A historiografia brasileira encontra-se frente a um paradoxo, neste início de século. Cresce o volume de pesquisas sobre a imprensa, mas são raras as generalizações capazes elucidar seu desenvolvimento ou discernir melhor o seu futuro.
A explicação plausível para esse fenômeno repousa no caráter predominantemente monográfico dos estudos hegemônicos, sem que possamos tecer quadros holísticos ou compor visões panorâmicas e muito menos vislumbrar tendências.
Essa obsessão pelo micro-história reflete evidentemente a ausência de políticas públicas capazes de induzir a comunidade acadêmica a se comprometer com projetos a longo prazo. Ao invés de fortalecerem o conhecimento integrado, em sintonia com projetos socialmente relevantes de interesse nacional, as agências de fomento se acomodam, tolerando a pesquisa fragmentada, dispersa e não raro datada, repetitiva.
Ao revisar nossa bibliografia na área midiológica, contamos nos dedos aqueles trabalhos científicos que dão conta de processos amplos e palmilham territórios estratégicos, no tempo e no espaço.
Balanço crítico
Fogem evidentemente desse padrão os livros-texto, produzidos com intenção didática, como, por exemplo, aqueles assinados por Juarez Bahia – História da Imprensa Brasileira, 4ª. ed., rev., São Paulo, Ática, 1990 – ou por Antonio Costella – Comunicação – do grito ao satélite, 5ª. ed., Campos do Jordão, Mantiqueira, 2002. Mesmo sendo produtos da compilação de fontes secundárias, constituem obras de grande utilidade para guiar os primeiros passos das novas gerações de jornalistas.
Entretanto, no conjunto das publicações nutridas em fontes primárias, restam somente poucos livros que correspondem ao perfil acima delineado, cuja autoria pertence a brasileiros atuantes no território nacional: Rizzini, Martins, Sodré e Nascimento.
A matriz é, sem dúvida, o pioneiro estudo de Carlos Rizini – O livro, o jornal e a tipografia no Brasil, lançado com a marca tradicional da Livraria Cosmos (Rio de Janeiro, 1946) e reproduzido em fac-símile pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo (1988). Trata-se hoje de raridade bibliográfica, abarcando todo o espectro da mídia impressa. Desde o suporte tecnológico (tipográfico) aos seus produtos culturais (livros e periódicos).
Na seqüência vem o erudito ensaio de Wilson Martins – A palavra impressa (1957). Ele faz um competente balanço crítico do itinerário percorrido pelo livro e pelas bibliotecas, desde as origens até sua introdução e desenvolvimento em nosso território. Fora de circulação durante algum tempo, este volume voltou ao mercado livreiro no fim do século passado. Sua terceira edição tem o selo da Editora Ática (São Paulo, 1998).
Incursão pioneira
Por sua vez, o clássico História da Imprensa no Brasil (1966) foi escrito pelo pai da ‘História Nova’, aquele que provocou acirrada polêmica nos círculos intelectuais brasileiros, na alvorada do regime militar pós-64. Nelson Werneck Sodré chocou os historiadores nativos aplicando referencial marxista para interpretar as contradições da nossa civilização gutembergiana. Essa opção teórico-metodológica constitui a marca registrada do historiador em sua obra polifacética. Não obstante, o livro em pauta contém o mais bem documentado inventário da nossa imprensa. Trata especialmente dos jornais diários, cujas coleções foram exaustivamente consultadas pelo autor. Nelas encontra evidências para ilustrar suas teses sobre as relações entre a imprensa e o capitalismo. A 4ª edição desse livro foi publicada postumamente pela Editora Mauad (Rio de Janeiro, 1999). Ainda em circulação, ela inclui capítulo inédito sobre o pensamento de Werneck Sodré a respeito da mídia no Brasil, no final do século 20.
A lista pode ser ampliada com a inclusão de um quarto título, embora matizado pelo caráter regional. Refiro-me ao monumento hemerográfico representado pela História da Imprensa de Pernambuco (1821-1954). Obra em 14 volumes, escrita pelo jornalista Luiz do Nascimento, seus originais foram confiados pelo autor à Editora da Universidade Federal de Pernambuco. Ainda permanecem inéditos alguns volumes dedicados à imprensa municipal. Resultante de exaustiva pesquisa documental, realizada em bibliotecas e arquivos, esta obra de referência atualiza e complementa os Anais da imprensa periódica pernambucana de 1821-1908, incursão pioneira de Alfredo de Carvalho, o guardião da memória da nossa imprensa no início do século 20.
Interpretação heterodoxa
Não tenho nenhuma dúvida em situar História Cultural da Imprensa – Brasil (1900-2000), magnificamente escrito pela professora Marialva Barbosa e publicado pela Editora Mauad (Rio de Janeiro, 2007), no mesmo patamar ocupado pela vanguarda nacional da História da Mídia. Sua instigante, deliciosa, sedutora, e em certo sentido sherlockiana obsessão para recolher os vestígios do tempo, cobre todo o século 20, perfilando como narrativa de fôlego sobre a modernização da nossa mídia impressa. O aparente reducionismo espacial – por estar concentrada no território carioca – ganha elasticidade e densidade, durante o curso da escrita, justamente pela captação da amplitude extraterritorial do objeto pesquisado.
