Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Fatos cariocas

1. O jovem ator de televisão passeia à noite em seu carro com seu cachorro de estimação, quando é parado numa blitz policial em Copacabana. Ao abrir subitamente a porta, o PM assusta-se com o avanço do animal. Sem hesitar, saca da arma e lhe dá um tiro. Sobressalto, gritos, confusão, gente acorrendo para acalmar o ator entre enfurecido e desesperado. A essa altura, já identificado como ator da Rede Globo, a situação se reverte: os policiais mostram-se muito preocupados. O cachorro não fora mortalmente atingido, o próprio autor do disparo, à beira das lágrimas, tenta ajudar a carregar o animal até o veterinário. Na verdade, tenta desculpar-se até hoje. Afinal, o ofendido era um famoso, ainda que só identificado após a exibição da carteira profissional.


2. É longa a fila à porta do [restaurante] Gero, em Ipanema. Naqueles dias, estava no auge da moda submeter-se à fila de espera naquele restaurante. Menos para um casal recém-chegado, que furou a fila sem maiores subterfúgios e foi prontamente atendido por maître e garçons. Ninguém protestou. Tratava-se de um casal consagrado por telenovelas. A celebridade televisiva cria um novo tipo de exceção soberana, uma espécie de "sabe com quem está falando?" de outra natureza, outro tipo de coronelismo.


3. "Logo depois que Carolina Dieckman perdeu um filho, ainda grávida, saiu na Caras uma foto da atriz, cabisbaixa, tirada de longe. Para o leitor, parecia uma foto arrancada a fórceps. Mas, veja só, a reportagem foi autorizada por Carolina". (Cf. Lula Branco Martins, JB, 16/11/2003.)


4. Thiago Lacerda, conhecido ator de telenovelas da Globo, foi apanhado em meio a um assalto num edifício de luxo, no Leblon. Os assaltantes levaram o que puderam. E não se esqueceram de pedir o autógrafo do galã.


5. Do Rio para São Paulo: "Às 18h30 da quarta-feira, 16, seis seguranças são posicionados no hangar da TAM onde estacionará o Citation que trará Xuxa Meneghel a São Paulo para o desfile da SP Fashion Week (…) O comboio de carros formado para acompanhá-la toma as ruas. O caminho vai sendo aberto por uma espécie de camburão. Atrás dele, a Caravan que leva Xuxa, um Ecco, um Golf e um Kia. Partem a 90km/h. A velocidade aumenta: 100 km/h, 120 km/h, em plena Avenida 23 de Maio. É hora do rush. O Golf e o Kia ficam para trás. Pisam no acelerador, "costuram" no trânsito. O nervosismo é grande (…) O carro dela anda cada vez mais rápido. Está em "rota de fuga", ou seja, roda em alta velocidade para não ser seguido por desconhecidos (…) Os seguranças de Xuxa estão por toda parte. Na quarta-feira, eles eram 37 na SPFW (…) Têm noções de inglês, cursos de direção defensiva para escapar de perseguições dando cavalos-de-pau e subindo em calçadas sem atropelar os pedestres" (Folha de S. Paulo, 20/6/2004). A mesma matéria jornalística informa que, se estivesse presente na comitiva a filha de Xuxa, as medidas de segurança teriam sido triplicadas. Ou seja, haveria nada menos que 111 seguranças, número largamente superior ao dos agentes de proteção do chefe de Estado de uma grande potência mundial em viagem ao exterior.


5.1 – Uma variante – Está para começar a estréia de um show de Gilberto Gil no Canecão, com platéia superlotada e ávida de descortinar caras famosas nas primeiras filas de convidados. De repente, uma meia dúzia de seguranças, altos e parrudos, abre caminho com truculência para que uma das personalidades se levante da mesa e se encaminhe até a lateral externa do palco. Numa mesa, alguém pergunta se se tratava da governadora ou de algum secretário de Estado. Mas nada disso: uma apresentadora de televisão, ostentando um chique jeans surrado e uma blusa branca cuidadosamente amarrotada, saía em busca do toalete.


6. Numa longa fila para um filme infantil no cine Leblon, as pessoas olham disfarçadamente para o compositor Chico Buarque de Holanda, que pára por alguns instantes em frente ao bar da esquina da Rua Carlos Góis com Ataulfo de Paiva. Do súbito silêncio, parte a indagação de uma garotinha ao pai: "Papai, você também é famoso?"


7. Albucacys é o nome de um capitão do Corpo de Bombeiros que ganhou fama ao posar para o calendário "Heróis do Rio", da célebre socialite Luma de Oliveira. Acabou sofrendo medidas disciplinares. Mas reapareceu: "O capitão Albucacys, de volta à ativa, apagava um incêndio num restaurante na Barra, anteontem. Jovens que assistiam à ação gritavam histericamente seu nome. A mais assanhada de todas não se conteve: "Vem cá, que eu te faço esquecer a Luma agora!". A turma em volta, com todo respeito ao incêndio, caiu na gargalhada" (O Globo, 15/5/2004). Dias depois, a mesma coluna de jornal noticiava que o capitão "desfila hoje para a grife Whaat Girls em prol do Pró-Criança Cardíaca, no Hard Rock Café".


7.1 – Uma variante – Um e-mail recebido pelos colunistas da imprensa carioca na primeira semana de junho dizia: "Após o desfile de segunda-feira da Loja de Inverno, Ana Paula Barbosa, neta de Chacrinha e filha de Maninha e Leleco Barbosa, e José Albucacys "Bombeiro", depois de trocarem olhares calientes e desfilarem juntos no desfile, foram os últimos a sair do camarim e ainda ficaram lá fora um tempo separados, mas as más-linguas dizem que foram embora juntos no carro dele, que estava parado em frente ao shopping" (O Globo). O texto, que se alonga em detalhes, foi enviado aos jornais pela própria Ana Paula Barbosa, referindo-se a si mesma na terceira pessoa.


