Há exatos 50 anos surgia a expressão ‘Revolta da Chibata’. Criada por Edmar Morel (1912-1989) como título de seu livro, acabou batizando o movimento dos marinheiros de 1910, foi incorporada e serviu de base para a elaboração de memórias coletivas, livros de história, criações artísticas e, recentemente, do discurso oficial sobre o tema. Consagrou-se, assim, uma interpretação do episódio que valoriza o papel dos marujos e do líder principal da rebelião, João Cândido, como agentes históricos em defesa da dignidade e da justiça social.
Naquele apagar da década de 1950 o assunto, abafado durante décadas, causava inquietação e curiosidade: vários escritores e jornalistas que intentaram ou começaram a escrever sobre ele foram proibidos por diversas maneiras, algumas mais, outras menos violentas. O autor da obra, o cearense Edmar Morel, era jornalista conhecido, com o nome presente desde a década de 1930 nas manchetes dos principais jornais do Rio de Janeiro. Edmar aliava a militância de esquerda nacionalista e democrática próxima do socialismo com a presença nos meios de comunicação de massas. Era autor já de outros trabalhos: livros-reportagens, livros de história e até personagem de uma história em quadrinhos sobre a Expedição Fawcett nas selvas do Xingu.
A soma daqueles dois fatores – assunto candente e autor em evidência – geraram centenas de notícias, reportagens e críticas literárias em todo o país, colocando o ex-marujo João Cândido no foco das atenções, algo que só havia ocorrido na época da rebelião, quase meio século antes [o material referente às repercussões da obra, bem como parte da documentação usada pelo autor para elaborá-la, integram o Acervo Edmar Morel, Divisão de Manuscritos da Fundação Biblioteca Nacional (RJ)]. A figura de João Cândido tornara-se lendária já no período da revolta, quando era tratado como herói e surgiu seu apelido de Almirante Negro, mas com o passar das décadas foi sendo coberta com um manto de esquecimento.
A Marinha de Guerra brasileira (acompanhada por alguns intelectuais civis), em pronunciamentos oficiais, reagiu contrariamente ao episódio e sua memória, como, aliás, fizera em discursos e repressões contemporâneos ao próprio levante e, ainda, reagiria no mesmo tom verbal quase um século depois, como se verá a seguir.
Censura e autocensura
A Revolta da Chibata, o livro, foi tema de crônicas de Rubem Braga, Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto), Paulo Mendes Campos, Raimundo Magalhães Junior, Joel Silveira e Eneida de Moraes, entre outros, e esteve na lista dos mais vendidos ao lado de outro lançamento, Gabriela, cravo e canela, de Jorge Amado que, aliás, compareceu à noite de autógrafos e cumprimentou João Cândido, do mesmo modo que Vinicius de Morais, Manuel Bandeira e Clarice Lispector.
Entre 1958 e 1964, o Brasil viveu clima de liberdade democrática que possibilitou a ampliação de manifestações em vários setores da sociedade. Naquele ano, o presidente Juscelino Kubistcheck, num gesto inédito, rompeu as relações do Brasil com o Fundo Monetário Internacional (FMI), iniciativa aplaudida pelas esquerdas que promoveram manifestação de apoio em frente ao Palácio do Catete, ainda sede da presidência da República (enquanto Brasília não ficava pronta). Nesta manifestação reapareceu em público o ex-senador Luiz Carlos Prestes, na clandestinidade há 11 anos, desde que o Partido Comunista Brasileiro (PCB) fora colocado na ilegalidade.
Também 1958 foi o ano de lançamento da peça teatral Eles não usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri, representando o cotidiano da vida e luta operária e prenunciando a criação dos Centros Populares de Cultura (CPCs da UNE). Encerrado o ano foi a vez, em 1º de janeiro de 1959, da vitória da Revolução Cubana, com a tomada do poder em Havana pelos rebeldes de Sierra Maestra, há também exatos 50 anos.
