Sunday, 29 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Imprensa e poesia, a Bienal e a ‘Ilustrada’

O poeta e ensaísta Affonso Romano de Sant´Anna percorre o país lançando seu ensaio O Enigma do Vazio. A Folha de S.Paulo comemora os 50 anos do caderno ‘Ilustrada’. A 28ª Bienal de São Paulo, inaugurada ainda incompleta em 26 de outubro passado, completa um mês e entra nas últimas semanas (deve encerrar-se dia 6 de dezembro) sem ter sobrevivido à polêmica em que se tentou construir: a ‘Bienal do vazio’ esvazia-se antes da hora, tendo existido apenas no espaço virtual da internet, onde comentários pertinentes misturam-se a rematadas bobagens e às aleivosias costumeiras dos oportunistas de sempre.

Os três acontecimentos podem ser úteis à observação da imprensa. Primeiro, vejamos o diligente trabalho do ensaísta. Antes, porém, necessário lembrar que ele não é muito popular no chamado jornalismo cultural: não freqüenta as tribos pós-modernas, não costuma ser convidado a explicar seus poemas em rodas de celebridades, não entra em polêmicas fúteis com compositores populares, não pratica o jornalismo das crônicas viscerais, ruidosas e idiossincráticas. Tem uma biografia consistente e uma bibliografia respeitável, que lhe garantem um lugar de destaque na história da literatura – não é por generosidade nem por compadrio de qualquer espécie que tem sido considerado o sucessor de Carlos Drummond de Andrade. Pessoalmente, é um sujeito agradável e atencioso, até mesmo com interlocutores impertinentes. Não é dado a estrelismos.

Celebridades do nada

O Enigma do Vazio, segundo sua própria definição, é uma análise dos impasses da arte e da crítica de arte na contemporaneidade, que ele chama de modernocontemporaneidade, provavelmente por um vício de quem trafega transversalmente pela história da arte e da literatura – gente assim precisa fincar alguns piquetes ao longo do pensamento, para guiar o leitor pelos diversos contextos em que o tema precisa ser eventualmente redefinido. O ensaio está centrado na obra(?) do artista(?) plástico(?) Marcel Duchamp, no rastro de alucinações interpretativas que sua existência desencadeou, cujas conseqüências ainda podem ser constatadas na Bienal do Ibirapuera até 6 de dezembro de 2008, mas trata-se na verdade de uma profunda reflexão sobre a crise do paradigma e, como tal, deve ser lido para dentro de todo o universo cultural contemporâneo, e daí para a interpretação dos fatos econômicos, políticos e sociais que a imprensa nos oferece diariamente.

O cinqüentenário da ‘Ilustrada’ é uma efeméride que precisa ser juntada a esse olhar proposto por Romano de Sant´Anna. Nenhum outro caderno de ‘cultura’ e entretenimento representa tão bem o ingresso e o assentamento dos chamados fazedores de arte e pensamento brasileiros nesse contexto.

Marcel Duchamp é o pai legítimo da ideologia que se convenciona chamar pós-modernidade, em torno da qual se construiu o jornalismo distanciado, que tem ojeriza ao juízo crítico dos sistemas, que considera ultrapassadas as ideologias – uma ideologia que se rejeita como tal para negar o compromisso da arte e do pensamento com a humanidade. Seus adeptos utilizam a estratégia de produzir pensamento sem o risco das angústias que o livre-pensar tem como efeito colateral, ou maneirismo para ingressar no panteão da cultura sem ter que subir a íngreme escadaria do conhecimento.

Nos últimos vinte de seus cinqüenta anos, a ‘Ilustrada’ representou o universo ‘duchampiano’ transposto para a vida social, a cultura e as artes em geral. Ali proliferaram notórias fraudes ao lado de bons aventureiros do pensamento. Ali surgiu o jornalismo dos marqueteiros de moda travestido de crônica do comportamento; ali se fez a apologia das inutilidades e se construíram celebridades do nada. Também foi a incubadora de alguns dos melhores cartunistas do nosso tempo e de alguns equívocos. A ‘Ilustrada’ tem sido também o berço de algumas nulidades reluzentes. Representa o vazio conceitual travestido de antitudo.

Negócios inexistentes

O Enigma do Vazio é um guia eficiente para, a partir da análise de Duchamp e sua negação da arte – ou sua afirmação da morte da arte – caminharmos sobre os escombros de civilização que a imprensa, afinal, ajudou a espalhar a assentar. Quase podemos entender o vazio de significados que se espalha pela política, que se retrata na implosão do grand monde financeiro, no espanto que assombra a face do mundo desde o 11 de Setembro de 2001.

Aliás, tomando-se o conceito incensado pelo jornalismo cultural pós-duchampiano, pode-se afirmar que, se na contemporaneidade pós-tudo qualquer coisa pode ser arte, a imagem das aeronaves entrando nos edifícios gêmeos de Nova York é a instalação artística mais importante do nosso século. Ora, pois não dizem os críticos alucinados que a arte após a morte da arte é todo objeto ou idéia que se desloca do seu lugar original? Um urinol na parede de uma galeria de arte é arte tanto quanto um Boeing pregado num edifício, assim como se assumia arte o cocô do artista italiano transferido do vaso sanitário para a lata de conserva.

