Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Gabo e o desejo do livro

Não que Gabriel García Márquez necessite de uma grande promoção no lançamento de um novo livro, mas um pouco de controvérsia, arrumada ou não, sempre ajuda no resultado final. É o que vem acontecendo na Cidade do México, onde Gabo mora, desde a quarta-feira (20/10), quando as duas editoras do escritor e jornalista colombiano mandaram às livrarias locais 100 mil exemplares de seu mais recente romance, Memoria de mis putas tristes. A tiragem inicial para América Latina e Espanha deverá bater no milhão de exemplares.

Tal tem sido a repercussão da obra que as editoras já planejam soltar, ainda nesta semana, outros 50 mil exemplares. Só na prestigiosa Livraria Gandhi, ao sul da capital mexicana, foram vendidos, na mesma quarta-feira, 30 exemplares, duas horas depois de abertas as portas. Dois dias depois, um giro pelas outras boas livrarias da cidade (Fondo de Cultura Económica, El Parnaso, Librerías de Cristal, El Sótano) revelaria que a procura do livro de Gabo estava acima da média, embora não houvesse nenhum material de promoção à vista – cartazes, folhetos ou mesas especiais de novidades. A publicidade restringiu-se a anúncios de página inteira nos grandes jornais, como o Reforma, além de materinhas especulativas plantadas nas páginas culturais.

De acordo com a gerência da Gandhi, a livraria encomendou 12 mil exemplares para suas filais, quando os pedidos de livros de outros escritores do continente não costumam passar dos 4 mil. De um sucesso europeu garantido, o português José Saramago, a livraria normalmente pede 7 mil exemplares, para começar. Nem mesmo os best-sellers americanos, do tipo O código Da Vinci, de Dan Brown, com 5 mil exemplares, chegam perto do escritor colombiano.

Os mal-entendidos, por assim dizer, começaram com a apresentação oficial do livro à imprensa, sem a presença de Gabo, que nos últimos anos, batalhando discreta e denodadamente com sérios problemas de saúde, se mostra mais e mais arredio a aparições públicas, limitando suas saídas de casa às atividades da Fundação Nuevo Periodismo Iberoamericano, dedicada a aprimorar o jornalismo da região.

(Seus contemporâneos do boom latino-americano, o mexicano Carlos Fuentes e o peruano Mario Vargas Llosa, não perdem nunca uma oportunidade para brilhar em pessoa no lançamento de seus livros.)

Tempos velozes

No lançamento de Memoria de mis putas tristes, o editor da Mondadori, o também jornalista Braulio Peralta, além de justificar a ausência do escritor – ‘Ele não gosta de interferir quando se trata de sua obra literária’ – açulou a curiosidade dos coleguinhas ao confirmar um boato sobre a estranha ocorrência de dois finais diferentes do livro – sendo que uma das versões, pirata, já circulava nas ruas de Bogotá uma semana antes do lançamento no México.

Assim, a existência dessas cópias piratas, com um suposto final diferente, seria um oportuno empurrão publicitário gratuito para as editoras, coisa que editor Peralta desmente de forma categórica. De todo modo, a pressa com que o livro foi enviado às livrarias, por causa do temor de que as cópias piratas aparecessem também no México, acabou criando outros problemas: uma das livrarias, por exemplo, a da concorrida rede de drugstores Sanborn’s, adiantou-se ainda mais e colocou o livro em suas mesas de novidades sem autorização das editoras, obrigando estas a pedir a suspensão das vendas.

Braulio Peralta disse que García Márquez de fato havia, nos últimos seis meses de escritura, modificado o final do livro, ‘coisas de autor’, e por essa razão o desenlace da história é diferente do que aparece nos exemplares apreendidos em Bogotá – frutos de roubo na editora local do autor, a Norma. Os piratas não podiam imaginar que Gabo, meticuloso, estaria mudando o final até o limite. Mas quanto a tirar proveito desse fato, ‘ni hablar’:

‘A publicidade barata, corrente e ilegal não beneficia a nada. Para qualquer editora séria, que paga impostos e está contra a corrupção, utilizar um truque desse tipo seria absurdo’, garantiu o editor.

No sábado (23/11), o próprio García Márquez, numa entrevista telefônica ao jornal Monitor, foi lacônico em sua declaração – que deu, noblesse oblige, primeira página: ‘Quando eu ponho um ponto final no livro, é ponto final. O resto é com os editores’.

O fato é que o assunto não ficou bem esclarecido, mas no fundo isso pouco importa, se foi ou não uma armação publicitária essa história de dois finais diferentes. O público leitor de García Márquez queria mais era comprar o livro, não só (nestes tempos velozes de internet) com escassas 109 páginas, mas de preço acessível no mercado mexicano.

Ofício de escrever

Mas, afinal, o que explicaria esse interesse pouco usual diante de um novo livro de um escritor veterano, há anos cobrado pelos seus leitores que esperam sempre um novo Cem anos de solidão, façanha, como mostra a história da literatura mundial, que raros escritores têm sido capazes de realizar?

Não se dá o mesmo fenômeno com Vargas Llosa e Fuentes? Não existiria um cansaço, de resto muito natural, nesses titânicos esforços de escrever novos romances, que ao final pareceriam um pouco repetitivos, ou a mesma história reescrita? E para que enfrentar os humores incertos dos críticos, sobretudo os mais jovens, sempre dispostos a insinuar a aposentadoria aos escritores e com isso ganhar rápida notoriedade?

No caso de García Márquez, que há dez anos não escrevia um relato ficcional, a fluência, a graça e a beleza do texto em espanhol – história banal à parte – mostram que ele ainda está em invejável forma. Da leitura deste último livro não sairão decepcionados seus admiradores, pois numa narrativa curta, leve e bem humorada, permeada de um tom nostálgico e memorioso, próprio de sua idade (tem 77 anos), ele conta as peripécias de um jornalista noventão que, antes de morrer, quer realizar um sonho bem masculino nestes confins machistas do mundo: deflorar uma virgem – no caso uma menina de l4 anos. Para tal façanha recorre a uma dona de bordel sua conhecida.

Narrada na primeira pessoa, no estilo coloquial típico do autor, a história contém, além da ação propriamente dita – a busca da virgem – reflexões sobre a idade avançada, os estragos do tempo na saúde, os deslumbramentos do amor carnal, as lembranças boêmias do jornalismo antigo, o próprio ofício de escrever.

Tudo, com toda certeza, também inspirado em parte na vida cheia de peripécias do escritor. E tudo, sem dúvida alguma, do jeito que só Gabriel García Márquez sabe contar: histórias da gente destes tristes trópicos.

Divertissement de boa safra. Precisa mais?

******

Jornalista e escritor brasileiro radicado no México