João Cândido, que continuava a vender peixes na Praça XV (RJ) em situação de pobreza, recebera várias vezes Edmar Morel, prestara depoimentos e esclarecimentos. Agora o chamado Almirante Negro considerava o livro como ‘minha história’ e literalmente assinou embaixo, participando de sessões de autógrafos com o autor. A primeira edição, Editora Irmãos Pongetti, dentro do espírito da época, foi lançada inicialmente entre os gráficos e trabalhadores manuais que confeccionaram a obra. Datada de 1959, ficou pronta no final de 1958.
A segunda edição de A Revolta da Chibata veio pela Editora Letras e Artes em 1963, pleno governo João Goulart, do qual Edmar Morel integrava o segundo escalão, como assessor de imprensa de dois ministérios, Saúde e Obras Públicas. O autor também, nesse período, estava à frente do jornal O Semanário, pertencente a Oswaldo Costa (oriundo do Modernismo, da Revista de Antropofagia e da militância no PCB) e que reunia intelectuais nacionalistas de esquerda, em geral não marxistas, como Barbosa Lima Sobrinho, Josué de Castro, Francisco Julião (das Ligas Camponesas), Osny Duarte Pereira, Gondim da Fonseca, Joel Silveira, entre outros, grupo ao qual incorporou-se Nélson Werneck Sodré.
O então jovem Sílvio Tendler, sonhando em iniciar a carreira de cineasta, resolveu fazer seu primeiro trabalho, uma película sobre João Cândido. Filmou várias cenas do ex-marujo em sua casa na Baixada Fluminense, mas sem som. Este material, escondido para evitar a repressão após o golpe militar, acabaria destruído.
Com a ditadura implantada a partir do golpe civil-militar de 1964, o nome de João Cândido não ficou mais em relevo, ao contrário, era perigoso mencioná-lo. Tanto que ele concederia de forma clandestina depoimento no Museu da Imagem e do Som (RJ), em 1968. [João Cândido, o almirante negro, Rio de Janeiro, Gryphus, Museu da Imagem e do Som (MIS), 1999. O depoimento de João Cândido está transcrito na íntegra (embora com algumas falhas de transcrição) e o retrato do marujo André Avelino de Santana vem publicado na capa e no miolo da obra, erroneamente identificado como sendo de João Cândido. O MIS guarda também o arquivo sonoro.] A variada imprensa nacionalista e de esquerda (existente antes de 1964) foi destroçada e, perdida num desvão da memória histórica, ainda está a merecer atenção de historiadores. Edmar Morel, exonerado do cargo público concursado que exercia, teve seus direitos políticos cassados (não podia votar, nem ser votado, nem ter emprego público ou conta em banco público, além do estigma social que acompanhava esta condição), sobretudo, devido à publicação deste livro aqui apresentado. E não pode mais sobreviver da profissão de repórter, resultado da perseguição de oficiais da Marinha e seus aliados, da censura e autocensura nos grandes veículos de comunicação, embora ele tenha continuado a publicar artigos e livros e atuado como assessor sem vínculo empregatício.
Trabalhadores do mar
Há exatos 40 anos falecia João Cândido, cuja densidade dramática e silenciosa do enterro é descrita de forma enxuta neste livro. E também há exatos 20 anos faleceu Edmar Morel, na véspera do Centenário da Proclamação da República e da primeira eleição direta para presidente da República desde a ditadura.
Enfim, para não perder o fio de datas redondas e trajetórias entrelaçadas, vale assinalar uma das linhas de continuidade presente na publicação desta obra. Quem conhece o sentido dos versos iniciais da canção O Mestre-Sala dos Mares, de João Bosco e Aldir Blanc (‘Há muito tempo nas águas da Guanabara/ o Dragão do Mar reapareceu’) pode entender melhor os laços simbólicos e históricos entre a Revolta da Chibata e as lutas contra a escravidão realizadas pelas camadas pobres da população. Tal comparação foi criada por Edmar Morel que, há exatos 60 anos, lançou o livro Dragão do Mar – o jangadeiro da Abolição (reeditado como Vendaval da Liberdade).
