…e viva a venda de volumões.
A imprensa não deixa por menos, somos um país de analfabetos, 16 milhões, sem contar os 33 milhões que não passam da 3ª série e outros milhões que juntam palavras e não entendem o que leem. O brasileiro lê menos de um livro por ano, o hábito da leitura passa ao largo do Norte e Nordeste do país, mas 47% dos cariocas não cultivam o vício. Para completar, pesquisas mostram que e-books, mais baratos, estão matando o livro, temos de viver num mundo sem papéis. Cultura? Não é para o nosso bico. A primeira manchete que a ministra Marta Suplicy fez em três anos à frente da pasta foi ao anunciar com alguma ferocidade que ia sair. Só que de repente a Amazon Brasil começa a vender livros “físicos” e vira o jogo.
Ruy Castro comparou a entrada da Amazon no mercado brasileiro de livros com “o passeio de um brontossauro pela Colombo [a confeitaria carioca]” (Folha de S.Paulo,7/8/2011). E, brinca: pelos últimos mil anos, dos manuscritos aos incunábulos e aos impressos a laser, livros têm sido chamados de livros. A partir de agora, os “físicos” se distinguem dos digitais. Esse brontossauro alarmou a Associação Nacional de Livrarias e, segundo o presidente Ednilson Xavier, “prejudicou, está prejudicando e irá prejudicar ainda mais” o mercado de livros no país (Folha, 23/11/2014). Por quê? Porque a Amazon vende barato e entrega em casa. Basta apertar um botão.
É claro que a competição começou, mas o que poderíamos imaginar é que o papel, o grande vilão, sumiria do mapa e os e-books, com preços cada vez mais convidativos, seriam a arma para atacar o polvo americano. Verdade? Mentira. Até porque se imagina que a classe mais desfavorecida, a que ainda soletra “Ivo viu a uva, vovó”, vai levar mais tempo para ter e entender um Kindle do que alugar um livro numa biblioteca pública no interior do país.
Irmão alemão
Só nas últimas semanas as revistas semanais resolveram usar as páginas culturais com aquilo que chamamos de cultura e não com o besteirol que assola as telas, as telinhas, as mentes desse país. O campeão é um livro de quase 1000 páginas sobre a Segunda Guerra Mundial, o romance épico do russo Vassili Grossman, Vida e Destino (Época, 24/11/2014), já saudado pela Veja (“Painel de escombros”,19/11/2014) e por Elio Gaspari, no Globo, com um “enfim, chegou às livrarias…” (14/11/2014). A Veja desta semana compila os últimos lançamentos sobre a Primeira Guerra Mundial, nada menos que as 728 páginas do livro de Margaret MacMillan (Editora Globo), e outro mais modesto, da mesma editora, só com 260 páginas, O Tratado de Versailles, de Harold Nicholson.
A Época da semana passada e alguns jornais do último fim de semana já anunciavam com estardalhaço o melhor legado do escritor americano Foster Wallace, que se enforcou aos 46 anos em sua casa. Chama-se GraçaInfinita, tem 1139 páginas e vai vender muito a somar os estilhaços soltos por várias publicações.
Poucos leitores ficaram imunes a trilogia de Haruki Murakami, 1Q84 (Alfaguara), que somava cerca de 1300 páginas e foi um sucesso, ou ao comovente relato do cubano Leonardo Padura sobre os últimos dias de Leon Trotsky e seu algoz, o catalão Ramon Mercader (O HomemQue Amava os Cachorros, Editora Boitempo, 592 páginas).
O mercado, o tal que ia minguar, despeja tijolaços ou livros cult como os dois volumes em capa dura revestidas de tecido compilando cada um cinco livros de José Saramago (Companhia das Letras, R$ 140,00) já de olho no Natal, com mais quatro edições de luxo no forno. E segue a série completa de livros do famoso escritor austríaco que se matou no Carnaval de 1942 em Petrópolis, Stefan Zweig (Editora Zahar), o mais recente O Mundo que eu Vi – base para o filme Grande Hotel Budapeste, de Wes Anderson.
