Antigamente, quando a mídia dava atenção a obras de qualidade, fossem de estreantes ou de autores consolidados, um livro de Dalton Trevisan não seria tratado com tamanho descaso nem entregue a jejunos na arte de ler, compreender e interpretar os livros. Mas agora chegou às livrarias Desgracida (Editora Record, 237 páginas) e quase não tem havido a repercussão que o livro faz por merecer. Afinal, o autor é um dos melhores contistas do mundo, mas tem a má sorte de ser escritor brasileiro nesses tempos de tantos descasos com livros. Não há ainda um estudo que passe de mero palpite e chegue ao cerne da questão para averiguar-se quais as razões de tamanho desinteresse, não com um, mas com quase todos os autores.
Nestes tempos em que a mulher busca afirmar-se como alternativa de poder em tantas áreas, não apenas na política stricto sensu, mas nas amplas áreas lato sensu, como os cargos de chefias nas redações e nas editoras, repousa nelas a esperança de que as coisas mudem. Afinal, uma autora como a espanhola Teresa d´Ávila, tão cerceada pelos poderes masculinos da Inquisição, morreu inédita e há muito séculos seus livros são best sellers em todo o mundo.
Isso, porém, ainda diz pouco. Se o leitor estiver interessado em obras referenciais de qualidade, deve tomar primeiramente alguns cuidados. Livros indispensáveis estão fora de catálogo, as editoras parecem querer apenas novidades, sem que haja preocupação com os conteúdos de cuja falta se ressentem tanto muitos leitores. Daqui a pouco será bom negócio para algum empreendedor lançar apenas livros esquecidos.
Cartas e minicontos
Pois é para a fileira dos grandes esquecidos que insistem em enviar Dalton Trevisan. E logo na primeira aba, aparece uma carta que ele enviou a Pedro Nava, em 19 de agosto de 1976. Não, não é invenção, não. É factual. Nela, Dalton Trevisan derrama-se em elogios ao grande memorialista mineiro, comparando-o a Proust, a Cervantes, a Gabriel García Márquez e a outros grandes:
‘Para o meu gosto, ainda melhor que o Euclides, o Nabuco, o Rosa, o Graciliano. O episódio com a mulatinha Maria me ilumina como uma carta de amor do Joyce para a mulher Nora. E que dizer da sua, da nossa Esmeralda-Valentina? É puro soneto de Camões. E sobre ele e o Proust, meu caro Nava, você leva uma vantagem: eles são grandes, porém chatos. E você, grandíssimo Nava, nunca é chato.’
Na segunda aba, são transcritos curtíssimos contos, revelando o extraordinário poder de síntese a que chegou o grande Dalton, de que é exemplo este, Mariazinhas:
‘Bendigo o irmão Sol bendigo a pequena irmã Lua por todas as mulheres de Curitiba são muito queridas as nossas lindas Mariazinhas mas por que tão pérfidas? Te adoçam de beijos a boca e já misturam o vidro moído na tua sopa.’
Que bela recherche, que sutil referência a um de seus livros referenciais, A Guerra Conjugal, levado ao cinema por ninguém menos do que Joaquim Pedro de Andrade.
Desgracida é dividido em duas partes. Em Mal Traçadas Linhas encontramos cartas a Otto Lara Resende, a Pedro Nava, a Rubem Braga. Em Ministórias estão as peças geniais que há tempos ele cultiva em forma de haicai e agora de minicontos. Um dos primeiros adeptos do gênero foi o guatemalteco Augusto Monterroso:
‘Quando ele acordou, o dinossauro ainda estava lá.’
No Brasil, Marcelino Freire organizou a antologia Os cem menores contos brasileiros do século (Ateliê editorial, 216 páginas).
Glória ao maior contista do mundo. Ele é brasileiro e vive em Curitiba. Não o esqueçamos nunca.
******
Escritor, professor da Universidade Estácio de Sá e doutor em Letras pela USP; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e De onde vêm as palavras