‘Diante da perturbação de sua querida filha, o pandit Pyarelal Kaul penetrou em sua própria escuridão. Subia a montanha todos os dias para cuidar das necessidades dela e ouvir suas divagações e não conseguiu contar-lhe que a desilusão tomara conta de seu otimismo e o espremera quase até a morte […]. Estava […] começando a pensar se a discórdia não era um princípio mais poderoso que a harmonia’. (Salman Rusdhie, Shalimar, o Equilibrista)
A imprensa tem dito e escrito, recentemente, no Brasil, muito sobre John Maxwell Coetzee e sua obra – gesto provocado, sobretudo, por sua participação na Festa Literária Internacional de Parati deste ano. E tem-se dito e escrito de maneira muito elogiosa sobre ele e sua obra: premiado várias vezes, inclusive laureado com um Nobel de Literatura (2003) entre outras honrarias literárias importantes, o romancista sul-africano é freqüentemente incensado pela crítica literária, apresentado como um dos principais nomes da literatura mundial contemporânea. A imprensa tem repetido o senso geral dado por esses críticos literários.
Por isso mesmo, é uma oportunidade para considerar atentamente Desonra (no Brasil, Companhia das Letras, 2000), tido como um de seus romances principais – senão o principal (já se anuncia uma adaptação cinematográfica com Malkovich no papel do protagonista). Aspectos importantes têm sido insuficientemente observados.
Desonra e desajustes
O assunto de Desonra: o professor de literatura Lurie, sul-africano branco, é seduzido por uma aluna, Melanie, tendo com ela vários encontros sexuais – que, cabe ressaltar, não são esplendorosos para nenhum dos dois parceiros; por fim, acusado de abuso sexual, o professor é demitido. Desta maneira, sem emprego, Lurie se estabelece numa pequena e distante propriedade onde mora sua filha, Lucy. Lá, eles são atacados por um grupo formado por três negros e Lucy é sexualmente agredida de forma brutal num estupro múltiplo que resulta numa gravidez.
Por um lado, a filha do professor parece aceitar a ocorrência como uma espécie de vingança que pertence ao âmbito histórico: segundo essa grade de leitura elaborada pela personagem, a violência cometida no seu corpo ultrapassa as dimensões individuais e marca um tipo de revanche da história entre, de um lado, a população negra sul-africana colonizada e, de outro, o inglês colonizador e o branco sul-africano segregacionista.
Por outro lado, Lucy sai do evento extremamente traumatizada e profundamente retraída. Não apenas fechada à espera de alguém que abra seu círculo e a faça sair para o mundo, mas retraída de maneira desesperançada e completamente resignada: não há, no romance, expectativa de abertura para ela.
O evento que aparece como uma vingança, ou uma revanche de caráter histórico, não é um ajuste de contas definitivo. Nada se ajusta após a ocorrência do ato violento – nem no âmbito curto, referente aos personagens, nem no âmbito histórico, social e político.
Desencanto e limites da incompreensão
O romance mostra, assim, uma realidade crua e dura na África do Sul após o fim do apartheid: a cultura inglesa e o mundo sul-africano se mostram incompatíveis entre si, inflexíveis um ao outro mesmo depois do fim da segregação racial. A linguagem empregada no romance mostra essa opacidade entre o mundo branco e o mundo negro sul-africano.
Mais do que desonra – desonras: a desonra da aluna que seduz e depois acusa o pretenso assédio; a desonra do professor envolvido num affair sexual nada amoroso e tido como indecoroso devido ao aspecto docente-discente; a desonra da filha do professor violentada; a desonra do pai; a desonra dos agressores.
O tema do romance é o predomínio das incompreensões. Ninguém, no romance, compreende ninguém – e nem parece interessado em compreender; ninguém se esforça para compreender o outro. Assim, vejamos.
