A 22 de outubro (10 de outubro, segundo o antigo calendário Juliano), completaram-se 140 anos do nascimento de Ivan Alekseievitch Bunin, um dos maiores e o ‘último dos clássicos’ da literatura russa e o primeiro escritor russo a receber o prêmio Nobel da Literatura, em 1933. Não obstante, um inverno de silêncio e de esquecimento envolve hoje o nome e a obra magistral de Bunin.
Ivan Bunin nasceu em 1870, em Voroneje, no seio de uma antiga família aristocrática de proprietários rurais. Escreveu desde muito cedo e publicou um poema, pela primeira vez, aos 17 anos, numa revista literária de São Petersburgo. A partir de 1889 começa a trabalhar como redator e a publicar periodicamente poemas, contos, artigos de crítica literária e de opinião num jornal regional. Durante a sua vida viria a trabalhar também como estatístico, bibliotecário e jornalista. Aos 21 anos, publica o primeiro volume de poesia, depois poesia e contos em jornais e revistas da capital, e em 1897 surge a primeira coletânea de contos. Entretanto, traduz Longfellow, Byron e Tennyson, entre outros. Vê o seu talento reconhecido pela Academia das Ciências da Rússia, que o agracia mais do que uma vez com o Prêmio Pushkin e o elege um dos seus doze membros honorários em 1909. Leon Tolstoi contava-se entre eles.
Em 1920, exila-se em França, onde vive entre Paris e Grasse. Continua a publicar, sempre em língua russa e recusando as novas regras ortográficas introduzidas pelo poder bolchevique. Em 1933 recebe o Prêmio Nobel da Literatura. Passa os anos da guerra em Grasse, numa situação de grandes privações. Durante a ocupação, não publica uma única linha, recusa as propostas que lhe são feitas para colaborar em jornais e revistas das regiões ocupadas. Em 1945 é convidado para uma entrevista na embaixada soviética em Paris. Na URSS, começam preparativos para editar a sua obra. Mas Ivan Bunin recusa-se a regressar. Em 1953 morre, em Paris, numa situação de extrema pobreza. A sua obra só começará a ser publicada na URSS a partir de 1955; alguns livros só virão a aparecer durante os anos da perestroika.
‘Tempo perdido’ ganha vida
Entre as obras mais célebres do escritor contam-se a coletânea de poesia O cair das folhas (1901), a novela A aldeia (1910), o romance O vale seco (1911), os contos O cavalheiro de São Francisco (1915) e O amor de Mítia (1924), o romance A vida de Arseniev (1927-1929, 1933), a coletânea de contos Alamedas de sombra (1938-1944) e o seu diário dos meses a seguir à Revolução, Os dias malditos (1918).
Verdadeiro aristocrata de princípios e atitudes éticas, Bunin foi também um aristocrata da palavra. Desde cedo que se sentiu poeta: ‘Tudo – o alegre e o triste – tem na minha alma um gosto de música de uma poesia imprecisa e sinto uma força criadora, capaz de produzir alguma coisa verdadeira’, escreve, em 1891. A sua linguagem, suntuosamente lírica – à qual alguém chamou ‘brocado de Bunin’ – é uma das mais belas e requintadas da literatura russa – a profundidade da análise psicológica se alia à precisão da descrição sensorial. Ao mesmo tempo, a linguagem de Bunin é profundamente incisiva e realista. Jamais, em Bunin, ‘o manto diáfano da fantasia‘ cobre a ‘nudez forte da verdade.’ Cada metáfora conta profundamente, cada metáfora é exata, necessária e relevante. É assim que, em A aldeia e O vale seco, pintará o retrato do homem russo, ‘o seu caráter e a sua alma, a sua inata complexidade, os seus alicerces ao mesmo tempo luminosos e sombrios, mas quase sempre essencialmente trágicos’, como dirá no discurso de aceitação do Nobel.
O amor é o grande tema que perpassa a obra de Bunin – as várias facetas em que é lapidado o diamante do amor: amor pela vida, pela beleza, pela natureza, por um país, por uma mulher – neste último, a dimensão física do amor sempre ligada à dimensão espiritual. E, a par das páginas mais trágicas, a gratidão por esse amor, por essa vida, por essa beleza. Na França, escreverá sobretudo para manter viva a memória da Rússia, a Rússia que foi ‘destruída perante os nossos olhos com miraculosa rapidez’. Esta dor, a dor do expatriado cuja pátria já não existe, será para ele uma constante até o fim da sua vida. Como escreve no início de A vida de Arseniev, ‘os fatos e as ações que não são escritos toldam-se de trevas e perdem-se no sepulcro do oblívio, enquanto os que são escritos se tornam como que animados’. Nas páginas de Bunin, é todo um ‘tempo perdido’ que ganha vida, não idealizado, mas intensamente real.
