Celebridades fabricadas aos borbotões pela imprensa acabaram por influenciar a cobertura da 13ª. FLIP (Feira Literária de Paraty), avaliada como “sem estrelas” pela Folha de S. Paulo (6/07) e comparada nas redes sociais a SPFashion Week. Celebridades são emplumadas e arrogantes, a Fashion Week desfila exterioridades sem conteúdo. Se esses dois conceitos se definem como “estrelas”, então a FSP acertou. Mas não enxergar as discretas, essenciais, imperdíveis estrelas que vagaram por Paraty entre os dias 1 e 5 deste mês faz pensar que alguma coisa poluiu a capacidade da imprensa de separar o lixo do luxo de saber, conviver, aprender, debater. O luxo de ter ali, à mão, estrelas de primeira grandeza.
Eram o escritor cubano Leonardo Padura, o dramaturgo britânico David Hare, a crítica literária argentina Beatriz Sarlo – para citar alguns. Pelo menos esses ofertaram ao Brasil o fomento que merecemos mas anda escasso. Esses três entre uma profusão de provedores de alimentos para o cérebro em 21 mesas e encontros literários pipocando em toda a cidade, antiga vila de pescadores, reduto de hippies e local onde no século XVIII o avô materno de Thomas Mann escolheu manter seu alambique na fazenda Boa Vista.
Leonardo Padura
Bastaria Leonardo Padura, atolado por centenas de leitores loucos para dizer “eu sou trotskista” – segundo ele, o próprio Lula disse o mesmo – depois de lerem seu fantástico O Homem que Amava os Cachorros (2013,Boitempo, orelha de frei Betto, premiado na França, Itália, América Latina). As 585 páginas em estilo quase policial reabilitaram Leon Trotski, quase humanizaram seu assassino, o espanhol Ramon Mercader, e detonaram em todas direções Josef Stalin num cenário que vai da União Soviética à Cuba passando pela Espanha, México, Noruega, França. Já é um clássico que vai virar filme, produzido pela França e Estados Unidos. Outras adaptações de seus livros para TV, escritas por ele e sua mulher, Lucia Lopez Coll, serão rodadas em Havana. Padura também foi roteirista do filme em cartaz no Brasil, Retorno à Ítaca dirigido pelo francês Laurent Cantet e filmado em 17 dias em Havana que, por conter críticas de expatriados desiludidos com a Revolução Cubana de 1959, foi “desconvidado” de participar do Festival de Cinema de Havana no final do ano passado.
Padura não teve o espaço que merecia na imprensa que cobriu a FLIP, não quiseram torná-lo estrela. Mas era. Autor de oito romances policiais protagonizados pelo detetive Mario Conde que queria ser escritor, de romances biográficos sobre a perseguição em Cuba aos maçons, religiosos e homossexuais como A Novela de Mi Vida (ed. espanhola Tusquets, a ser traduzido pela Boitempo), e o próximo a sair no Brasil, também pela Boitempo, Hereges, sobre a fatídica rota do navio Saint Louis lotado de 900 judeus fugindo do nazismo que não chegou a porto nenhum — e um Rembrandt que desapareceu.
Há uma crítica nem sempre velada à censura em Cuba – delações, exílios, pobreza, intrigas políticas, daí a edição de seus livros, há 20 anos, na Espanha.. Mas Padura, 60 anos, não sai de lá onde encontra os elementos para seus livros. “Escrevo sobre Cuba em diversos momentos, a do século XIX, a dos anos 40 e 50, a da Revolução até hoje…”
Num de seus textos escritos para La Memoria y el Olvido, ele confessa que queria ser Paul Auster. Não só porque gostaria de ter escrito A Trilogia de Nova York, Brooklyn Follies e Smoke, mas principalmente para que os jornalistas lhe perguntassem as mesmas coisas que perguntam a Paul Auster – sempre sobre literatura. “ Não é estranho que a Paul Auster nunca perguntem sobre os rumos da política norte-americana? … Porém, já sabem, não me chamo Paul Auster, e minha sorte é diferente. Sou apenas um escritor cubano… e as perguntas que me fazem quase sempre são as mesmas, ou muito parecidas…Acho enfadonho que me perguntem o tempo todo sobre a situação política cubana”.
