O intelectual público brasileiro adaptou-se aos meios de comunicação de massa. Essa é uma das conclusões a extrair da enquête realizada pelo periódico O Debatedouro entre seus leitores, em processo que deu origem à lista com os ’50 mais influentes intelectuais públicos do Brasil contemporâneo’. O levantamento trouxe à tona a ligação umbilical entre os pensadores tidos como ‘influentes’ do país, hoje, e a grande mídia – algo que, há boas duas ou três décadas, poderia parecer improvável. A incompreensão mútua que grassava entre as partes quer dar lugar, neste início de século 21, a um relacionamento simbiótico, no qual jornalistas (sobretudo, os adeptos do chamado ‘colunismo de opinião’) mostram-se mais receptivos à reflexão, ao passo que os acadêmicos, antes confinados às universidades, já conseguem falar diante de câmeras de TV ou escrever para jornais de grande circulação sem sucumbir ao hermetismo dos jargões.
O exercício da consulta aos leitores, polêmico por si só, realizou-se nos moldes de outras pesquisas similares, como as da revista britânica Prospect muito conhecida por essas iniciativas – e da americana Foreign Policy. Listas assim, embora sempre contestáveis no seu teor ou no método de elaboração, costumam sugerir aos intérpretes algumas tendências relevantes, além de servirem de termômetro para conhecer-se o que pensa uma certa fatia da população. A própria noção de ‘intelectual público’, herdeira do Iluminismo europeu, é passível de enorme controvérsia, uma vez que muitos foram os que se propuseram a defini-la. Na pesquisa de O Debatedouro, adotou-se uma concepção que faz lembrar a russa intelligentsia, qual seja, a que imputa ao homem preocupado em pensar a ordem pública e se engajar nos principais debates sobre a vida em sociedade a condição de ‘intelectual público’. [ver o ensaio ‘A história intelectual russa’, de Isaiah Berlin.]
Encabeçando a lista está o ex-presidente da República e ex-professor universitário Fernando Henrique Cardoso (citado por mais de 10% do universo de 506 respondentes), seguido pelo cantor e romancista best-seller Chico Buarque de Holanda e pelo ex-cineasta e cronista Arnaldo Jabor. O primeiro acadêmico de carreira a figurar na lista é a filósofa Marilena Chaui, que ocupa o 6º lugar. Sintomaticamente talvez, entre os 12 intelectuais públicos citados como mais influentes, apenas um terço deles milita, hoje, nas universidades (Chaui, Roberto DaMatta, Renato Janine Ribeiro e Emir Sader). DaMatta, além de professor universitário, é colunista de O Globo. Janine Ribeiro divide seu tempo entre as aulas, a atuação institucional e a redação de pequenos ensaios para um portal de internet. Já Sader, além da militância universitária, escreve colunas dominicais para o Jornal do Brasil. Outros acadêmicos que se valem de colunas de jornais e de revistas de grande circulação para difundir suas idéias (Demétrio Magnoli, Marcelo Gleiser, José Murilo de Carvalho, Roberto Mangabeira Unger, Boris Fausto) também estão entre os 50 mais votados da enquête.
Para melhor?
A pesquisa demonstra que, para atingir as posições mais próximas ao topo, a versatilidade é fator-chave. Chico Buarque, Jabor, mas também os polivalentes Suassuna, Jô Soares e Millôr Fernandes, chegam entre os 10 primeiros. Para não mencionar os que, como Fernando Henrique Cardoso, construíram sólida carreira política na maturidade – vide os casos de Cristovam Buarque e Antônio Delfim Netto. O levantamento ainda aponta a centralidade da intelligentsia paulistana e carioca no que se convencionou chamar de pensamento social brasileiro. Não bastasse serem os estados mais ricos da federação brasileira, somente São Paulo e Rio de Janeiro contam com veículos de imprensa de efetiva difusão nacional.
A valorização da espontaneidade do ‘homem cordial’ é ressaltada pela forte presença de literatos e compositores entre os intelectuais públicos mais influentes da nação. Chico, Verissimo, João Ubaldo, Suassuna, Caetano e Paulo Coelho são apenas alguns entre os mais lembrados pelos leitores. No rol dos cientistas, destaque para as ciências sociais e humanas. No bojo das ‘ciências duras’, a presença solitária – e, por isso, tão mais honrosa – é a do físico Marcelo Gleiser, professor da universidade americana de Dartmouth e colunista da Folha de S. Paulo. Adicionalmente, é notória a supremacia de homens na lista. O machismo da intelectualidade nacional fica ilustrado na única inclusão feminina – a de Marilena Chaui – na lista dos mais influentes. A relação de nomes ainda traz a presença marcante de intelectuais ligados à tradicional esquerda política, não obstante seu declínio mundo afora.
A mais eloqüente das revelações da lista, porém, fica nas entrelinhas. Ela vem de uma hipotética confrontação entre os expoentes da intelectualidade brasileira de agora e os de uma geração anterior. Anacronismo à parte, é instigante imaginar como seria a composição de uma lista desse tipo se ainda tivéssemos vivos, entre nós, um Gilberto Freyre, um Celso Furtado, um Sérgio Buarque de Holanda, um Raymundo Faoro, um Roberto Campos, ou mesmo um Nelson Rodrigues, um Carlos Drummond de Andrade e um Paulo Francis… As notáveis ausências na lista de Antônio Cândido, Maria da Conceição Tavares e Oscar Niemeyer, entre outros, podem ser sugestivas.
Mudam os tempos, e também os seus ‘intelectuais públicos’. Injusta e irresponsável que seja, uma pergunta não quer silenciar: a mudança é para melhor? Compete a cada um esse juízo.
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Mestrando em Ciência Política pela UFMG e editor-chefe do periódico O Debatedouro