar suas obras maduras, nos anos 1960.

Bolaño morreu em 2003, de falência hepática, aos 50 anos. Um sentido espectral de promessa não cumprida e martírio, de ser ligeiramente bom demais para este planeta, paira sobre sua reputação póstuma. Nesse sentido, ele se assemelha a um David Foster Wallace da América Latina (ambos cerebrais, barba por fazer, desconfortáveis em cidades grandes e sob luzes brilhantes). A obra-prima de Bolaño, o romance 2666, publicado pela primeira vez nos EUA em 2008, não foi completamente terminado. Como a carreira de Bolaño, ele ficará para sempre marcado com um asterisco.

Pouco considerados

Coisa excelente em Between Parentheses é como ele dispersa totalmente no ar qualquer incensamento e reverência rançosa. O livro é uma coisa barulhenta, ensebada, desarrumada. Lê-lo não é se sentar com Bolaño num seminário com ar condicionado. É sentar-se numa banqueta de bar ao lado dele, com uma jukebox tocando flamenco, depois que ele consumiu um balde de Pisco Sour. Você vai querer tomar as suas antes de entrar na primeira página.

Between Parentheses, que foi corretamente traduzido (para o inglês) por Natasha Wimmer, cobre um vasto território. Há pedaços crocantes de autobiografia, lamentos políticos, indagações sobre comida, futebol, mulheres, exílio. Mas o que mais o interessava eram os livros, e este está recheado de suas opiniões indisciplinadas sobre literatura mundial.

Bolaño era um mestre em atirar bolinhas de papel mascado do fundo da sala de aula, e fez sua dose de inimigos. Sobre o escritor argentino Osvaldo Soriano, a quem chama de “um bom romancista menor”, ele acrescentou: “É preciso ter um cérebro cheio de matéria fecal para vê-lo como alguém em torno do qual um movimento literário pode ser construído.” Ele atingiu a romancista Isabel Allende por diversas vezes atrás da orelha, observando “a maneira como seu texto varia do kitsch ao patético e a revela como uma espécie de versão latino-americana e politicamente correta da autora de Valley of the Dolls (O Vale das Bonecas).” Ele tem um desprezo barroco, sério-cômico por professores latino-americanos em universidades americanas. “Ir a jantares com eles e seus favoritos”, escreveu Bolaño, “é como pastar num diorama aterrador em que o chefe de um clã de homens das cavernas rói uma perna enquanto seus acólitos fazem acenos de cabeça concordando e riem.” Ele deixou clara sua falta de consideração pelos escritores americanos John Irving, Chuck Palahniuk e Michael Chabon.

“Pouco brilhante”

Alguns de seus textos mais vigorosos, porém, são das colunas de jornais em que ele avaliava os escritores americanos cuja obra juntava em seu baú. Esses incluíam mestres de gênero como Dick, Mosley, James Ellroy e Thomas Harris. Os romances sobre o canibal Hannibal Lecter, de Harris, podem ser best-sellers do mercado de massa, disse Bolaño, “mas gostaria que a maioria dos romancistas americanos escrevesse tão bem quanto ele”. Seu comentário sobre Philip K. Dick incluiu esta sentença: “Dick é Thoreau mais a morte do sonho americano.” Bolaño só raramente foi um crítico perceptivo. Com muita frequência ele recorre a exageros generalizantes, ignorando distinções finas. Nessas páginas, ele chama Nicanor Parra de “o maior poeta vivo na língua espanhola”. Enrique Lihn é “o melhor poeta de sua geração”. Os contos de Rodrigo Rey Rosa são “os melhores de minha geração”. Javier Cercas é “um dos melhores escritores na língua espanhola”. A gente começa a ignorar essa estática. Há mato para ser cortado. Escrevendo com prazo marcado por um cheque de pagamento rápido, Bolaño podia ser empolado e caprichoso até as raias do absurdo. Com muita frequência há uma emotividade que corta sua esquisitice e amargura. “Em grande parte”, confessou, “tudo que escrevi é uma carta de amor e uma carta de adeus à minha própria geração”.

Como você reconhece uma verdadeira obra de arte literária?, ele perguntou. Sua resposta: “Fácil. Que ela seja traduzida. Que seu tradutor seja pouco brilhante.” Os gênios conseguem sobreviver mesmo a essa indignidade. O editor do livro, Ignacio Echevarria, observa que esses ensaios e discursos são todos dos últimos anos da vida de Bolaño por uma razão simples: antes de 1998, quando Os Detetives Selvagens foi publicado na Espanha, poucos tinham ouvido falar dele.