Dragão do Mar era o apelido dado pelos abolicionistas ao jangadeiro cearense Francisco José do Nascimento, o Chico da Matilde (são exatos 170 anos de seu nascimento): caboclo, classificado como ‘pardo livre’ e pobre, foi um dos principais líderes do árduo movimento social (incluindo greves, confrontos com as forças armadas envolvendo abolicionistas, pescadores pobres, mulheres e escravos alforriados) que culminou com a Abolição do cativeiro no Ceará em 1884, ou seja, quatro anos antes da Lei Áurea. Depois da Abolição nos verdes mares do Ceará, o Dragão do Mar ‘reapareceu’ nas águas da baía da Guanabara na ‘figura de um bravo marinheiro’.
Ambos, João Cândido e Francisco do Nascimento, interligados pela narrativa de Edmar: dois ‘heróis da plebe’, trabalhadores do mar, oprimidos do ponto de vista racial e social e que encabeçaram movimentos de grande repercussão e vitoriosos em seus objetivos imediatos de combate ao escravismo e suas permanências.
Pesquisa iconográfica
O desenrolar dos acontecimentos, entretanto, não segue a exatidão de datas celebradoras. Ao longo dos governos militares não houve proibição formal do livro A Revolta da Chibata, mas o clima era nitidamente desfavorável: a própria Editora Letras e Artes recolheu os exemplares da segunda edição das livrarias, cessou a distribuição e, em troca dos direitos autorais, cedeu o estoque ao autor que distribuiu-o gratuitamente entre amigos.
A terceira edição de A Revolta da Chibata só viria a sair em 1979 (são exatos 30 anos…), Edições Graal, ainda durante a ditadura, mas já com o processo de abertura democrática avançando, ano da anistia aos presos políticos, de retorno dos exilados e de início do mandato do último general-presidente. Compareceram ao lançamento na Livraria Muro (um dos locais identificados com a resistência cultural à situação), em Ipanema, figuras como Mário Lago, Leandro Konder, Evaristo de Moraes Filho, Millôr Fernandes, Adão Pereira Nunes, João Bosco, entre outros.
E a quarta edição, última revista e atualizada pelo autor, é de 1986, pela mesma editora, tornando-se o texto estabelecido – já que a cada vez Edmar atualizava e acrescentava dados relativos à memória e repercussões recentes do episódio. Ainda que o livro tenha seu ponto final, o tema continua vivo e vibrante, com variadas continuidades, que se intensificam na medida em que se aproxima o Centenário da Revolta da Chibata (2010).
A 5ª. edição aqui apresentada, sob o selo da Editora Paz e Terra (que teve papel destacado na resistência política e cultural à ditadura civil-militar pós-1964), é, pois, a definitiva. Com o texto da 4a. edição mantido na íntegra, incorpora-se o material inédito das memórias de João Cândido (Anexo I) e transformam-se em anexos escritos de outros autores que já constavam de edições anteriores: o testemunho de Evaristo de Moraes (Anexo II), um dos advogados dos rebeldes, e o texto do comandante Luís Alves de Oliveira Bello (Anexo III, cujos originais estão no Serviço de Documentação da Marinha). A presente edição traz, ainda, Apresentação e notas explicativas de rodapé feitas pelo organizador com o intuito de situar a obra no seu contexto e, também, atualizar referências e documentos que não estiveram ao alcance do autor do livro. É incluída parte expressiva de ampla pesquisa iconográfica, com algumas imagens inéditas ou até então não devidamente identificadas Trata-se de edição que surge num momento de revalorização do episódio e do personagem.