Melanie quer seduzir e seduz o professor não porque goste dele, muito menos por estar apaixonada por ele (a impressão é que ela o seduz porque não tem mais nada melhor para fazer); por sua vez, Lurie tem o affair com a aluna, mas sem qualquer expectativa amorosa e sem grande satisfação alguma (nem mesmo sexual). Lurie se sente isolado em sua propriedade, sem laços com a comunidade (a propriedade fica distante) nem laços fortes com sua filha (a propriedade é pequena, o mundo em que eles vivem é fechado, mas fechado também um para o outro). Lucy tem, no que se refere a seu pai, um profundo estranhamento (nunca o chama de pai, mas pelo seu primeiro nome; mas isso não marca uma proximidade). Lurie não desenvolve nenhuma compreensão ao longo do romance. Os brancos não compreendem os negros; os negros não compreendem os brancos. Nenhum personagem compreende a realidade de algum outro – e tampouco se importa, muito menos se empenha, em compreender. Há uma indiferença completa.
Então, se esse romance de Coetzee apresenta como assunto direto as desonras, elege como tema forte a incompreensão. Lurie, Lucy, Melanie etc., cada protagonista do romance age por impulso, sem preocupação alguma de compreender o outro nem, antes, seus próprios impulsos e atos – tampouco tem consciência de seus motivos.
O livro de Coetzee tem sido saudado pelo estilo ‘seco e conciso’ ou ‘preciso, algo lacônico e distanciado’ e pela prosa ‘límpida e despida’; pelo ‘tom soturno’ e pelo ‘enredo forte e temática atual’. A crítica ressalta a ‘força nas palavras’ em cada descrição e em cada diálogo – escrita ‘direta e reta’, ‘desencanto radical’ e ‘dureza sem concessões’ são as expressões, usadas de forma reiteradamente lisonjeiras, encontradas sobre o romance. Desonra tem sido admirado, recebendo elogios, pela crueza da linguagem e pela inflexibilidade de sua literatura A linguagem procura ser crua para marcar, assim, a realidade cruel. A literatura se pretende dura para mostrar essa realidade pontuada pelas incompreensões.
A desilusão absoluta
A sociedade tal como formulada em Desonra é formada e marcada por incompreensões absolutas e – por serem absolutas – insuperáveis. Os personagens são marcados pela incompreensão desde o início e não adquirem qualquer compreensão até o final. Não compreendem o outro nem a si mesmos (agem por impulso, sem auto-compreensão). Eles não são capazes de desenvolver qualquer grau de compreensão e apresentam justificativas para essa incapacidade. Cada personagem imerge em sua própria escuridão, formada pela incompreensão completa.
Por sua vez, o romance pode não aprovar as incompreensões dos personagens, pode não louvar a incapacidade de cada um dos personagens, pode não incensar a incompreensão, mas acaba por ser conivente com as justificativas dos personagens para essa incapacidade – o romance acaba justificando aquelas justificativas – e, assim, é conivente com a incompreensão que ele, a princípio, não aprova. Desonra, de Coetzee, descreve a incompreensão (e é isso que absorve o leitor), mas não oferece insight algum ao leitor.
‘O livro não julga, apenas relata’, acredita a crítica elogiosa – por apenas relatar, sem julgar, o tom seria soturno, o estilo seria distanciado, as palavras seriam fortes. Os personagens não acreditam na razão humana; privilegiam o instinto e o impulso; o romancista, ao se limitar a ‘apenas relatar’, é conivente. Para o Coetzee de Desonra, as incompreensões são intransponíveis. Não há diálogo possível entre diversas incompreensões: essa é a moral do romance que ‘não julga’.
No romance de Coetzee, a incompreensão não apenas é um princípio mais poderoso que a harmonia e que a comunicabilidade: ela, junto com a indiferença, é mais poderosa que qualquer traço de tolerância. A incompreensão aparece em Desonra como um absoluto da história.
