Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Ideias que desarrumam o statu quo

O chinês naturalizado francês Gao Xingjian tem 71 anos. É romancista, dramaturgo, tradutor, crítico literário e também poeta e pintor. Recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 2000, por “uma obra de valor universal, de uma lucidez amarga e uma ingenuidade linguística que abriram novos caminhos para o romance e o teatro chineses”.

Na noite de 29 de junho deste ano, ele fez em Turim, na Itália, uma importante palestra. O texto, lido pelo escritor em sua língua original, no evento cultural Milanesiana 2011, aparecia traduzido para o italiano e para o inglês no telão. Devemos ao jornalista Jotabê Medeiros os entendimentos para a publicação com exclusividade pelo Estadão, traduzido do inglês por Augusto Calil (Caderno Sabático, 6/8/11, p. S4 e S5). O texto tinha sido preparado com antecedência para ser lido no Fórum Internacional pela Literatura, realizado em Seul, na Coreia do Sul, em maio passado.

Intitulado Ideologia e Literatura, começa com a afirmação de que, no século 20, a literatura foi contida, controlada, dirigida e até produzida e julgada pela ideologia. Não apenas a criação literária, mas também a história e a crítica sofreram de ideologia, uma doença que seria o mal do século, contra o qual foi difícil imunizar-se.

A referência solar de tal ideologia foi o marxismo. Sua força poderosa, incrustado que estava nos pilares dos antigos Estados comunistas, reforçou a visão marxista dos círculos intelectuais de esquerda em todo o mundo.

Segundo Xingjian, esse contexto levou a literatura a perder sua independência, condição sine qua non de sua própria existência. Ela deixou de ser autônoma e passou a funcionar como acessório da ideologia.

Ele é ousado em suas premissas e não usa meias palavras. Diz com clareza: “A substituição da religião pela ideologia foi outro ato de estupidez do século 20.” Em nome do racionalismo, vazado em dogmas utópicos, revoluções incitaram a violência e trouxeram como novidade a loucura em massa.

Mudanças

Mas alguma coisa mudou na passagem do século e essa literatura, que também idolatrava heróis e líderes, que incitavam o povo a sacrifícios, parece ter desaparecido. Contudo, diz ele, “a literatura não é como a mídia e não pode ser objeto de uma cobertura diária”, como ocorre com a política. “Se a literatura participa da política, ela serve no máximo como floreio decorativo da política partidária”.

O que esperar do autor no mundo contemporâneo? “A sinceridade, isto é, que ele não evite os muitos problemas reais que afligem a sociedade humana, e é essa literatura sincera e verdadeira que os leitores de hoje desejam”.

Gao Xingjian dá lugar de relevo à literatura no cenário atual, quando “a crise financeira e econômica mundial projetou pela primeira vez os economistas ao palco na qualidade de pensadores, enquanto a filosofia se mantém em silêncio”.

Passando ao largo da retórica de documentos fundadores dos tempos atuais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o escritor chinês diz que “a liberdade não é um direito concedido ao nascer” e que “um preço deve ser pago, há condições, e ela nunca veio de graça”.

Quanto à linguagem, questão essencial para escritores e leitores, ele diz que “a literatura se vale da linguagem, mas a linguagem da pena do autor é muito diferente dos objetivos de pesquisa de gramáticos e linguistas – e pouco tem a ver com eles”.

Conclui dizendo que “em nenhum período um número tão grande de pessoas se dedicou à escrita” e que “a literatura não pereceu”, mas que um renascimento literário vai depender do acaso histórico, pois “a literatura, como o destino, é determinada por eventos díspares e ocasionais”.

A palestra de Gao Xingjian tem importância semelhante à famosa aula de Michel Foucault no College de France, na década de 1970, que resultou no texto referencial A Ordem do Discurso. A universidade e os suplementos literários da época fizeram com que a sociedade se ocupasse daquele texto, que desarrumava as ideias então vigentes e questionava seriamente o marxismo, dizendo as palavras e as coisas de outros modos e de outros lugares.

Cabe à mídia e às universidades repetirem aqueles procedimentos, tarefa facilitada pelo arsenal disponível hoje em dia graças à tecnologia. Àquela altura, a novidade, para ser lida e entendida, dependeu de diligentes professores e editores que anteciparam a tradução para as línguas vernáculas e levaram a alunos e leitores os grandes temas de reflexão.

É hora de repetir o feito, não mais com um francês, mas com um chinês, de quem há vários anos a literatura recebe contribuições tão importantes, embora controversas e polêmicas como todas as ideias que desarrumam o statu quo.

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[Deonísio da Silva é escritor e professor da Universidade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro]