Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

HQ mostra a corte de D. João VI no Rio








Spacca


Nascido em Lisboa, Dom João, o príncipe regente de Portugal no início do século XIX, foi carioca por 13 anos. No período entre 1808 e 1821, ele, sua mulher Carlota Joaquina, sua mãe Dona Maria, seus filhos e sua corte viveram no Rio de Janeiro. Dali, mesmo a um oceano de distância, governou Portugal. É este período, desencadeado por uma fuga literalmente em massa sob a ameaça da invasão de Portugal por Napoleão, que acaba de virar história em quadrinhos em D. João carioca – A corte portuguesa chega ao Brasil, de Lilia Moritz Schwarcz e Spacca, pela Cia. Das Letras.


Conhecido dos leitores por outros quadrinhos históricos publicados pela mesma editora, como Debret em viagem histórica e quadrinhesca ao Brasil e Santô e os pais da aviação – A jornada de Santos-Dumont e de outros homens que queriam voar (vencedor do prêmio HQMix 2006 nas categorias Desenhista Nacional, Edição Especial Nacional e Roteirista Nacional), o paulista Spacca conta por telefone ao Globo como surgiu a idéia deste novo trabalho.


– Levei um ano preparando este livro. Sete meses só na arte. O roteiro da HQ partiu de A longa viagem da biblioteca dos reis, de Lilia Moritz Schwarcz. Ficamos afinando o roteiro. Às vezes, quando precisava de um texto específico para alguma cena, recorria a ela, como no caso de um box sobre a maçonaria. Outras, era Lilia que sugeria: ‘descobri a história da Quinta da Boa Vista…’


HQ é rica em coadjuvantes históricos da corte portuguesa no Rio


O livro é rico em detalhes e recheado de intrigas políticas protagonizadas por figuras como Dom Antônio de Araújo, o Conde da Barca; Dom Rodrigo, o Conde de Linhares; o general francês Junot; o almirante inglês Sir Sidney Smith e o controvertido Lorde Strangford, que deu muita dor de cabeça a Dom João. O príncipe regente, aliás, embora pareça um governante titubeante, é elogiado por Spacca:


– Dom João foi o único rei de sua época que conseguiu estender o poder e a coroa por mais de 13 anos. Ele foi se deixando levar pelas circunstâncias, pela sorte – explica o autor que, na pesquisa do livro, andou pelo Passeio Público e pelas ruas do Centro do Rio.


As influências de autores como Uderzo e Hugo Pratt aparecem num ótimo apêndice em que o autor detalha o processo de criação, assim como a caracterização dos personagens da HQ. É o caso de Lorde Strangford, que ganhou traços do ator inglês Bill Nighy para ficar ‘mais metido ainda’, segundo Spacca. Já Carlota Joaquina vem com receita: mistura de Medéia, Lady Macbeth, Frida Khalo, Dick Vigarista e… Didi, dos Trapalhões. Melhor impossível.


Spacca agora anda ocupado com dois outros lançamentos em quadrinhos: um sobre Monteiro Lobato e outro sobre Jubiabá, de Jorge Amado, escritor cuja obra passará a ser publicada a partir do próximo ano pela Companhia das Letras.


– Escolhi Jubiabá porque é um romance de formação, da primeira fase de Jorge Amado. É o seu quarto livro e o seu primeiro sucesso, além de ser engajado politicamente – conta Spacca, que assistiu a filmes como Jubiabá e Tenda dos milagres, ambos de Nelson Pereira dos Santos, para se inspirar.


Já o outro projeto abordará uma fase pouco conhecida de Monteiro Lobato: de 1927, quando ele era adido comercial do Brasil nos EUA, até 1945-6, época em que o criador do Sítio do Picapau Amarelo estava maravilhado com a América.


– O livro sobre Monteiro Lobato fala de tantos outros personagens que talvez valha a pena desmembrá-lo. Tem Prestes, Getúlio e até Jorge Amado. Outro livro que eu poderia fazer seria sobre a virada dos anos 60. Seria ótimo desenhar aqueles carros ‘rabo-de-peixe’ – diverte-se Spacca.


