Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Hitler morreu na Argentina

O jornal O Globo repercutiu o lançamento do livro Grey Wolf: The Escape of Adolf Hitler, dos britânicos Gerrard Williams e Simon Dunstan, segundo os quais o ditador nazista não morreu no famoso bunker. Diversos locutores de telejornais insistem em pronunciar “bánker”, segundo a famosa lei “por que o simples se o complicado também serve?”, mas em alemão se diz “búnker” mesmo, soando às vezes “bunka”.

Mas então onde morreu Hitler? Na Argentina, numa casa de madeira localizada em Villa La Angostura, na Patagônia. Abel Basti, jornalista argentino que mora em Bariloche, diz entretanto que ele foi o primeiro a revelar “a verdadeira história de Hitler”, que fugiu do bunker três dias antes da data de sua morte oficial e o fez na companhia de sua amante e depois esposa Eva Braun. Basti, aliás, acusa os britânicos de plágio.

A versão não é nova e mistura-se a algumas lendas do nazismo nascidas na América do Sul, de ampla circulação em todo o Brasil meridional. Motivos para que se consolidem os há em profusão. Este autor, certa manhã em que tomava café numa padaria de Ijuí (RS), na década de 1970, foi abordado por um caminhoneiro que se apresentou como ex-motorista de Rommel, a famosa raposa do deserto. Tais lendas às vezes vêm misturadas a documentários sérios, elaborados e apresentados por qualificados profissionais de jornalismo, no rádio, na televisão e, naturalmente, também na imprensa escrita, onde quase sempre saíram primeiro.

A imprensa escrita foi a primeira a localizar a casa onde Hitler e Eva teriam residido. Situada num terreno de 400 hectares, às margens do lago Nahuel Huapi, cartão postal da região, é uma construção de madeira e atualmente está à venda.

Submarino

Mas como Hitler veio parar ali? Ele teria sido levado, com a conivência dos Aliados, de Berlim à Espanha, de onde, sob a proteção de Francisco Franco, então no poder, foi de submarino à Argentina, fixando-se na Patagônia. Diz-se também que nem Stalin nem Einsenhower acreditavam que os corpos queimados encontrados no bunker fossem de Aldof Hitler e de Eva Braun.

Diz-se que o piloto que os resgatou, ao revelar a verdadeira história, foi internado num hospício, onde morreu. Diz-se que não era piloto, era pilota. Diz-se que o crânio de Hitler, num museu de Moscou, não pode ser dele porque é de mulher. Diz-se isso, diz-se aquilo. Mas onde está a verdade?

O que agora é retomado, pois essas coisas são retomadas ciclicamente, baseia-se em grande parte no livro Ultramar Sul: a operação secreta do Terceiro Reich, dos autores argentinos Juan Salinas e Carlos de Nápoli, publicado pela Civilização Brasileira (490 páginas, R$ 57,90) e disponível no mercado editorial.

Mas a pulga atrás da orelha do leitor surge porque de fato em 10 de julho de 1945 chegou à base naval de Mar del Plata o submarino alemão U-530, cujo comandante, Otto Wermut, e toda a tripulação se entregaram à Marinha Argentina e foram depois repatriados para os EUA. O sobrenome do comandante significa absinto em alemão e dá nome a um aperitivo conhecido no Brasil como vermute. Quem conta a tal fuga acaba por narrar junto que no caminho o submarino, já em águas do Atlântico, afundou o cruzador brasileiro Bahia. Fizeram isso bêbados pois era temerário provocar vitoriosos que celebravam o fim da Segunda Guerra Mundial. Talvez estejam bêbados alguns dos que contam essas histórias em botecos, onde elas são ouvidas e depois repassadas como verdades históricas.

Em 1947, também o húngaro Ladislao Szabo dedicou o livro Hitler está vivo, repercutido no jornal argentino La Crítica, sobre uma suposta base alemã na Antártida. Segundo Szabo, a expedição alemã deu o nome de Nova Berchtesgaden à base, em alusão à cidade dos Alpes onde os hierarcas nazistas se reuniam em suas mansões.

Algumas semanas depois do U-530, chegou a Mar del Plata outro submarino, o U-977, comandado por Heinz Schaeffer, que desmentiu o autor húngaro num livro publicado em 1952, onde conta o recorde obtido: 66 dias submerso. Quanto ao cruzador Bahia, a Marinha do Brasil investigou e concluiu que ele afundou por acidente, segundo relato de um dos 336 sobreviventes, o primeiro-tenente Lúcio Torres Dias.

Impunidade

Na internet, em http://www.barilochenazi.com.ar, os interessados podem encontrar fotos e resumos do livro de Abel Basti, ex-jornalista do prestigioso jornal Clarín, realmente assombroso, que causa desconcerto e perplexidade: Hitler en Argentina, (412 páginas, 250 imagens, com fotos e documentos inéditos).

Os nazistas levaram a extremos jamais imaginados a crueldade humana. Imaginar que seu maior líder tenha escapado e morrido velho, na companhia dos filhos, impune, se não é lenda, poderá ser uma das maiores reportagens de todos os tempos. Impossível o que é narrado como lenda? Não, se considerarmos que o criminoso de guerra Joseph Mengele morreu impune no Brasil, afogado na praia de Bertioga, e morava em Embu (SP) por décadas, sem ser importunado por ninguém.

Como se vê, nesta parte do Mundo, como já demonstraram à saciedade escritores como o Prêmio Nobel de Literatura Gabriel García Márquez e tantos outros autores do ciclo da literatura fantástica, lendas e verdades históricas convivem misturadas. As fronteiras são tênues e quase sempre móveis. A ver, como dizem os hispanohablantes.

***

[Deonísio da Silva é escritor, doutor em Letras pela Universidade de São Paulo, professor e um dos vice-reitores da Universidade Estácio de Sá, do Rio de Janeiro; autor de A Placenta e o Caixão, Avante, Soldados: Para Trás e Contos Reunidos (Editora LeYa)]