Isso se aceitarmos a visão generalizada segundo a qual a arte não tem compromissos de tipo humanitário. Observe-se que, até setembro passado, valia também essa mesma alucinação: o estado-da-arte da economia era o lucro, a despeito da miséria circundante e da destruição ambiental que agora ameaça a sobrevivência da espécie humana no planeta. O 15 de setembro em Wall Street seria também uma obra de arte, ao representar o deslocamento, para o vazio virtual dos negócios inexistentes, do dinheiro real produzido pela economia real. Essa data representa para o mundo econômico o que representou para a globalização o atentado de 2001 – e talvez venha a significar para as relações internacionais a eleição de um presidente negro nos Estados Unidos, mas isso também já pode ser creditado a certa alucinação interpretativa do observador.

‘Aqui jaz um século’

Sobre a ‘Bienal do Vazio’ nada se pode dizer. Sendo ela própria uma representação esvaziada de uma arte que se diz não-arte, tudo está dito. Voltemos, portanto, ao poeta, que, como o menino na fábula ‘A roupa nova do rei’, de Andersen, está gritando: ‘O rei está nu!’. O que ele observa em relação à crítica de arte vale para a análise do noticiário econômico e político e para o modo como a imprensa enxerga a sociedade. Praticamente tudo, da espetacularização da notícia à omissão quanto aos temas ambientais e sociais, tudo que é mediado retrata essa visão de mundo ‘duchampiana’, na qual o ato se justifica pelo próprio ato, desde que alguém ‘referendado’ pela mídia certifique que tal ato é relevante.

É certo que a imprensa vem aos poucos dando espaços progressivamente maiores para o tema ambiental, mas esse fenômeno resulta dos movimentos de repórteres persistentes, que se deslocam das redações, muitas vezes à revelia de seus chefes, para os lugares de onde se pode observar melhor os males do mundo.

Mas o cenário geral ainda se parece mais com a ‘Bienal do Vazio’. Blogueiros, articulistas e colunistas podem distorcer a realidade ao ponto de inverter seu significado. E isso é tido como jornalismo em estado de arte, a se julgar pelo espaço nobre que lhes oferecem na ‘galeria’ das celebridades da mídia. Assim como na arte, segundo observa Affonso Romano de Sant´Anna, a irresponsabilidade e o cinismo foram elevadas à categoria estética, a irresponsabilidade social e a irracionalidade foram elevadas à categoria de pensamento político, o berreiro sem sentido de jornalistas alucinados é tido como interpretação da nacionalidade.

Esse mal, gestado no século 20, parece vazar para este nosso tempo, quando uma nova tecnologia começa a diluir o efeito perverso dessa matriz de insanidades. O espaço cibernético é para muitos, e nesse ambiente se constrói um novo conceito de trocas culturais, assim como brotam falsificações, mas cabe a cada cabeça escolher em qual mensagem vai fundar seu conhecimento, e pode-se alterar a mensagem indefinidamente.

Sobre o século que nos deixou alguns milhões de mortos em pelo menos três guerras brutais, uma sociedade traumatizada pela violência, diferenças sociais que desafiam o sentido de humanidade e uma bomba climática de efeito devastador, o próprio Romano de Sant´Anna já produziu um epitáfio solene. Diz um dos trechos do poema ‘Epitáfio para o Século XX’:

‘Aqui jaz um século/ que se chamou moderno/ e olhando presunçoso/ o passado e o futuro/ julgou-se eterno;/ século que de si/ fez tanto alarde/ e, no entanto,/ – já vai tarde’.

Apropriado e distorcido

Mas para a imprensa que tenta dar sobrevida à fraude que vazou da arte para a reflexão social, política e econômica, talvez seja mais pertinente outra peça do mesmo poeta. ‘A implosão da mentira’ foi escrita por ele com referência às versões que o então governo militar tentou impor ao Brasil após o atentado produzido no Riocentro, em 30 de abril de 1981. Nessa noite, um grupo de militares tentou colocar uma bomba no local onde naquela noite haveria o show comemorativo do 1º de Maio, no Riocentro. A bomba explodiu no colo de um deles e a história que o governo assumiu foi desmontada pela imprensa.

Como a bomba, o poema foi concebido em fragmentos. Diz um trecho do fragmento 1:

‘Mentem. Mentem e calam. Mas suas frases/ falam. E desfilam de tal modo nuas/ que mesmo um cego pode ver/ a verdade em trapos pelas ruas’.

Como é comum, o poema tem sido apropriado e distorcido, até mesmo em sites de partidos políticos. Mas segue valendo como representação do espírito alerta contra as falsificações de todo tipo.

A íntegra de ‘A implosão da mentira’ e outras obras de Affonso Romano de Sant´Anna podem ser lidas no Jornal de Poesia.