Verdade fluida
Contrastam as incompreensões insuperáveis, uma desilusão extrema, um niilismo intransponível constitutivos de Desonra, de Coetzee, com as formulações de outros grandes escritores contemporâneos. Não cabe aqui desenvolver isso longamente, mas podemos apontar brevemente alguns poucos e belos exemplos.
Na obra de Salman Rusdhie (penso diretamente nos romances Os Filhos da Meia-Noite, O Último Suspiro do Mouro, O Chão que Ela Pisa e, sobretudo, o mais recente Shalimar, o Equilibrista), alguns personagens são completamente intolerantes, alguns são marcados pela incompreensão, outros apresentam a compreensão (de si e/ou dos outros) ao longo do romance, mas não sem em algum momento agirem por impulso, em algum momento serem cegados no que tange à sua compreensão. Assim, se a intolerância e as incompreensões prevalecem em algum momento da história e os personagens mergulham em suas próprias escuridões, o romancista não abona a incompreensão.
Rusdhie não justifica a incompreensão: descreve-a sem desculpá-la. A incompreensão, os impulsos, por mais perigosos e desastrosos que sejam quanto aos efeitos que provocam, não atravessam o romance de ponta-a-ponta, nunca passam sem serem contrastados com a compreensão e a tolerância. A racionalidade não é um absoluto da história, mas a incompreensão também não é. Cabem ao homem os valores: não existem absolutos da a-históricos.
Em Sábado, de Ian McEwan, a incompreensão e os impulsos obscurecem os personagens, mas não obscurecem o romance todo. Em outro romance seu, anterior, a criança que no início não tem a compreensão, causando assim a desgraça de uma familiar sua e do namorado (depois marido) desta, anos depois atinge a compreensão e passa décadas em busca da reparação (que dá título ao livro). A reparação não anula a desgraça provocada pela incompreensão (a irmã da protagonista-narradora e seu marido já morreram), mas cancela a incompreensão. O romance, assim, suspende a incompreensão em favor da compreensão. A verdade é fluida, mas existe; a racionalidade não é um absoluto, mas é um bem precioso.
Vidas ameaçadas
Observações similares podem ser estendidas à obra de Orhan Pamuk – Nobel da Literatura (2006), tal como Coetzee. Em Neve, o protagonista é um poeta que, devido a uma nevasca forte, se vê preso em uma cidade no meio de conflitos religiosos e étnicos. Pamuk trata, assim, de conflitos entre incompreensões e intolerâncias opostas – de um lado, um fundamentalismo fechado e intolerante; de outro, o Estado laico turco que, procurando combater a intolerância, acaba ele também demonstrando incompreensão (quando, por exemplo, proíbe mulheres muçulmanas de usarem véu em lugares públicos, causando revolta e inconformismo entre elas, que se sentem vítimas de intolerância). Apesar de tratar de intolerâncias antagônicas, Pamuk não as justifica nem deixa de ressaltar – fora das forças de incompreensão – a compreensão e a tolerância.
Ponderações como essas cabem também a outros escritores, como o israelense Amós Oz ou a conterrânea de Coetzee, romancista Nadine Gordimer, igualmente recebedora de um Nobel da Literatura (1991).
Rusdhie e McEwan, como se sabe, já estiveram em edição anterior da Flip – tal como Coetzee se fez presente na edição deste ano. Rusdhie foi mais celebrado (a contragosto) pela fatwa da qual ele foi personagem do que por sua obra literária (ele várias vezes apontou a ironia, amarga para ele, contida nisso). Os dois foram tão festejados quanto Coetzee (assim como Pamuk, certamente, também o seria), mas não se enfatizou a importante diferença referente ao modo como percebem o mundo contemporâneo e ao modo como constroem seus mundos literários.
Cabe ressaltar que Rusdhie e Pamuk, tão ostensivamente ameaçados em suas vidas pela intolerância, não tenham em suas obras a marca da desilusão absoluta.
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Historiador e doutor em Filosofia pela FFLCH-USP, Campinas, SP