Em Paraty, Padura não escapou. Primeiro o orgulho pelo convite como revelou numa entrevista. “Graças a este romance (O Homem…) pude conquistar leitores brasileiros, que até então não me davam muita importância, apesar de meus livros funcionarem muito bem em toda América Latina e em muitos lugares da Europa. Mas Brasil é Brasil” (Época, 22/06). Depois, todas as entrevistas versavam sobre Cuba, o regime de Cuba. Na coluna de Ancelmo Góis no Globo (25/06), desabafou;
“Tenho sido entrevistado por jornalistas e me dado conta de que eles não leram um só dos meus livros! A única coisa que importa para eles é a questão política ou social de Cuba…E mais, querem saber o que vai acontecer no futuro. Eu não sou vidente, não. Por outro lado, há ignorância. Uma jornalista brasileira me perguntou, há alguns dias, como eram as coisas em Cuba agora que não existia o embargo! A pobre não tinha ideia de qualquer coisa: é que não há relações diplomáticas, e o embargo continua sendo uma lei norte-americana…É muito estressante falar sempre do mesmo assunto”
Dá vergonha. Padura não sabia que o brasileiro lê 1,7 livro por ano, e que o fenômeno desta FLIP foi ter vendido mais de 2000 livros, menos que nas FLIPs anteriores. Só para ficar nas celebridades os jornalistas deveriam ter lido uma sensacional coluna de Padura justamente na Folha de S. Paulo (14/02), onde conta que Sarita Montiel pode ter tido uma filha ilegítima de Ramón Mercader. A criança nasceu no México na década de 1950, à Sarita disseram que havia nascido morta mas na realidade foi sequestrada e enviada a Valencia na Espanha. O parto por cesárea foi tão violento que seu útero foi extirpado deixando a atriz estéril. Quem tivesse lido O Homem que Amava os Cachorros veria a ponta que Padura deixou para ser desvendada. A atriz ícone do cinema hispânico da primeira metade do século XX havia impressionado Rámon quando o visitou na prisão mexicana de Lecumberri, onde cumpria 20 anos de pena pelo assassinato de Trotski.
David Hare
Foi David Hare quem ironizou em entrevista a forma desprezível como os dramaturgos são tratados pela imprensa (“nos dão estrelinhas como as que recebem os restaurantes, e assim dizem se valemos a pena ou não”). E como a classe é relegada a um plano inferior quando comparada aos escritores. “Os jornais reduzem a cultura a uma commodity sem interesse pelos governos ou patrocinadores”, disse, “e nós não damos o retorno que desejariam”. Os dramaturgos ainda têm de engolir críticas de jornalistas que não respeitam. Com humor bem britânico citou o austríaco Stefan Zweig. “Nós, escritores, merecemos nosso detratores”. Só que Hare não se furta a polêmicas com críticos que julga não merecer – como Frank Rich do The New York Times há 25 anos sobre a baixa qualidade das peças da Broadway.
Suas peças bebem as páginas políticas dos jornais que ele utiliza como matéria prima. “Desde Shakespeare, passando por Bernard Shaw os dramaturgos ingleses bebem nessa fonte, teatro inglês é sociopolítico por definição”. Ele brinca, ”os jornalistas não gostam, dizem que ter opinião sobre sociedade, costumes e política é trabalho deles, não nosso”.A diferença, ele diz, é que com dramaturgos as pessoas se abrem, revelam mais do que contariam a um jornalista” . Foi assim que em 1992 participou dos bastidores da campanha do Partido Trabalhista que virou a peça The Absence of War. Foi a derrocada dos trabalhistas no Reino Unido porque o esquerdista Neil Kinnock não se elegeu Primeiro Ministro. ” E nunca mais me deixaram participar de outra campanha”. As peças de Hare influenciam o panorama político do país e são assistidas por Primeiros Ministros como Tony Blair e David Cameron, The Absence of War foi remontada este ano antes da última eleição que reelegeu Cameron.
“As pessoas estão afastadas da política, elas não acreditam, os políticos não representam mais a democracia”
Indicado ao Oscar por seus roteiros do filme As Horas (2002), e O Leitor ( 2008),cavaleiro do Império Britânico ostentando o título de “sir” e membro da Royal Society of Literature, David Hare, 67 anos, estava encantado com a participação numa feira literária como a de Paraty.
“No teatro, num palco sem efeitos especiais ou tecnologia para atrair a platéia, somos antiquados no mundo de hoje onde os computadores facilitam a profusão de palavras e imagens, montanhas de símbolos nem sempre de qualidade [ele mostra de relance o caderno pautado e escrito a mão, como escreve suas peças]. Estar num palco como o deste festival em Paraty é maravilhoso, por isso estou aqui”.