7.2 – Outra variante – "Nota Zero para Adriane Galisteu, que esta semana levou ao "É Show" o capitão José Albucacys. Será que ela não sabe que a história deste bombeiro está mais do que queimada? Ele nada tem a acrescentar. Se é que um dia teve" (O Globo, 11/6/2004).


8. Em 1969, o governador Negrão de Lima, do então Estado da Guanabara, garantia oficialmente que "a remoção da imensa favela da Rocinha, com a sua população de 80 mil habitantes, será equacionada ainda no atual governo, de maneira que a próxima administração tenha condições de realizar as transferências". Trinta e cinco anos depois, em abril de 2004, a Rocinha era palco de uma guerra entre facções do tráfico de drogas, que pôs em xeque as forças policiais do Rio. Socialites e famosos subiram o morro dias depois para entregar flores e "dar carinho" aos moradores. Estes foram unânimes na recusa ao marketing da celebridade: queriam emprego e urbanização. Carinho, disseram, eles mesmos se davam.


9. Do Rio para Belém: "Em 1990, as TVs exibiam o seriado Riacho Doce, da TV Globo, e a novela Pantanal, na extinta TV Manchete. Foi o ano em que chegaram os primeiros moradores dos igarapés das margens do Rio Tucunduva. Os programas, com imagens paradisíacas de praias e rios, batizaram as duas comunidades formadas pela invasão. Cerca de três mil casas se amontoam no lugar. E a favela, que está entre as mais recentes de Belém, continua crescendo. Novas palafitas surgem a cada dia, na beira do rio, canalizado pela prefeitura. Nas ruas, a lama pura foi coberta por caroços de buriti" (O Globo, 9/5/2004).


10. Há 11 anos, um júri composto por 20 personalidades, reunido pela editoria "Água na Boca Especial" do caderno Globo-Zona Sul, vem elegendo os campeões da gastronomia na Zona Sul do Rio de Janeiro. São quesitos para o julgamento: melhor restaurante, churrascaria/steak, doceria, sorveteria, bar/botequim, comida a quilo, casa de sucos, entrada, italiano, salada/natural, pizzaria, oriental, cafeteria, bar de hotel. Em maio de 2004, acrescentou-se o quesito "local para ver e ser visto". Venceu a pizzaria "A Capricciosa". Justificativa: "Artistas e famosos são habitués da casa, também eleita a melhor pizzaria da região".


11. Na primeira semana de junho de 2004, um motim na Casa de Custódia de Benfica deixou 31 mortos e 13 feridos. E mesmo assim só terminou com a mediação do pastor Marcos Pereira da Silva, de 47 anos, presidente da Assembléia de Deus dos Últimos Dias, uma das muitas seitas evangélicas disseminadas no Rio. Numa igreja da seita, o fato foi comemorado como "sinal de que estaria para se cumprir a previsão, feita há 30 anos, de que o pastor Marcos Pereira da Silva seria colocado no "pináculo do monte" e visto pelo mundo. Isso teria sido dito à mãe do pastor" (Folha de S. Paulo, 6/5/2004). Segundo a imprensa, "a presença da equipe do Fantástico, da TV Globo, no culto de quinta-feira – o primeiro após o motim – foi recebida como um sinal de cumprimento da previsão, bem como os pedidos de entrevistas de jornais estrangeiros". Exultante, em frente a câmaras de televisão e flashes fotográficos, o pastor, ex-garçom e maître em casas noturnas da Zona Sul, garante que "a TV é maléfica" e que a cocaína é "o Demônio ralado".


12. Na noite de estréia da peça A Primeira Noite de um Homem (10/6/2004), o ator de TV Vitor Fasano deu um soco no jornalista Rodrigo Scarpa, que se apresenta como "Repórter Vesgo" na Rede TV, especializado em entrevistas irônicas ou debochadas com celebridades midiáticas. Fasano não gostou de um trocadilho de "Vesgo" com a insinuação de que seu período de fama já se havia esgotado: "Vitor, faz anos que a gente não te vê". Daí, o soco.


13. No primeiro semestre de 2004, os moradores do até então pacato Cosme Velho começaram a se dar conta de que havia aumentado grandemente o número de assaltos a residências. Cosme Velho é um bairro repleto de velhas mansões e casas de vila, guardião da memória de residentes ilustres, a exemplo de Machado de Assis, Cecília Meireles e outros. Nele está encravada a favela do Cerro Corá. Na opinião de conhecedores do assunto, o que garantia a tranqüilidade do lugar era o fato de ali se localizar a residência do Dr. Roberto Marinho, proprietário das Organizações Globo. A mansão persistia, mas o famoso jornalista falecera recentemente.


Em todos esses fatos, a fama se impõe como motivação profunda da ação. Fama é fortíssimo sujeito de poder e objeto de desejo na cidade do Rio de Janeiro. Às presumíveis relações diretas e indiretas entre globalização neoliberal, urbanização segregacionista e violência urbana, acrescenta-se a celebridade, vetorizada por uma matriz de ilusões e identificações projetivas chamada "mídia". A abóbora que, no conto de fadas, transforma-se em carruagem para Cinderela é confirmada no real-histórico pelo "jornalismo de abobrinhas". Mitologias simulativas e vida "off-mídia" confundem-se, como no texto de uma telenovela, fazendo do espaço urbano carioca uma entidade ficcional. Aqui se delira topograficamente.

******

Jornalista, professora-adjunta da ECO/UFRJ; jornalista, professor-titular da ECO/UFRJ