Outorga póstuma
Relembrar hoje João Cândido e a rebelião de cerca de 2.300 marinheiros da qual ele se tornou símbolo significa compreender que seus gestos e palavras trazem à tona problemas ainda inquietantes para a sociedade brasileira, como o racismo, a desigualdade social, a violência cotidiana do Estado sobre as camadas pobres da população e a democratização das Forças Armadas – sem esquecer do mito de que existe uma tradição ordeira, pacífica e conciliadora na história do Brasil.
Após a quarta edição de 1986, continuam a ocorrer repercussões sobre o assunto. Inicialmente, e de modo mais acentuado, por iniciativa de variados setores da sociedade civil.
Desde 2001, a peça ‘João Cândido do Brasil – a Revolta da Chibata’ já teve mais de mil apresentações em todo o país pelo grupo Teatro União e Olho Vivo (TUOV). Com 1h50m de duração, texto e direção do espetáculo são de César Vieira, heterônimo de Idibal Piveta, que se destacou como advogado de presos e perseguidos políticos durante a ditadura civil-militar. O TUOV, com sede em São Paulo, tem quatro décadas de experiência em apresentar teatro para populações que não estão acostumadas a freqüentá-lo, fazendo exibições nas ruas, praças, periferias e, também, em sindicatos, associações de moradores e movimentos sociais, além dos teatros convencionais. O grupo já recebeu prêmios nacionais e internacionais.
Cerca de mil marinheiros expulsos da Marinha, presos ou perseguidos durante a ditadura civil-militar, organizados em duas entidades, consideram João Cândido como Patrono dos Marinheiros do Brasil. A Unidade de Mobilização Nacional pela Anistia (UMNA, criada em 1983) e o Movimento Democrático pela Anistia e Cidadania (MODAC, criado em 2002 por ex-integrantes da UMNA), ao mesmo tempo em que lutam para conseguir os direitos de seus associados a uma reparação plena e justa pelas arbitrariedades que sofreram, fazem o mesmo em relação a João Cândido e sua memória. Alguns integrantes destas associações conheceram pessoalmente o Almirante Negro e o homenagearam em vida.
Movimentos contra a desigualdade racial e em defesa da consciência negra fazem constantes referências ao líder da Revolta da Chibata. Seu rosto aparece reproduzido em faixas, camisetas, livros, agendas e pôsteres. Em 20 de novembro de 2005 ocorreu uma marcha com 10 mil participantes em Brasília, ocasião em que Zeelândia Cândido (filha do marujo e falecida no ano seguinte) foi recebida pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva. Anote-se que as comemorações do Dia da Consciência Negra e alusivo a Zumbi dos Palmares, 20 de novembro, em geral se sobrepõem ao dia 22 de novembro, data da eclosão da Revolta da Chibata.
Acampamento João Cândido foi o nome escolhido, em assembléia com cerca de 3.500 famílias sem-teto, para batizar a ocupação de uma área vazia em Itapecerica da Serra, região metropolitana de São Paulo, maio de 1997. Esta iniciativa, que busca solução para os problemas de moradia urbana e trabalho, sofreu perseguições policiais e pressões judiciais. Foram transferidos para outra área, onde restam 350 famílias aguardando medidas para resolver a situação de miséria em que vivem.
Em 2003 o marujo foi homenageado no desfile de escolas de samba de São Paulo, pela Camisa Verde e Branco com o tema_A revolta da chibata. Sonho, coragem e bravura. Minha História: João Cândido, um sonho de liberdade_. A agremiação carnavalesca apresentou um samba que se encerrava assim: ‘Glória ao nosso povo brasileiro / Meu sonho hoje é verdadeiro / Sou Mestre-sala, / João Cândido, o guerreiro.’
O principal líder da insurreição ocorrida na baía da Guanabara mereceu Homenagem Especial na entrega da 18ª. Medalha Chico Mendes de Resistência, em cerimônia no Arquivo Nacional (RJ), em 31 de março de 2006. A outorga póstuma desta medalha foi promovida pelo Grupo Tortura Nunca Mais (RJ), entidade que denuncia os atentados contra Direitos Humanos praticados durante a ditadura civil-militar e na atualidade. A comenda foi recebida por Adalberto do Nascimento Cândido, o Candinho, filho caçula do chamado Almirante Negro.
