Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

História de uma cobertura criminosa

O jornalista Carlos Dorneles, repórter da TV Globo, escreveu uma obra que considero essencial para a compreensão de como se dá a relação entre veículos, profissionais de mídia e policiais, sob o clamor da sociedade. Bar Bodega – Um Crime de Imprensa (2007, Editora Globo) contém um relato potente o bastante para nos envergonhar a todos. É desses testemunhos que afiançariam, de uma vez por todas, o fracasso da decência na condição humana, não contivesse, também, os germes da inteligência, do espírito de justiça e da bravura que, embora isolados, caracterizam na plenitude algumas poucas personagens da sua narração. Eis um apanhado do que o leitor encontrará no livro.

O crime

Madrugada de 10 de agosto de 1996. Moema, zona sul de São Paulo. Homens armados rendem os funcionários da choperia e anunciam o assalto. Fogem do local minutos depois, deixando para trás o terror, muitas dúvidas e o rastilho de uma série de novos crimes que seriam cometidos em nome da paz e dos bons costumes – tudo sob o patrocínio de um Estado usurpador do direito e de uma mídia acumpliciada pela ofensa aos estatutos legais, como o imperativo do princípio do contraditório, e – mais importante, por inspirar e, em última análise, totalizar– pela indiferença à verdade irrefutável dos fatos.

O duplo assassinato, do dentista José Renato Tahan, de 26 anos, e da estudante de odontologia Adriana Ciola, de 23, a par do constrangimento físico e psicológico sofrido pelas demais vítimas que estavam no lugar, forneceria uma senha para o vale-tudo policial e uma contra-senha para a insensatez desenfreada da mídia. Passes-livres escritos em caracteres dourados, dadas algumas peculiaridades: o crime fora praticado em um bairro nobre, contra pessoas de classe média, em um ambiente freqüentado pela elite paulistana. Havia outro ingrediente: a choperia pertencia a três atores famosos: Luiz Gustavo e os irmãos Tato e Cássio Gabus Mendes.

Mídia algemada ao Estado

A sociedade precisava responder. Não a dos confins da periferia, mas aquela que, esquecida de tudo o mais – como a violência rotineiramente cometida contra aqueles que não lhe dizem respeito –, não poderia agora aceitar nem silenciar sobre o que, em outros extratos sociais, pode até não ser admissível, mas é, na melhor das hipóteses, indigno da sua atenção.

O Estado e a mídia algemaram-se e, sôfregos, puseram-se a caçar os autores, quaisquer que fossem eles e ainda que não o fossem, em vez de investigar (em sua estrita acepção) a autoria do crime. Dias depois, nove suspeitos foram presos e anunciados pela polícia como os responsáveis pelos delitos. Manchetes vulcânicas, comentários vazios e enviesados, histeria dos detentores da verdade policialesca: vários jornalistas cumpriram à risca a parte que lhes coube no que, com o tempo, soube-se ser a perpetração de uma das maiores injustiças (conhecidas) da história do Brasil.

Um raro cumpridor do dever

Deveriam ter seguido o exemplo de um promotor de justiça corajoso e – absurdamente raro – cumpridor dos seus deveres. Eduardo Araújo da Silva examinou, cuidadosamente, os depoimentos dos acusados, que diziam ter confessado sob tortura cometida por policiais civis. Pôs-se, então, a investigar, em paralelo com policiais do Serviço Reservado da PM. Concluiu, então, pela veracidade das denúncias: agentes do Estado medieval haviam, de fato, imposto toda sorte de sevícias a cidadãos inocentes que, intimidados pela dor e pelo abandono, acabariam por inventar uma participação no episódio. O promotor se baseara, entre vários outros elementos, no trabalho técnico do perito criminal Francisco La Regina, responsável pela reconstituição e cuja análise demonstrava que as peças (como os próprios acusados presos) simplesmente não se encaixavam nos fatos.

A mídia omitiu-se e, longe de apurar as queixas, preferiu fazer coro com a fraseologia policial, afiançando a tese discutível de que todo bandido sempre diz que é inocente e que só falou porque apanhou. Ao invés de pressionar pela apuração das denúncias de tortura, maus jornalistas fizeram um cerco de proteção ao delegado responsável pelo inquérito, João Lopes Filho, e atearam fogo à indignação de uma classe média que à justiça preferiu a vingança, fosse contra quem fosse.

‘Ação desvairada da mídia’

Tal simplificação não encontraria eco no Poder Judiciário. Com base no relatório do promotor, que pedia a libertação dos presos por falta de provas, o juiz Francisco Galvão Bruno mandaria soltar sete dos nove acusados (dos dois que permaneceram presos, o menor Cléverson Almeida de Sá estava sendo processado por um outro assalto e Marcelo Nunes Fernandes tinha pena por roubo a cumprir): Benedito Dias de Sousa, Jailson Ribeiro dos Anjos, Luciano Francisco Jorge, Marcelo da Silva, Natal Francisco Bento dos Santos, Valmir da Silva e Valmir Vieira Martins recuperaram, enfim, a liberdade. Não é difícil, contudo, imaginar o tamanho e a natureza do impacto pessoal, familiar e social da injustiça na vida de cada um deles, dali em diante.

