Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Folkcomunicação, expressão e resistência cultural

Muitos apocalípticos (usando o termo de Umberto Eco) preconizaram que a cultura popular, os costumes a as tradições do povo desapareceriam para sempre com o processo de mundialização, sobretudo com as influências dos meios de comunicação massivos. A principal culpada desse arraso total seria, sem dúvida, a televisão. Alguns integrados também entraram neste jogo, porém como pretensos ‘salvadores da pátria’, num estado de vigilância extrema a fim de evitar a ocorrência dos danos anunciados. No entanto, parece ter ocorrido o inesperado: ao invés de enfraquecimento ou sumiço, a cultura popular se mantém fortalecida e cada vez mais atuante, não obstante as influências dos poderosos instrumentos de comunicação.

Essas influências, para muitos teóricos, seriam justamente as causadoras da derrocada geral da cultura popular, como se os pertencentes a essa cultura fossem consumidores totalmente passivos ante as mensagens recebidas da grande mídia ou hegemonia comunicacional. O fato é que, mais uma vez, o tiro sai pela culatra: este ‘mundo marginal’ não somente recebe, mas interpreta as mensagens transmitidas pelos meios de comunicação, contradizendo a tão arraigada idéia da onipotência midiática.

Acerto de contas mágico

É nessa perspectiva que se desenvolve o livro do professor emérito da Universidade de São Paulo José Marques de Melo, pesquisador da Rede Folkcom e diretor da cátedra Unesco-Umesp de Comunicação para o Desenvolvimento Regional. Nesta obra o autor apresenta e discute a teoria da folkcomunicação como expressão e resistência cultural das classes subalternas ou dos grupos marginalizados, bem como a integração ou intercâmbio entre essas e os meios de comunicação massivos.

Conhecedor que é, e um dos mais renomados pesquisadores e agentes do pensamento comunicacional no Brasil, Marques de Melo destaca neste trabalho a importância da folkcomunicação como disciplina acadêmica e horizonte que se abre para novos pesquisadores interessados neste campo. Campo esse que confere espaço de expressão às minorias marginalizadas pela hegemonia comunicacional.

O livro está dividido em 10 capítulos, nos quais o autor reúne de forma sistemática o conjunto de seus textos escritos nos últimos 40 anos sobre folkcomunicação. No centro da abordagem está justamente a consideração do legado de Luiz Beltrão, o fundador da disciplina.

Marques de Melo dá a conhecer o embrião que originou a teoria beltroniana. A saber, trata-se de um ensaio monográfico intitulado ‘Ex-voto como veículo jornalístico’, publicado no primeiro número da revista Comunicação & Problemas, em 1965. A tese era de que as esculturas, objetos, desenhos e fotografias, depositados pelos devotos nas igrejas possuíam nítida intenção informativa. Eram peças que ultrapassavam o mero acerto de contas mágico, veiculando jornalisticamente o potencial milagreiro dos santos protetores.

‘Evidências ciberespaciais’

Dois anos depois, portanto em 1967, Beltrão aprofunda sua originalidade em tese de doutoramento pela Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, intitulada ‘Um estudo dos agentes e dos meios populares de informação de fatos e expressão de idéias’. Com esse estudo Beltrão foi outorgado com o primeiro grau de doutor em comunicação conseguido em universidade brasileira. Nascia aí uma teoria com estreita relação entre folclore e comunicação popular, a folkcomunicação.

Os dez capítulos de Mídia e Cultura Popular sintetizam o progresso dessa teoria e a adesão de fiéis discípulos ao legado e pioneirismo de Luiz Beltrão. Nesse sentido convém mencionar a importância da Rede Folkocom – Rede Brasileira de Folkcomunicação, que desde 1998 reúne-se anualmente em conferências pelo país. Este ano de 2008 a conferência ocorreu na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, Natal (RN), e debateu os impasses teóricos e os desafios metodológicos da folkcomunicação.

Marques de Melo, de forma didática, classifica e define os principais objetos de estudos da disciplina e mapeia alternativas metodológicas testadas e validadas, abrindo caminhos para novos pesquisadores. Há, inclusive, no capítulo seis, a amostra de um estudo empírico da presença de folkcomunicação na internet, as ‘Evidências ciberespaciais’. Isso mostra a sobrevivência de gêneros ou formatos da expressão popular no mundo virtual, interagindo e ocupando espaço e, mais que isso, ampliando seu raio de alcance, mundializando-se sem, no entanto, perder o caráter local.

Intercâmbio e sobrevivência

De forma metodológica, o autor repete assuntos na seqüência de capítulos. Ele mesmo explica este artifício no prefácio: ‘Como se trata de um caleidoscópio, estruturado a partir de anotações que venho fazendo há vários anos, foi inevitável a repetição de fatos ou a reiteração de argumentos que se encontram explícitos nos capítulos introdutórios, mas voltam a aparecer mais adiante.’ Essa estratégia não é de modo algum cansativa; o que é repetido é inserido em abordagens sobre folkcomunicação em assuntos diferentes. Desse modo, vez e outra, ele se remete evidentemente ao criador da teoria com breve relato biográfico, bem como ao processo de difusão, legitimação, desafios e outras informações que se encaixam nas explanações semelhantes.

No capítulo oito, o autor documenta a trajetória da folkcomunicação, oferecendo ao leitor o acesso a uma vasta produção acadêmica na área, com seus respectivos autores e ano das publicações. Este capítulo, sem dúvida, constitui um dos mais ricos da obra, especialmente pensando em quem inicia uma pesquisa neste campo e necessita de material para construir seu aporte teórico.

Dentre outros méritos da obra, merece relevo o fato de o autor reunir num único volume o conhecimento já acumulado a respeito desta teoria. Ela funciona, por assim dizer, como um verdadeiro manual de consulta indispensável para quem queira empreitar pesquisa na área. Nela é possível encontrar desde a embrionária idéia de Beltrão, sua evolução, acolhida e difusão, bem como as possibilidades várias que a folkcomunicação oferece como teoria de pesquisa na relação entre cultura popular e a mídia, inclusive no ciberespaço.

Mídia e Cultura Popular coloca a folkcomunicação em nossas mãos, numa linguagem leve. É ciência sem entrave vocabular. Está aí um ótimo e indispensável subsídio para os estudantes de comunicação e todos que queiram se aventurar no universo desta disciplina. Num país como o nosso, em que os meios de comunicação ainda estão controlados por meia dúzia de famílias, urge que proliferem estudos que busquem entender os processos de intercâmbio e sobrevivência das culturas marginalizadas, conferindo-lhes o direito à voz.

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Jornalista, Caxias do Sul, RS