Contradições do poder
Embora o tema ainda seja desconhecido de grande parte da população, tal conjunto de iniciativas tem gerado uma consciência mais nítida na sociedade brasileira e levou, de algum modo, o Estado nacional a alterar sua posição (ou indiferença) sobre o assunto.
A anistia póstuma a João Cândido e aos demais marinheiros que se rebelaram foi sancionada pelo presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, em 23 de julho de 2008, em cerimônia no Palácio do Planalto. Em nota oficial, a presidência da República afirmou ‘reconhecer os valores de justiça e igualdade pelos quais lutaram os revoltosos’. Esta lei federal, número 11.756, refere-se à ‘chamada Revolta da Chibata’. O projeto, de autoria da senadora Marina Silva (PT/AC) e do deputado Marcos Afonso (PT/AC), fora aprovado no Senado por unanimidade e, também do mesmo modo, na Câmara dos Deputados, a 13 de maio de 2008, data dos 120 anos da Abolição da escravatura. Não houve qualquer crítica ou restrição da parte de representantes de todos os partidos no Congresso Nacional. Porém, foi vetada pelo presidente da República a indenização aos descendentes dos rebeldes de 1910, sob alegações infundadas de tecnocratas que permanecem encastelados no aparelho de Estado. Aprovado pelo Senado também de modo unânime, tramita na Câmara projeto do senador Paulo Paim (PT/RS) que inscreve o nome de João Cândido no Livro dos Heróis da Pátria.
Uma estátua-monumento de João Cândido, com três metros de altura, inicialmente colocada nos jardins do Museu da República (RJ), foi reinaugurada sobre as pedras do cais da Praça XV, Centro do Rio de Janeiro, em festejo público com a presença do presidente da República em 20 de novembro de 2008. Foi um gesto expressivo do Chefe do Estado brasileiro, reconhecendo e valorizando oficialmente a memória e a história do marujo que teve papel decisivo na luta pelos Direitos Humanos. Ali mesmo o ex-marinheiro, durante quatro décadas, trabalhou modestamente como pescador artesanal. Sem a presença de representantes das Forças Armadas, o monumento foi colocado em frente ao Quartel da Ilha das Cobras (onde João Cândido e outros marujos foram presos, torturados e alguns assassinados) e a poucos metros do 1º. Distrito Naval onde, durante a ditadura civil-militar de 1964, funcionou o CENIMAR, notório local de tortura a opositores do regime.
A própria Marinha de Guerra, em seus pronunciamentos oficiais, parece ainda não ter absorvido o episódio quase centenário. Nota do Comando da Marinha, publicada na Folha de São Paulo (9/3/2008) pelo jornalista Marcelo Beraba, qualifica a revolta de 1910 como ‘um triste episódio da história’ e ‘uma rebelião ilegal, sem qualquer amparo moral ou legítimo’, devido, entre outros aspectos, à ‘ruptura do preceito hierárquico’. Afirma o mesmo comunicado que ‘o movimento não pode ser considerado como `ato de bravura´ ou de `caráter humanitário´’ e que a reivindicação do fim dos castigos corporais deveria ter sido encaminhada por meio ‘do exercício da argumentação e sobretudo do diálogo entre as partes’.