O dramaturgo, que tem cinco de suas 30 peças qualificadas entre 100 as melhores do Reino Unido no século XX, não teve nenhuma traduzida no Brasil e apenas Dez Encontros foi encenada meteoricamente por José Possi Neto , com Cristiane Torloni.
Ator em algumas peças, em palestra na FLIP Hare deu dicas sobre a arte de atuar. “Eu me sentia péssimo, reclamei com o diretor, ele queria que eu representasse uma emoção que não estava sentindo. E ele ‘ mas isso é atuar’”.
Também explicou por que optou pelo teatro e não pelo cinema. “A peça pertence ao dramaturgo, já vi uma peça de Harold Pinter ser desmontada porque o diretor abusou do direito de alterar os diálogos. No cinema o dono do filme é o roteirista, o diretor, o escritor, o ator, o produtor…todos chamam o filme de seu”. Não quer dizer que ele despreze cinema, foi roteirista de vários e disse como aprendeu o ofício. “Com Louis Malle. Todos os dias, durante dez dias, Malle me fazia contar para ele como seria meu roteiro e eu não sabia por quê. No décimo dia, já exausto, eu reduzi a história em 25 minutos e aí ele disse ‘ agora você está pronto para escrever seu roteiro”.
Hare é adepto das séries como Mad Men, House of Cards (“o que conta é o ritmo, mais do que o sentido”) mas não gosta de tudo. “Quando George Lucas me convidou para roteirizar Stars Wars IV reagi,“ “meu Deus, vou ser obrigado a assistir o I, II, e o III?”
Beatriz Sarlo
Aos 73 anos Beatriz Sarlo veio lançar a revista digital Peixe Elétrico e eletrizou a plateia ao ser entrevistada por Silvia Colombo na casa da Folha. Contou como, do grupo de intelectuais que se reuniu em março de 1978 para lançar com pseudônimos a revista Punto de Vista, em plena ditadura, só restou ela. “Em agosto o grupo todo estava morto… menos eu”. Beatriz ficou na revista até 2008, mantendo contato com a esquerda de toda América Latina através de exilados no México. E dos professores, escritores e críticos literários Jorge Schwartz, Roberto Schwarz e Antonio Cândido. “Principalmente convivendo com Vinicius de Moraes, todo argentino naquela epoca era íntimo de Elis, e pensava que podia sambar”. As coisas foram mudando. “Antonio Cândido olhava Buenos Aires como a metrópole mais perto do Brasil depois de Paris, mas o Brasil foi se modernizando e a Argentina, ficou petrificada. Na crise de 2001 começamos a ser pobres e até a esquerda dizia ‘ a Argentina se latinoamericanizou’. Hoje o país abriga 25% de pobres”.
Ela lastima que hoje não haja intelectuais na equipe de Cristina Kirchner. “Ela não escuta os intelectuais, nem lê seus livros”. Lastima ainda que a Argentina, um país alfabetizado nos anos 30, hoje esteja perdendo o lugar nesta área para o Chile e o Uruguay. Concorda que o cinema na Argentina seja de primeira qualidade. “Pudera, as escolas para cineastas são particulares, e caríssimas”. E não vê diferença dos homens na condução de presidentes mulheres no Chile, Brasil e Argentina . “Mas é bom ter o lugar disponível para mulheres também. A mais poderosa não é nenhuma delas, é Angela Merkel, mesmo sem carisma, no dia em que se for os alemães se suicidam”. Critica a falta de uma política de propriedade intelectual que permite a herdeiros censurar a obra de seus parentes. “ Por exemplo, com Maria Kodama, herdeira de Borges, todos os argentinos têm problemas”
Na palestra descreveu seu encantamento com o Brasil quando chegou pela primeira vem em 1965 com 20 e poucos anos, sem nenhum conhecimento prévio a não ser o desejo de ver a Brasilia recém inaugurada. E justamente por não ter viajado como jornalista, quando teria informações pré-concebidas, esse encontro sem planejamento com a Amazônia e o Brasil ficou marcado para sempre.
Hoje ela fala da crise das esquerdas, de como Lula pareceu cumprir o sonho latino, no poder um metalúrgico cercado de intelectuais, e como seu carisma foi importante para a vitória, assim como foi para Peron, Getulio Vargas, Hugo Chaves. “Mas acabou a esperança”, fechou a palestra, ” ficou só a satisfação de ver que, no Brasil, os corruptos vão para a prisão, no meu país não há um só na cadeia”