Se Karl Kraus escrevesse do túmulo, como Brás Cubas, e soubesse que uma coletânea de seus aforismos foi lançada no Brasil, repetiria: ‘Meu desejo de que meus textos sejam lidos duas vezes causou grande irritação. Sem razão; o desejo é modesto. Não peço sequer que sejam lidos uma só vez.’ A perspectiva de ser objeto de uma resenha típica brasileira não o animaria nem um pouco. Afinal, os resenhistas brasileiros, quando leem uma obra sobre a qual escreverão, leem uma só vez, e um aforismo não pode ser lido uma vez só. Daí a vergonha pela qual eles passam, sobretudo diante de autores como Kraus (1874-1936), jornalista, ensaísta e dramaturgo nascido na Boêmia a quem apenas poucos podem ser comparados na arte do aforismo: Oscar Wilde, Nietzsche, Shaw, Bierce, Millôr – e olhe lá.
Dele apenas se havia publicado no Brasil o livro Ditos e Desditos, edição esgotada da Brasiliense, dos anos 80, com tradução de Marcio Suzuki. O que acaba de sair, Aforismos, com tradução de Renato Zwick e edição da Arquipélago, traz esse volume – com o título mais exato Ditos e Contraditos – e outros dois, Pro Domo et Mundo e De Noite. Foram necessários, portanto, 74 anos desde sua morte para que os leitores brasileiros pudessem conhecer bem a obra de Kraus, embora seu outro livro mais famoso – o longo, caótico e ferino drama Os Últimos Dias da Humanidade, escrito na antessala de gás do regime nazista – continue inédito em português brasileiro, já que em Portugal teve mais de uma versão. ‘Não peço que sejam lidos’, reagiria Kraus ao saber desse quase ineditismo; ‘e muito menos resenhados’, acrescentaria sem hesitar.
Ao ler que ‘O aforismo jamais coincide com a verdade; ou é uma meia-verdade ou é uma verdade e meia’, esses literatos – um tipo do qual Kraus riu até os últimos dias de sua humanidade – iriam se mostrar chocados, porque acham que o aforismo serve para decretar uma verdade, a qual encaram sempre como uma essência una e indivisível. Como diz Kraus, eles gostam mesmo é de achar, nunca de procurar. Depois do choque, achariam então algumas frases que não entenderiam – nem mesmo se lessem três vezes – e logo tratariam de condenar como fáceis ou superficiais, esquecendo que nada é mais fácil do que destacar e distorcer uma frase. ‘Alguns partilham meu ponto de vista comigo. Mas eu não os partilho com eles.’ Esse é um aforismo meia-verdade, mas para os professores brasileiros que fazem resenhas, inaptos para o humor, seria apenas uma platitude ou generalização.
Em Kraus o aforismo não é máxima moralista, não é provérbio edificante; ou é reversão do lugar-comum, que satiriza às vezes com uma mera mudança, ou é produto sucinto de um pensamento complexo. ‘Não se vive uma vida sequer uma vez’ e ‘O que os professores digerem, os alunos comem’ são exemplos do primeiro. ‘Refreia as tuas paixões, mas toma cuidado para não dar rédeas soltas à tua razão’ e ‘O nacionalismo é um turbilhão em que qualquer outro pensamento desaparece’, do segundo. O que Kraus mais menosprezava era a mentalidade pequeno-burguesa que o cercava em Viena, o preconceito cultivado em família a respeito de religião, sexo e arte; viu e previu nessa ideologia do senso comum a base para os políticos personalistas e tirânicos. E tinha especial aversão pelos sub-intelectuais, pelos sujeitos que não têm nada de original a dizer e, por isso mesmo, morrem de inveja dos mais criativos e produtivos. Como se percebe, não seria acolhido por nenhuma patota da chamada ‘vida cultural’ brasileira.
Kraus era tão ferozmente independente que, depois de sete anos escrevendo para os periódicos de Viena, decidiu abrir o seu próprio, Die Fackel (A Tocha), um precursor dos blogs do qual há antologias em inglês para quem estiver interessado (em português, óbvio que não). Escreveu e editou sozinho o jornal até a morte. Ali falava de todos os assuntos e criticava ou elogiava quem quisesse criticar ou elogiar, com a liberdade de quem estuda os temas e tem opiniões próprias. Era muito atacado, claro, e isso não o fazia perder um minuto de sono. ‘Por que tantos me criticam? Porque me elogiam e apesar disso os critico.’ Como morreu há muito tempo numa terra distante, talvez agora seja elogiado na imprensa local. Mas disso teria mais medo.
******
Jornalista