O tema – a veloz expansão do idioma espanhol –, sempre interessante de observar (e de certa forma inquietante para a comunidade lingüística luso-brasileira), volta à superfície, agora trazido por matéria recente, meio alarmista, do jornal Le Monde: diminui a olhos vistos o uso da língua francesa, falada e escrita, no Parlamento Europeu, onde mais e mais predomina, soberbo, o inglês. Os espanhóis, alertas, logo aproveitam a brecha e saem em defesa e promoção de sua língua com outra matéria, esta em El País, sob o título "Cervantes na aldeia mundial – nos Estados Unidos existem quatro vezes mais estudantes de espanhol do que de francês".
De fato, com base em um relatório da centenária Modern Language Association of America, prestigiosa entidade acadêmica dedicada ao estudo das línguas e das literaturas, o jornal espanhol coloca mais uma pá no que considera o lento declínio do francês: o castelhano converteu-se no idioma estrangeiro mais estudado nas universidades americanas, com 746.200 pessoas matriculadas, hoje, para aprender o idioma, quatro vezes mais que o francês e sete vezes mais que o alemão.
Essa procura pela língua espanhola se explica pela presença de 35 milhões de hispânicos residentes nos Estados Unidos, obrigando políticos e empresários locais a estudá-la com afinco para obter resultados rápidos e efetivos na comunicação direta com eleitores e clientes. Falar espanhol com fluência e correção é vital para subir na vida em certas áreas dos Estados Unidos, como o Sudeste e o Sul, a Flórida sobretudo, onde se concentra grande parte do show business latino-americano – indústria fonográfica, vídeo e televisão.
Estados Unidos e Brasil
Também na Europa se expande, segundo o competente Instituto Cervantes, o estudo do espanhol: entre 2001 e 2003, em 16 países da Europa Central e Oriental, 123 mil alunos estudaram a língua, a maioria mulheres, entre 17 e 25 anos, não tanto por razões práticas ou profissionais, mas por puro objetivo cultural. Dados curiosos, para não dizer exóticos, ressalta El País, revelam que só na Romênia registrou-se, nos últimos quatro anos, um aumento de 150% nesse interesse pelo espanhol, 80% na Polônia. Feitas as contas, mais de 3,43 milhões de jovens estudantes europeus escolheram, nesse mesmo período, o espanhol como língua estrangeira.
Euforias patrioteiras à parte, observam estudiosos mais sóbrios do assunto que esses números, quando comparados à expansão incontrolável do inglês, não são tão impressionantes, mas é inegável o fato de que o espanhol continua avançando na condição de idioma mais falado no mundo, depois do chinês mandarim, do inglês e do hindi. Para os especialistas Emilio Lamo de Espinosa e Javier Noya, do Instituto Cervantes, "a globalização é boa para o idioma espanhol, da mesma forma que é ruim para outras línguas, como o francês".
Como se explica isso?
"(…) A existência de uma ampla comunidade de ambos lados do Atlântico garante a reprodução demográfica do espanhol, os meios de comunicação reduzem o risco de fragmentação, as emigrações latino-americanas estendem a capacidade de reprodução da língua, o comércio e o peso da cultura em espanhol impulsionam um excelente mercado como língua estrangeira, e dois grandes países, Estados Unidos e Brasil [sic], asseguram o predomínio do espanhol na América…"
Tal orgulho e respeito no cultivo da língua se estende em boa medida aos países latino-americanos, que têm o espanhol como idioma pátrio, 22 no continente, o México na liderança.
Fermentado e colorido
Respeitosos aplicadores das regras da rigorosa Real Academia Española, sem com isso restringir ou impedir o florescimento (como o Brasil em relação a Portugal) de um espanhol nativo ágil, musical, cheio de picardia e inventiva, os lingüistas e filólogos mexicanos, muitos deles integrantes da Academia Mexicana de la Lengua, tratam também de preservar um dos grandes tesouros culturais do país – as 62 línguas indígenas faladas por trinta etnias nativas, sendo as principais o náhuatl e o maia, utilizadas por um milhão de habitantes. (Quase todas sem escritura, o que dificulta bastante o aprendizado, pois é preciso conhecer muito bem a pronúncia das palavras e dos sons para se entender e se fazer entender).
Um dos mais recentes esforços para continuar nessa batalha do bem-escrever, mantendo num nível no mínimo satisfatório a pureza do idioma, num país sujeito a fortes influências baratas da cultura popular americana e dos vícios da linguagem informática, é o lançamento da Enciclopedia de la Ortografía del Idioma Español (Editer’s Publishing House, México, 629 páginas, US$ 50), do escritor e professor mexicano Emilio Rojas, radicado nos Estados Unidos, onde dá cursos de ortografia.