Em março de 1997, o juiz José Ernesto de Mattos Lourenço condenaria quatro dos seis novos réus. Na sentença, lê-se este trecho, sobre o tratamento dispensado pela mídia aos nove acusados anteriores:

‘Seria a imprensa também a provocadora da ação desvairada que vitimou jovens inocentes que injustamente foram presos, sem qualquer interferência, é verdade, quanto aos sofrimentos experimentados? A resposta é sim. Arvorou-se uma parte da imprensa em defensora da sociedade e exerceu uma pressão insuportável e incompatível com o bom senso. De há muito tempo a imprensa afastou-se da função de noticiar o fato e assumiu ares de julgadora, na ânsia desesperada de noticiar escândalos e explorar a miséria humana, sem se dar conta dos seus limites. Passaram a acusar, julgar e penalizar com execração pública. A lição ainda não serviu. Diariamente continuam explorando as notícias na corrida louca da audiência que, na verdade, tem por finalidade o lucro, o dinheiro dos patrocinadores que não têm qualquer escrúpulo em mostrar seus produtos, à custa da degradação…’

A obra de Dorneles é bem escrita, o texto é informal, preciso e elegante. A narrativa é conduzida pelos desencontros da vida de Cléverson, o menor infrator acusado de outros crimes e ponto de partida para a teia sinistra que se formaria com a detenção de outros rapazes que seriam dados como ‘culpados’ pela polícia.

Há uma ressalva, porém, à fórmula da narração. Ainda que amparado pelas decisões da Justiça, pela coincidência e pela consistência dos depoimentos daqueles que foram considerados injustiçados, Dorneles perigosamente abraça os relatos em sua literalidade, contando os fatos (como se deram as torturas, por exemplo) em minúcias, como se o próprio autor houvesse testemunhado tudo, in loco. Trata-se de um risco desnecessário. Sempre haverá a possibilidade de uma incorreção factual, motivada por diversos fatores, como os exageros, as omissões da lembrança, as ‘travas’ e, o que não é de duvidar em tal atmosfera, distorções que busquem aprofundar o abismo já existente entre a vítima e o verdugo, por impulsos de compensação psicológica.

Afora esse parêntese, que pode indicar a necessidade de uma maior dose de prudência ao leitor, Bar Bodega – Um Crime de Imprensa é uma obra fundamental, um lembrete e um alerta para todos os agentes da cobertura policial: os acusados, as vítimas, os familiares, os policiais, os advogados de defesa, os promotores, os juízes, os jornalistas, todos devem tê-la como referência. E, claro, os donos dos veículos, também.

Outros trechos

‘A imprensa continuava publicando informações contraditórias, dia após dia. Depois da reconstituição, voltou a afirmar que o assassino do dentista era Valmir da Silva, e não mais Marcelo Nunes Ferreira, o `Marcelo Negão´. Ninguém parecia se importar nem com o fato de que o tão procurado Marcelo Negão, líder do caso Bodega, quando foi encontrado, era branco. E, obviamente, negava ter o apelido de Negão. Se a polícia dizia que era ele, assim era;’

‘Uma exceção foi o jornalista Luis Nassif. Em artigos na Folha de S.Paulo ou em comentários na Rede Bandeirantes, ele criticou duramente a cobertura jornalística do caso. Ficou falando sozinho;’

[Depois da detenção dos novos acusados]

‘A notícia da prisão emudeceu muita gente, além da imprensa. O secretário de Segurança, José Afonso da Silva, não quis fazer comentários. O delegado João Lopes Filho não foi achado. No dia seguinte, disse que reconhecia que os presos de agora eram os verdadeiros assaltantes do Bodega. Mas negou as torturas mais uma vez. `Não sei o que levou aqueles homens a confessar com tanta riqueza de detalhes.´ A líder do movimento `Reage São Paulo´, Albertina Dias Café e Alves, não quis responder perguntas, fez apenas uma rápida declaração: `Ainda estamos cautelosos porque da primeira vez também existiram confissões´. O pai de Adriana, Carlos Ciola, esteve na delegacia para ver os acusados. Na saída, um comentário rápido: `Não sei o que dizer, apenas quero ver os verdadeiros culpados na cadeia´. O caso Bodega desapareceria rapidamente das manchetes. A prisão dos verdadeiros culpados era um atestado revelador demais do tipo de comportamento que a imprensa adota em situações como essa, quando os acusados são pobres, sem assistência jurídica, sem nenhuma possibilidade de defesa.’

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Jornalista