Não faz muito tempo o economista francês Thomas Piketty, que em um mês vendeu mais do que qualquer outro livro da Harvard University Press em 100 anos, foi traduzido e vendido no Brasil que nem pão quente – O Capitalno Século XXI (Editora Intrínseca, brochura, 672 páginas). “Nenhuma obra de economia teve um histórico tão explosivo. O Capital, original aquele com K, mudou o mundo, mas Karl Marx já estava morto quando o livro terminou de ser publicado”, reverenciou a matéria da piauí de maio deste ano.
Surpreende a infinidade de livros sobre Jesus, incluindo Judas, de Amós Oz(Companhia das Letras, 368 páginas),Zelota pelo iraniano Reza Aslam (Zahar, 308 páginas), e os clássicos que a mesma Zahar afirma compor 60% das suas vendas este ano. Émile Zola, Jack London, só Alice de Lewis Carroll vendeu 175 mil exemplares e Sherlock Holmes, de Conan Doyle, 130 mil. Sem falar em Graciliano Ramos, Fernando Pessoa, Edgar Allan Poe.
Tem a biografia de Luis Carlos Prestes (Prestes – Um Revolucionário Entre Dois Mundos), de 582 páginas, que Daniel Aarão Reis levou cinco anos e meio para entregar à Companhia das Letras, o último do brilhante historiador Tony Judt, Pensando o Século XX, que acaba de sair com 440 páginas (Objetiva), e a surpresa de O Irmão Alemão de Chico Buarque que vai virar coqueluche de venda de Natal, e ninguém está pensando em Paulo Coelho.
Protecionismo estatal
A Amazon amedrontou, mas o mercado editorial brasileiro cresceu nos últimos 15 anos e é o nono do mundo. Quem duvida que dê uma passadinha numa das 19 lojas da Livraria Cultura ou numa das oito Livrarias da Vila, em São Paulo. Os donos, Pedro Herz e Samuel Seibel, apostam que o fetiche do papel pega; como diz Seibel, é “o gosto da relação com o livro físico, da intimidade, sem mistificação”. Ao participar em novembro de uma das conferências do ciclo “Fronteiras do Pensamento”, o escritor argentino naturalizado canadense Albert Manguel, que lia em voz alta para Jorge Luis Borges, apostou ainda mais no papel: “E-book reduz a capacidade de concentração”.
Na revista de informação semanal portuguesa Visão, Gonçalo M. Tavares explica por que o livro vai continuar muito além da guerra mercadológica provocada pela Amazon:
“O leitor é esse animal à procura de um esconderijo quando pressente a morte. O pressentimento da morte faz desse animal um leitor, alguém que se recolhe, que foge para o seu esconderijo… ler é estar escondido, não ser visto”
Ler é receita de sobrevivência, ou, como titulou o El País, receita “para un mundo sin esperanza” (24/12/2010).
Por que livros tão longos? “Desculpe, mas não tive tempo de escrever-lhe uma carta mais curta”, padre Antonio Vieira justificou-se numa carta a um amigo. Por que livros tão extensos vendem? Por que livros vendem no Brasil onde se lê tão pouco? Por que tantos analfabetos e tanto contraste? Por que justo quando os e-books ameaçam o papel os livros editados são tão volumosos? Por que o Ministério da Cultura não resolve o nó atado desde que foi criado, em 1985, quando os céticos duvidaram do “ministério para um país que não a tem” – já que as editoras continuam dependentes das compras do governo? Afinal, é o protecionismo estatal do Ministério da Cultura que permite um comércio de livros menos instável na França que na Inglaterra e Manhattan, e dá vida longa às livrarias parisienses.
Por que livros tão caros? Que o Brasil é um país de contrastes onde pelo menos cabem dois, todo mundo sabe. Mas um livro, uma reportagem (êpa! sumiram), um artigo poderia explicar isso tudo melhor?
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Norma Couri é jornalista