Vamos, então, ao exercício da argumentação. Melhor faria a Marinha Nacional (mais uma vez ultrapassada pelos acontecimentos) em reconhecer os erros cometidos em 1910 e, num gesto de grandeza, virar esta página do passado e pedir perdão pelas violências historicamente comprovadas: os castigos corporais, as demissões injustas, prisões, degredos, torturas e assassinatos praticados por representantes do Estado nacional. Tais reações indicam como as estruturas de dominação combatidas pelos rebeldes de 1910, apesar das mudanças, permanecem na sociedade brasileira, ao que parece, baseadas em preconceitos de raça e de classe nem sempre explicitados. Se a questão é realmente a quebra da hierarquia, por que então não condenar igualmente o alferes Tiradentes, as proclamações da Independência e da República apoiadas por militares, os levantes do Tenentismo na década de 1920, o Movimento de 1930 com ampla participação nos quartéis, o malogrado golpe integralista de 1938 (no qual havia muitos integrantes da Marinha), os motins militares anti-legalistas na década de 1950 e o golpe civil-militar de 1964? Existem, na Marinha, oficiais e subalternos que não pensam daquela maneira retrógrada, mas suas vozes ainda não se fazem ouvir publicamente. As contradições governamentais na área de Direitos Humanos não estão presentes apenas na Marinha: a Advocacia Geral da União, por exemplo, também em 2008, foi designada para defender os acusados de praticarem torturas em dependências oficiais durante a ditadura civil-militar implantada a partir de 1964.
Agora, sem riscos
O vice-almirante reformado e empresário Hélio Leôncio Martins publicou, em 1988, o livro A revolta dos marinheiros de 1910, versão difundida pela Marinha de Guerra (em 2008 estava incorporado à página eletrônica oficial da instituição) e uma tentativa de contestar a vertente da ‘revolta da chibata’ [Hélio Leôncio Martins. A Revolta dos Marinheiros, 1910, São Paulo, Editora Nacional; Rio de Janeiro, Serviço de Documentação Geral da Marinha, 1988]. Condena erros e violências praticados pelos dirigentes da Marinha naquele episódio, mas considera os marinheiros ‘subversivos e terroristas’ e procura desqualificar a figura de João Cândido. Anote-se que Leôncio Martins enviou um exemplar a Edmar Morel com dedicatória cordial. Os tempos eram outros.
No interior do Estado nacional e do governo federal, a postura predominante passou também a ser outra. A começar pela iniciativa pioneira da Fundação Banco do Brasil que, em seu Projeto Memória de 2008 (idealizado em 2007), homenageou a figura de João Cândido produzindo um conjunto multimídia distribuído em milhares de escolas e bibliotecas de todo o país: livro fotobiográfico, vídeo documentário, exposição, material didático e endereço eletrônico. Este Projeto permitiu, ainda, considerável renovação da pesquisa documental sobre o episódio histórico, com a localização e digitalização de centenas de imagens e documentos, alguns inéditos, como as ilustrações e as memórias de João Cândido publicadas nesta edição. Este Projeto Memória, produzido pela Abravídeo, foi apoiado pelo Arquivo Nacional (órgão da Casa Civil da presidência da República), do mesmo modo que ministérios como o da Igualdade Racial, da Cultura, dos Esportes e dos Direitos Humanos se posicionaram publicamente no mesmo sentido.
Tratar do assunto atualmente não representa mais risco (e pode até trazer benefícios), embora as polêmicas continuem. Historiadores acadêmicos como Mário Maestri Filho, Marcos Silva, Sílvia Capanema de Almeida, Paulo R. de Moraes, José M. Arias Neto, Álvaro Nascimento e José Murilo de Carvalho publicaram livros ou artigos sobre o tema, bem como o jornalista Fernando Granato e o escritor Moacir Lopes, este com obra de ficção. Além disso, grandes jornais como Folha de S.Paulo, O Globo, O Estado de S.Paulo, Jornal do Brasil, Zero Hora, além de emissoras de televisão como TV Brasil, TV Globo, Globonews, SBT, Record e Bandeirantes entre outras, exibem ocasionalmente notícias e até matérias sobre João Cândido.