A imprensa carioca extrapola a natureza geopolítica que a poderia atrelar ao estigma paroquial ou provincial para se tornar a expressão viva da universalidade brasileira. Ela assimila mestiçamente os padrões importados d’além-mar. Mais do que isso: processa os modelos aculturados e os difunde para todos os quadrantes da nossa geografia. Esse fluxo perdura até quando a Cidade Maravilhosa catalisa a hegemonia típica das capitais nacionais.
Marialva Barbosa revela, nesta obra, uma impressionante capacidade empática. Comporta-se metodologicamente como historiadora, periodizando a trajetória da imprensa cultivada pela Belacap. Mas, ao mesmo tempo, recorre ao empirismo jornalístico para reconstruir cenários dotados de exuberante simbolismo. Ou para pinçar e projetar personagens singulares que dão sentido aos jogos de cena. Nesse diapasão, constrói uma narrativa brilhante, nutrida pela factualidade subjetiva e sofisticada pela interpretação heterodoxa.
Calmaria metonímica
É importante destacar que a autora conquista lugar de destaque na constelação dos historiadores midiáticos brasileiros pela ousadia de romper com os padrões da pesquisa histórica tradicional. Desde sua obra de estréia – Os donos do Rio: imprensa, poder e público (Rio, Vício de Leitura, 2000) – ela se engaja na corrente que pensa a história como epistéme. Sua ambição intelectual é construir uma narrativa onde o factual e o ficcional se mesclam e se recriam. Trata-se de postura investigativa embasada nos princípios historiográficos defendidos por Agnes Heller: explicitar o implícito; publicizar o secreto; buscar a coerência existente no que tem aparência de incoerente.
Mesmo transgredindo os postulados epistemológicos em que se fundamentam seus predecessores, Marialva não os recusa como fontes irradiadoras de sabedoria utilitária. Ancorada na sutileza da reportagem em profundidade de que se valeu Rizzini para tecer o perfil enigmático de Hipólito da Costa, ela esboça instantâneos elucidativos de Wainer e Chateaubriand. Da mesma forma, ampara-se na sensibilidade literária de Martins para construir descrições apetitosas de ambientes e de conjunturas, eivadas de sabor coloquial. A exemplo de Werneck Sodré, ela sentou praça no quartel da memória nacional, explorando a riqueza das coleções de jornais microfilmados para separar o joio do trigo. Ou seja, para navegar habilidosamente entre a tempestade metafórica dos gêneros informativos e a calmaria metonímica dos gêneros opinativos, vestígios indeléveis das fontes que privilegiou.
Universo simbólico
Pela primeira vez temos uma História da Imprensa que não se restringe às operações capitalistas dos barões da imprensa, nem às maquinações políticas atribuídas aos governantes que já recorriam às ‘verbas secretas’ para irrigar os ‘mensalões’ tão cobiçados pelos jornalistas venais (empregados e patrões). Alem desses vetores alicerçados na Economia e na Política, a autora recorre às variáveis típicas da Etnografia para identificar nuances imperceptíveis nas fontes históricas convencionais. E, desta maneira, monta um quebra-cabeça de peças significativas, recolhidas na ironia da música popular, na sinédoque de filmes melodramáticos ou nas elipses dos romances folhetinescos.
O resultado dessa aventura protagonizada pela repórter travestida de historiadora se expressa nos capítulos fascinantes deste livro de atualidades, onde o passado se revitaliza como se fora memória em movimento. Década após década, o leitor vai acompanhando o ritmo da modernização da sociedade brasileira, cuja imprensa desempenhou o papel de laboratório especular.
As nossas mutações tecnológicas foram testadas, em certo sentido, nos jornais e nas revistas, difundindo-se de forma sutil ou de modo ostensivo pelo conjunto do tecido social. Assim sendo, os agentes jornalísticos se tornavam arautos do porvir desejado, protagonizando feitos sob medida para nutrir a agenda dos futuros historiadores, impelindo-os a se assumirem como exegetas de um passado mítico.
A leitura da narrativa de Marialva Barbosa deixa a sensação de que a História da Imprensa abandona decisivamente a tradição do ‘nariz de cera’ para agir como abre-alas de uma ‘pirâmide invertida’ na Galáxia de Heródoto. Trata-se de rico e fascinante universo simbólico, povoado por ‘histórias de interesse humano’, enriquecido pela sensibilidade dos ‘colunistas’ de plantão, alertado pela argúcia dos ‘comentaristas’ setoriais e continuamente desafiado pela vigilância critica dos ombudsmans.
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A autora
Marialva Barbosa é professora titular do Departamento de Estudos Culturais e Mídia e do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestre e doutora em História pela UFF, possui pós-doutorado em Comunicação pelo CNRS-LAIOS (França). Pesquisadora do CNPq e ‘Cientista do Nosso Estado’ da Faperj, dedica-se há várias décadas à pesquisa histórica dos meios de comunicação no Brasil. É coordenadora dos Núcleos de Pesquisa da Intercom e do GT de Jornalismo da Rede Nacional de Pesquisadores de História da Mídia. No momento coordena o Laboratório de Pesquisa de Mídia e História no Programa de Pós-graduação da UFF.
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Professor Emérito da Universidade de São Paulo, diretor-titular da cátedra Unesco/Metodista de Comunicação e presidente da Rede Alfredo de Carvalho para o Resgate da Memória da Imprensa e a Construção da História da Mídia no Brasil