Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Ex-repórter revela-se grande contista

De Machado de Assis a Truman Capote, passando pelos não menos geniais Ivan Angelo, José Saramago, Nelson Rodrigues e Vander Piroli, a atividade jornalística sempre contribuiu para o surgimento de grandes escritores. A lida diária e obrigatória com a palavra talvez explique esse fato, embora Ernest Hemingway tenha ensinado que o trabalho jornalístico não prejudica o jovem escritor e pode até vir a ajudá-lo ‘se ele cair fora a tempo’.

Pelo visto, é o caso de Adriano Macedo, que saiu a tempo da redação, estufa de talentos que muitas vezes se converte em túmulo de escritores. Mineiro de Belo Horizonte, 37 anos, ele foi repórter de Economia na Gazeta Mercantil e hoje trabalha como consultor de comunicação e curador de feiras literárias. Mesmo apaixonado pela arte de escrever, só publicou o primeiro livro, O Retrato da Dama, no final de 2008. Antes disso, colaborou com as revistas eletrônicas Tanto (no Brasil) e Triplo V (em Portugal), tendo também participado de uma coletânea portuguesa de mini-contos, intitulada Pitanga.

Publicado pela Editora Autêntica, O Retrato da Dama tem 96 páginas e reúne 10 contos sobre diversos temas. O primeiro e mais curto tem o sugestivo nome de Folha Seca e justamente por ser enxuto funciona na coletânea como um prólogo ou convite àqueles que ainda não conhecem o autor. A leitura se faz num piscar de olhos. De maneira simples e direta, Adriano cria total empatia entre o leitor e o personagem principal, que se vê atormentado pela recente perda da mulher e de seu cachorro de estimação. Solidão é o tema principal da narrativa, que emociona desde as primeiras linhas.

Uma fresta no tempo e no espaço

O segundo texto intitula-se A Cabeça das Botas Negras e poderia ser definido como ‘um conto de viagem’. A exemplo de seus maiores ídolos literários, entre eles o próprio Hemingway, Adriano Macedo tenta fugir da rotina existencial de escritor provinciano ao abordar temas relativos a cidades e países distantes. Nesse caso, o personagem narrador diverte-se com a brincadeira ‘pé sem cabeça’, na qual tenta imaginar as pessoas a partir da visão de seus sapatos, no metrô de Paris. Em poucas linhas, o autor define o jeito de ser do parisiense típico, que olha os outros com cautela, para não ser flagrado no ato indiscreto. A narrativa aborda o fetiche e abre um recorte para o passado, quando o narrador, ainda menino, se deliciava com as fotos da atriz Lídia Brondi nua numa revista masculina.

Triângulo Quadrangular fala do amor a três e da descoberta da homossexualidade. Impossibilitada de engravidar, uma jovem convence o marido a manter um caso com sua melhor amiga para que possa adotar o filho que nascer dessa relação. O final é quase óbvio, mas não deixa de ser instigante, pois desperta reflexão sobre o macho no mundo contemporâneo, onde a guerra e a caça perdem espaço para atividades que dispensam a força bruta típica do gênero masculino.

O quarto conto, O Jogador de Xadrez, remonta à criminologia e narra um assassinato ocorrido no centro de Belo Horizonte, em 1938. O narrador é o velho Álvaro, que passa as tardes jogando xadrez com outros aposentados que freqüentam a Praça Sete. Das 10 narrativas reunidas no livro esta é a que melhor retrata a capital mineira em dois momentos de sua história, abrindo uma fresta no tempo e no espaço e criando uma metáfora entre o tabuleiro de xadrez e a vida real.

Personagens cruas

Em A Vizinha do 301, Adriano Macedo conta a história de um amor não concretizado. O personagem principal se interessa pela vizinha de prédio, mas se sente incapaz de quebrar o gelo dos ‘obas e olás’ iniciais e abrir caminho para uma aproximação direta que lhes permita um relacionamento mais íntimo. O final surpreendente faz o leitor refletir sobre as oportunidades perdidas ao longo da vida, a importância do outro e os mistérios da existência humana.

O Retrato da Dama é o conto crucial, no qual o escritor desfila não só seus conhecimentos de artes plásticas e história, mas também a técnica madura do bom ficcionista. Durante uma visita ao Museu D´Orsay, o narrador se apaixona não pelas jovens de Renoir ao piano, o que seria previsível, mas pela imagem da madame Bárbara Rimsky-Korsakov, tela de Franz Xavier Winterhalter, de 1864, que não sem razão foi parar na capa do livro. Com poucas pinceladas, o contista leva o leitor pelas ruas de Paris, em busca da misteriosa dama pela qual se apaixona logo à primeira vista. A escrita é tão apaixonante que chega a ser real, quase uma reportagem literária – se é que existe tal gênero.

A influência hemingwayana reaparece no conto Tourada em Alcalá, mais pelo tema que propriamente pelo estilo, diga-se de passagem. O autor de O Sol Também se Levanta e de Morte na Tarde era um aficionado pela Espanha e pelas corridas de touros. Adriano Macedo divide com ele a primeira paixão, mas contesta o heroísmo dos toureiros ao revelar uma suposta crueldade por trás do espetacular mundo das touradas. Claro que isso não ofusca em nada a beleza trágica das tradicionais corridas praticadas há séculos, mas resulta num belo efeito literário, de deixar o leitor de queixo caído. O que importa nesse caso é o estilo do escritor e sua capacidade de criar personagens cruas como só a vida sabe fazer.

Um episódio soterrado

O tema da morte volta à tona no belíssimo conto O Velório das Fotos, um dos mais densos e comoventes da coletânea. O escritor fala da força das fotos na vida das pessoas, como retalhos de um tempo que se perdeu ou imagens congeladas de momentos felizes ou não. Aristides, o protagonista, se especializa em fotografar velórios e, dessa forma, descobre muito mais sobre a essência do ser humano do que os fotógrafos de casamentos e aniversários. Morte, viuvez e solidão se somam ao sentimento do ciúme e da desconfiança no conto Recordações de um Diário Viúvo. Ainda chocado pela perda da mulher, Mário é tomado de assalto pela informação de que ela teria amado outro homem e, a partir desse momento, resolve investigar a veracidade do fato.

O último conto do livro, O crime do Padre Inácio, toma por protagonista uma figura histórica da Serra do Paraopeba, no interior das Minas Gerais. Padre Inácio de Sousa Ferreira teria sido um falsificador de moedas nos tempos do Brasil colônia, na década de 1730. É certamente o único momento do livro em que a técnica jornalística interfere no ofício do escritor, já que a narrativa pode facilmente ser confundida com uma reportagem ou com o resgate de um episódio soterrado pela história oficial. Como diz o velho ditado, ‘o vício do cachimbo deixa a boca torta’.

******

Escritor e jornalista, Belo Horizonte, MG