O interesse pelo estudo dos fenômenos comunicacionais situados na confluência da indústria midiática e da cultura popular constitui a principal motivação do livro Mídia e Cultura popular (São Paulo, Paulus, 2008). Procedente da geração que chega à universidade nesta alvorada do século 21, esse é o tipo de demanda também oriunda dos novos profissionais da mídia, dos agentes de políticas públicas e das lideranças atuantes nos movimentos sociais. Por dever de ofício, todos eles se defrontam, embora nem sempre estejam em sintonia, com as manifestações singulares dos grupos que permanecem à margem da sociedade afluente.
Instado a dar entrevistas sobre a mídia dos excluídos a jovens que participam de programas de iniciação científica ou a repórteres pautados para produzir notícias e comentários, bem como a mestrandos e doutorandos seduzidos pelo novo campo de estudos, percebo que lhes falta conhecimento holístico sobre o assunto. Sem visão de conjunto e carentes de perspectiva histórica, os neófitos tendem a patinar teoricamente ou a equivocar-se metodologicamente no tratamento dos processos típicos da folkcomunicação.
Assim sendo, decidi sistematizar o conjunto de textos que venho escrevendo nos últimos 40 anos sobre a matéria, contribuindo para esclarecer o que é a folkcomunicação, como a disciplina se desenvolveu academicamente, quais os seus gêneros e formatos, como vêm sendo pesquisados tais objetos, quem são os ícones emblemáticos do campo ou para onde caminham os estudos em fase de construção.
Principais objetos de estudo
Não obstante venha testemunhando o campo folkcomunicacional desde o começo, confesso que só recentemente arregacei as mangas para adentrar o território das manifestações culturais daquelas populações que vivem à margem da modernidade. E o fiz justamente no espaço em que me sentia seguro: o das apropriações da comunicação tradicional das periferias pelos meios de difusão simbólica que abastecem as elites privilegiadas, particularmente a imprensa.
Talvez por isso mesmo tenha me sentido confortável para produzir uma obra de natureza didática, organizando o referencial acumulado pela disciplina, desde a intervenção seminal de Luiz Beltrão até chegar às tendências contemporâneas, incluindo as explorações heterodoxas que tanta polêmica suscita entre os herdeiros históricos do legado beltraniano.
Minha pretensão não é outra senão a de guiar, pelas sendas do conhecimento estocado, os que se iniciam no campo, oferecendo-lhes pistas, anotando conceitos, indicando metodologias e eventualmente fazendo explorações empíricas, como a que ousei ao descortinar a presença da folkcomunicação na internet.
O livro está formatado em dez capítulos que sintetizam o progresso da folkcomunicação como disciplina acadêmica, classificando e definindo seus principais objetos de estudo, mapeando as alternativas metodológicas testadas e validadas. Julguei útil acrescentar dados factuais, que permitam aos iniciantes refazer historicamente o itinerário percorrido pelos que já se estabeleceram na área. Também incluí perfis biográficos, que podem servir como paradigmas para as novas gerações.
O complexo do colonizado
Como se trata de um caleidoscópio, estruturado a partir de anotações que venho fazendo há vários anos, foi inevitável a repetição de fatos ou a reiteração de argumentos que se encontram explícitos nos capítulos introdutórios mas voltam a aparecer mais adiante. Trata-se de um artifício pedagógico, a que me rendi em benefício da compreensão contextual dos acontecimentos que dão sentido ao processo histórico.
Minha esperança é a de que este livro contribua para ampliar o contingente dos que se interessam pelo estudo da folkcomunicação, enriquecendo o conhecimento sistemático de suas manifestações típicas, que se renovam continuamente, como conseqüência do embate dialético entre tradição e modernidade, popular e erudito, massivo e segmentado.
Quando esboçou as matrizes da teoria folkcomunicacional, Luiz Beltrão talvez não tivesse consciência da importância desse tipo de estudo para elucidar a natureza contraditória da sociedade globalizada que emerge do conflito de civilizações hoje evidente. Sua modéstia intelectual representou uma barreira para que as teses por ele defendidas conquistassem a ágora mundializada. Também é forçoso reconhecer que a conjuntura não lhe era favorável, como produtor de conhecimento inovativo numa sociedade periférica, acomodada às contingências geopolíticas que conduzem ao isolamento acadêmico e alimentam o ancestral complexo do colonizado.
Cartografias particulares
Ao inventariar o pensamento folkomunicacional e descortinar suas tendências recentes, consolidando nesta obra os fragmentos das minhas anotações como observador participante ou os recortes das minhas próprias intervenções no terreno empírico, move-me, sem dúvida alguma, a intenção de ampliar a difusão do legado beltraniano além fronteiras.
Dou-me por satisfeito se, pelo menos, contribuir para sensibilizar as vanguardas da nossa comunidade acadêmica em relação à originalidade, vitalidade e atualidade da pesquisa sobre os caminhos cruzados entre a cultura popular e os fluxos midiáticos, neste momento em que transitamos para a sociedade do conhecimento. E nada melhor para alcançar esta meta senão mapeando o campo, iluminando os textos canônicos e sinalizando as fontes heterodoxas. De posse do referencial cognitivo aqui explicitado, os leitores poderão realizar uma empreitada, a um só tempo edificante, utópica, sedutora, qual seja, a de produzir cartografias particulares.
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Professor emérito da ECA-USP e titular da cátedra Unesco de Comunicação na Universidade Metodista de São Paulo