Trata-se de um portentoso manual da língua, trabalho meticuloso e apaixonado de muitos anos, no qual o professor Rojas explica, num tom "científico e didático", a importância de uma ortografia aceitável, considerando que "a língua escrita tem uma imensa repercussão social, pois é por meio dela que o pensamento humano enfrenta o futuro."
O espanhol, acentua Rojas, "é um idioma harmonioso, corpóreo, ativo, com cerca de 400 mil palavras de uso comum, falado por 400 milhões de cidadãos no mundo – cada uma com seu próprio significado –, com as quais se pode dizer materialmente qualquer coisa; mais ainda, é um dos poucos idiomas existentes com esse poder de expressão".
O que é afinal para ele a língua espanhola?
"É um idioma que fermenta suas particularidades desde a época em que o domínio romano sofre influência das próprios povos conquistados (…) Procede 75% do latim vulgar, colorido com palavras gregas, recheado de vocábulos árabes, contrastado por galicismos, anglicismos, germanismos e até mesmo palavras de origem pré-hispânica, tudo misturado numa transformação que não termina, nem vai terminar (…)"
Belo cartapácio
Para aproveitar e desfrutar de toda essa riqueza e diversidade lingüística, ele insiste e recomenda, é preciso respeitar as normas ortográficas, que incluem pontuação e acentuação corretas, conjugação certa de verbos, uso adequado de prefixos e sufixos, ortografia das letras, entre outros temas analisados no livro, que no fundo é uma inteligente e sólida tentativa de sistematização do léxico.
As chamadas faltas de ortografia, observa Rojas, podem "provocar críticas, risos, as duas coisas ao mesmo tempo, mas o fato é que a mensagem ficará relegada a um segundo plano, o escrito não vai inspirar nenhum respeito, nem mesmo para quem o escreveu (…)"
Na parte final do livro, o professor Rojas inclui longa lista de vocábulos pré-hispânicos, com destaque para os idiomas maia, tarasco, otomí e zapoteco. Palavras muito usadas ainda nos dias de hoje, na verdade incorporadas de forma definitiva ao dia-a-dia dos mexicanos, como são, entre muitas outras, achichincle, chipote, petate, enchilada, jorongo, mapache, coyote, talacha, tepache, jitomate, maceta, paliacate, papalote.
O belo cartapácio do professor Rojas, que ainda não recebeu o merecido destaque na imprensa cultural mexicana, se junta a outras publicações recentes sobre o complexo e desafiante tema da pureza do idioma, preocupação constante dos estudiosos da língua espanhola no país.
Um apelo que nos serve
Um deles é o filólogo José G. Moreno de Alba, presidente da Academia Mexicana de la Lengua, autor de uma preciosidade intitulada Minucias del Lenguage (Fondo de Cultura Económica), cujo segundo volume, lançado no ano passado, Nuevas Minucias del Lenguaje, Suma de Minucias del Lenguaje, só agora começa a repercutir mais amplamente.
Nele, o professor Moreno de Alba, em 341 artigos apresentados por ordem alfabética, analisa e reflete sobre sua paixão maior: a correção lingüística. Mas o faz de maneira leve e bem-humorada, sem ranço acadêmico ou tom pontificante, numa forma descritiva e expositiva, nenhum radicalismo. Mostra, por exemplo, o pedantismo gerado pela praga do politicamente correto de certos setores da sociedade, que falam e escrevem, sem nenhum constrangimento, coisas como "ciudadanizar la cultura" (tão horrendo como nosso famoso "Em nível de Brasil…")
Veterano e respeitado cultor do tema, Moreno de Alba já fazia, em 1978, séria advertência aos jornalistas em geral, no trato diário com o idioma:
"Não devemos permitir, por exemplo, que aqueles que dispõem dos meios de comunicação transmitam ao povo, ingênuo e indefeso, que os consideram como modelos a serem imitados, não só vozes e expressões impróprias, como neologismos perniciosos; também, com aterradora freqüência, francas vulgaridades, que em pouco tempo ouvimos repetir em todo o país, sobretudo entre os jovens, mais dispostos a aceitar as novidades, embora estas venham em demérito da própria dignidade (…)"
Resguardadas proporções e diferenças entre os dois países, não se ajustaria o apelo do filólogo mexicano à perfeição à situação do português no Brasil?
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Jornalista, escritor e tradutor brasileiro radicado no México