Exposição é acontecimento único
As obras de Ivan Bunin traduzidas em língua portuguesa são poucas e têm sido publicadas com grandes intervalos de tempo. Tanto quanto é do conhecimento da autora, Bunin aparece em Portugal pela primeira vez em 1942, com os contos Amor que santifica (Ed. Inquérito), traduzido pelo filósofo, filólogo e professor secundarista José Marinho (1904-1975), e Uns olhos bizantinos (Ed. Sirius), traduzido pelo dramaturgo, escritor, jornalista e advogado Alexandre Babo (1916-2007). Em 1943, na coletânea Contos eslavos (Ed. Gleba), surge O cavalheiro de São Francisco, traduzido por Benvinda Caires. No Brasil, em 1934, aparece A Noite (Ed. Galvino Filho); 30 anos depois surgem A aldeia (Ed. O Cruzeiro), traduzida pelo jornalista e repórter internacional Osvaldo Peralva (falecido em 1992), e O Amor de Mítia e O Processo do Tenente Ielaguin (Ed. Delta), traduzidos por Boris Schnaiderman, professor aposentado de Língua e Literatura Russa da Universidade de São Paulo. Decorridos mais cerca de 30 anos, em 2003, surge a coletânea Insolação (trad. Manoel Paulo Ferreira, Ed. Objetiva), onde, para além do conto epônimo, aparecem, entre outros, Dia de Verão, Cáucaso, O romance do corcunda, Balada e A velha. Em 2004, em Portugal, na coletânea 10 jóias do conto russo (Ed. Campo das Letras), aparecem Cáucaso e Em Paris (trad. Aleksandr Bazin, falecido em 2008).
Mas não é só no mundo lusófono que a obra de Bunin tem sido negligenciada. O escritor canadense David Richards, na introdução da coletânea de contos The gentleman from San Francisco and other stories (Penguin Books, 1987), afirma: ‘Ivan Bunin é um dos expoentes máximos da literatura russa, mas, mesmo hoje, (…) o poder único da sua voz extraordinariamente singular ainda não recebeu, no mundo anglófono, nada que se pareça com o reconhecimento que lhe é devido.’ O escritor norte-americano Edmund White, num artigo publicado no Los Angeles Times (20 de junho, 1999), diz a mesma coisa por outras palavras.
Em Moscou, no Museu Literário Estatal, foi inaugurada, a 21 de outubro, uma exposição que assinala os 140 anos do nascimento de Ivan Bunin. Esta exposição, que estará aberta ao público até abril do próximo ano, constitui, como refere o jornal Pravda (20 de outubro, 2010), um acontecimento verdadeiramente único, pois é a primeira vez que se realiza na Rússia uma exposição sobre a vida e a obra do grande escritor. Este ano, o Museu Literário Estatal decidiu levar a cabo o projeto ‘custasse o que custasse’. E é assim que esta grande exposição, que reúne material único, acontece, praticamente só devido ao esforço do próprio museu.
Num país em que o assinalar e a celebração das efemérides e dos aniversários é uma tradição que faz parte integrante do quotidiano, com documentários e debates televisivos, espetáculos e outros eventos largamente divulgados pelos meios de comunicação social, os 140 anos do nascimento de Bunin e a abertura da exposição que lhe é dedicada foram assinalados só nos telejornais de um dos grandes canais televisivos, Rossia, e no seu satélite, Rossia Kultura.
‘A civilização que devemos à liberdade’
Que significa, então, o inverno de silêncio que envolve o nome e a obra de Ivan Bunin? No discurso de aceitação do Prêmio Nobel, o grande escritor referiu-se ao ‘profundo significado da escolha da Academia Sueca’: ‘É pela primeira vez, desde a criação do Prêmio Nobel, que o atribuís a um exilado. (…) Mas, senhores da Academia, permiti-me dizer-vos que, independentemente de mim e do meu trabalho, a vossa escolha é em si um gesto de grande beleza. É necessário que haja no mundo centros de absoluta independência. Sem dúvida que, à volta desta mesa, estão representadas todas as diferenças de opinião, de credos filosóficos e de credos religiosos. Mas estamos unidos por uma verdade, a liberdade de pensamento e de consciência; é a esta liberdade que devemos a civilização.’
‘Acaso serás tu, aquele que jaz sob a laje pesada?/ Foi teu caminho marcado por partidas, mágoas e inverno./ Sob as cruzes e o vento, agora, tudo é nada./ As cruzes guardam só as cinzas. Agora és pensamento. És eterno.’ [Ivan Bunin (excerto)]
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Engenheira química e doutora em Química