Herói do povo
Esta obra de Edmar Morel aqui apresentada baseou-se em pesquisa rigorosa sobre fontes documentais diversas, algumas inéditas até então: relatos orais, imprensa periódica, manuscritos, debates parlamentares, livros, artigos, textos oficiais, poemas, caricaturas, correspondências privadas e memórias. Redigida no estilo ágil e direto do jornalismo, sempre traz explícito o ponto de vista do autor – que cita, incorpora e se posiciona diante de visões contrárias e hostis aos feitos dos marujos de 1910. O texto, rico em informações, tem um eixo temático e cronológico definido e objetivos precisos. Ao lado de tais características, esta publicação consolidou, em linhas gerais, um ponto de vista interpretativo sobre o episódio, mesmo que vários ‘seguidores’ tenham suas diferenças e críticas quanto a obra. Além de participar na elaboração da memória sobre o tema, o livro é, também, uma referência historiográfica. Historiadores navais e civis têm se esforçado por elaborar, a seu turno, uma vertente historiográfica para se contrapor à linha interpretativa apresentada no livro de Edmar Morel.
Tornando-se obra matriz sobre a rebelião dos marinheiros e a figura de João Cândido, o livro A Revolta da Chibata, em alguns momentos e locais, passou a se confundir e a se fundir com a história nele narrada. Seu autor tornou-se personagem, seja pela integridade bretchiana do criador que incorpora na própria vida a criação e a causa da luta, seja por ter se posicionado de maneira corajosa, como escritor e cidadão, diante de assunto ainda recente, maldito e mal-dito – que implicava não apenas interpretação do passado, mas um desafio ao tempo presente e às estruturas injustas e violentas que perduravam. E perduram sob outras formas e aparências.
Edmar enfrentou situações adversas e repressões, mas nunca recuou nem se arrependeu de ter escrito o trabalho pelo qual reafirmava orgulho. O autor partilhou a trajetória de embates e perseguições, valorizações e ocultações da memória e da história por ele elaboradas através de pesquisa, análise e narrativa. Como certas canções ditas folclóricas que, em sintonia com aspirações, demandas e sentimentos coletivos, são apropriadas e transmitidas oralmente, muitas vezes desaparecendo a autoria – assim aconteceu e acontece, em parte, com este livro.
Bastante citada e usada (embora nem sempre de maneira rigorosa e honesta) por autores que tratam do tema em livros, artigos, veículos de grande repercussão e textos acadêmicos (entre os quais é referência incontornável sobre a temática), o conteúdo desta obra ultrapassou a fronteira dos círculos letrados e se transmite, também, oralmente. A narrativa nela elaborada – escolha ou realce de personagens, episódios, informações, documentos, pontos de vista e posicionamentos, denúncias e emoções, inclusive a figura do ‘herói popular’ – é repetida e recontada, sobretudo, nos meios populares urbanos e em movimentos sociais, em folhetos de cordel e canções, espalha-se em versões repetidas, condensadas e às vezes imprecisas pela Internet, surge em conversas anônimas e informais em residências, ruas, favelas, associações e botequins, aparece em comícios e atos públicos.
Tive a oportunidade de presenciar uma destas cenas em dezembro de 1989, durante exposição montada no saguão da Estação Central do Brasil (RJ) a partir do acervo de fotos e do livro de Edmar Morel e vista por milhares de trabalhadores pobres que por ali passam diariamente. Em volta dos painéis aglomeravam-se muitos curiosos e alguns, mais velhos, destacavam-se emocionados contando histórias ‘do tempo da chibata’ e lembrando terem conhecido parentes que sofreram tais castigos corporais.
E já no século XXI minha filha Ana Paula (a única bisneta que Edmar conheceu), ao fazer pesquisa de campo em Ciências Sociais numa favela carioca, ouviu compositores da Velha Guarda narrarem a história e cantarem sambas que compuseram em homenagem àquele que chamam de herói do povo: João Cândido na Revolta da Chibata. Ela corretamente identificou ali, ainda que sem citações, o trabalho de seu bisavô. [Rio de Janeiro, 1º de janeiro de 2009]
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Historiador