Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Fatos inverídicos e aberrações inventadas

No ano que se completam 10 anos dos atentados terroristas aos Estados Unidos da América e a satanização midiática das Três Fronteiras, entre Brasil, Paraguai e Argentina, recomenda-se a leitura do livro Terrorista por Encomenda: Discurso midiático e geração do homem-símbolo na fronteira, dos jornalistas Ali Salman Farhat e Fernanda Regina da Cunha. A obra revela bastidores e invenções dos fatos pela mídia norte-americana, com apoio da imprensa brasileira e paraguaia.

Para instituir o homem-símbolo e relacionar a comunidade árabe da fronteira – que soma cerca de 15 mil pessoas, entre imigrantes e descendentes, apenas em Foz do Iguaçu (PR) – com os atentados de setembro de 2001, a mídia relutou por fatos, inventou aberrações e expôs a região de forma ridícula. As Três Fronteiras e os povos de origem árabe foram apunhalados. Há sequelas ainda não cicatrizadas.

Era a mídia a trabalho da ordem do ex-presidente dos EUA, George W. Bush: ‘Precisamos estar alertas para o fato de que esses malfeitores ainda existem.’ Jornais, revistas e emissoras de televisão esquentavam notícias, envelhecidas há meses. A prática se repetiu com frequência, por uns nove meses, após a queda das Torres Gêmeas, nos EUA.

Uma imagem digna

A mídia precisava dar vida aos fatos, queria manchetes fortes e fotos de personagens. Eis que ela inventa o homem-símbolo, morador da fronteira, comerciante, libanês e simpatizante do partido político Hezbollah. A primeira séria dos fatos é marcada para outubro de 2001, com o pedido de prisão preventiva do comerciante Assad Ahmad Barakat por suspeita de ser filiado ao grupo Hezbollah.

Quais eram as provas? Conforme o estudo de Ali Salman Farhat e Fernanda Regina da Cunha, o governo paraguaio pedia a extradição do libanês por ter encontrado no cofre da empresa do comerciante informações ligadas ao Hezbollah. A polícia paraguaia vasculhou os arquivos do empresário e capturou, entre outros objetos, informações de um colecionador e simpatizante do grupo político.

O fato não teve muita sustentação. Era preciso ir mais além. A mídia precisa de uma imagem digna, semelhante à prisão de grandes bandidos. Esse dia foi marcado para 22 de junho de 2002. O libanês é surpreendido pela Policia Federal em seu apartamento em Foz do Iguaçu. Acordou assustado com a ordem de prisão, a pedido da justiça paraguaia.

As mazelas deixadas pelos fatos

Para a mídia, foi o êxtase. Era a materialização do discurso, como apresentam Farhat e Cunha (2009). ‘Era a construção da identidade dentro, e não fora, dos discursos. Era Assad Ahmad Barakat despido de sua naturalidade, de seus sonhos, de ideais, de verdade enquanto cidadão em seu local histórico e institucional específico, no interior de formações e praticas discursivas específicas (…).’

A justiça alegava que Assad era criminoso, por fazer apologia ao partido e financiar o grupo, simplesmente por encontrar informações do partido, no cofre de sua empresa, em Ciudad Del Este (Paraguai), cidade que faz fronteira com Foz do Iguaçu e conhecida internacionalmente por seu comércio de importados.

De todas as acusações feitas a Assad Ahmad Barakat, uma única foi comprovada. A evasão de impostos de Ciudad Del Este. No entanto, a mídia não teve a coerência de abordar este assunto. Preferiu relacionar cultura, religião e as Três Fronteiras a Bin Laden, AlQaeda e atentados terroristas. É mais uma, de muitas outras histórias, em que a imprensa inverteu os valores e o rumo da história.

‘Barakat não tem a lembrança de ver os filhos crescendo, não tem a foto dos primeiros dias de escola dos meninos, de seis aniversários, de seis natais, de seis inícios de novos anos. Não abraçou ninguém dos seus afetos por seis anos fora do território enjaulado. Seis anos numa cela e uma vida inteira isolado em um presídio sem paredes’, revelam Farhat e Cunha (2009). O livro encerra com mazelas deixadas pelos fatos orquestrados pela mídia: ‘Assad Ahmad Barakat não mora mais em Foz do Iguaçu. Não é mais cidadão brasileiro, nem paraguaio, nem libanês. Não tem mais passaporte. Não tem visto. Não mora mais com dois dos três filhos e nem com a mulher com quem continua casado. Barakat tem uma caixa grande de papelão, cheia de recortes de jornais em que ele é descrito pela imprensa mundial como o primeiro terrorista da fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina.’

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Jornalista, Foz do Iguaçu, PR