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De carona na caravela e nas suíças de dom João VI


Mariana Filgueiras # copyright Jornal do Brasil, 22/12/2007


Quem começou com esta história de debochar de dom João VI, tirando o príncipe regente de bonachão, medroso e lambão – reduzindo a uma caricatura, até hoje, um dos mais importantes personagens da história do país – foi o historiador português Oliveira Martins, ensina o especialista no assunto, embaixador Alberto da Costa e Silva. Desde então, é difícil ver referência ao príncipe regente que não esbarre nas coxas de frango guardadas no seu paletó encardido.


– A visão séria de dom João VI, entendendo-o como um estadista, só viria cem anos depois, em 1908, com o historiador pernambucano Oliveira Lima – explica Alberto.


A tentação é ainda mais irresistível quando dom João VI vira personagem de histórias em quadrinhos: de carona nos lançamentos sobre o bicentenário da vinda da família real, chegam às livrarias três livros para o público infanto-juvenil tendo o príncipe regente como protagonista. D. João carioca, de Lilia Moritz Schwarcz, com ilustrações de Spacca, pela Cia. das Letras; De quintal a capital, de Beatriz, Elizabeth e Ruyter C. Ribeiro, com ilustrações de João Guilherme C. Ribeiro, pela Zit, e Dom João, um nobre amigo do Brasil, de Maria da Conceição Vicente de Almeida, com ilustrações de Ana Cristina Vale Mendes, da editora Muiraquitã.


Devoção imperial


Em comum, o foco no lado cômico da representação. Dom João, um nobre amigo do Brasil chega a ser entusiasta, e cobre o príncipe regente com o manto de um bom velhinho. A história é apresentada sob um ponto de vista curioso: o da natureza local. Quem conta a história da fuga da corte às crianças é o vento e as palmeiras imperiais, por exemplo, com tiradas até exageradas, se o propósito é didático: ‘Viva dom João! Ele era o máximo!, exclama a Vitória-régia’.


Em De quintal a capital, mais infantil do que juvenil, dom João aparece gorduchinho, mas muito simpático. A visão romanceada da história é tingida de cores alegres e sorrisos da corte. Como o trecho que descreve a chegada da corte: ‘O dia estava lindo, o céu luminoso e a cidade em festa, com as ruas limpas e cobertas de areia branca. as casas tinham enfeites de flores e panos coloridos nas sacadas. D. João vinha à frente da comitiva, encantado com a simpatia daquele povo alegre e simples. E o amou, desde aquele instante’. Em uma das ilustrações, dom João aparece encurvado, para apertar a mão de um negro que trabalha a terra – situação praticamente improvável para um escravocrata. Ainda que empreendedor de diversas melhorias, os escravos não faziam parte da sua lista benevolente.


O lançamento da Cia das Letras, sob traços de Spacca, dá uma visão mais crítica da história, ainda que caricata. Com muitos detalhes históricos – expressões da época, mapas e hábitos – vale ressaltar a cena que narra a cerimônia do beija-mão, na qual um dos súditos pede favores ao príncipe regente, e é atendido com uma promessa de emprego. Ou alguém duvida que já havia clientelismo em 1808?


Frida Kahlo com Didi


A depravação de Carlota Joaquina, mito também confrontado por alguns historiadores, aparece sublinhada por um nada afável buço: ‘Até que enfim vou-me para uma terra de homens!’, exclama a feiosa princesa, batendo as tamancas no navio de volta a Portugal, em 1821.


Nos extras da caprichada edição, Spacca explica como foi seu processo de criação. Menos historicista do que criativo, o apêndice é uma obra de arte á parte – como a ‘receita de Carlota’, que mistura Medéia, Lady Macbeth, Frida Kahlo, Dick Vigarista e… Didi, dos Trapalhões!

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Jornalista