Janelas abertas para o passado, Imprensa e Poder flagra o presente inquietante, marcado por incertezas. Com coragem expõe a realidade política e institucional do país, denunciando a derrocada da Ética e desvios de comportamento, que corromperam a vida pública brasileira para contaminar o próprio caráter nacional. Com esse novo livro Virgílio Horácio de Castro Veado faz chegar aos leitores o que presenciou – ‘ora como testemunha, ora como personagem’ – em cinco décadas de jornalismo, cargos de confiança política e atividade sindical.
Os episódios políticos garantem longa vida ao livro e com eles o autor reserva lugar no futuro. Aos fatos: na rejeição do gabinete San Tiago Dantas pelo Congresso, João Goulart cede lugar a JK e ao PSD na responsabilidade pelo que aconteceu. Mais difícil de ser aceita sem contestação é a explicação do verdadeiro papel do governador Magalhães Pinto no desfecho de 1964. No caso, é depoimento de testemunha contra consenso político.
Passados 40 anos, Virgílio apresenta razões políticas que esperaram a oportunidade na memória do autor. Tendo perdido efeito político e passado à categoria histórica, por não mais alterar a ordem das coisas, a versão retira de Magalhães Pinto a aura de vencedor e nivela a sua imagem pela frustração de todos os candidatos à sucessão presidencial de 1965, que não houve. O autor valoriza a perda de controle do projeto político de Minas, que a dinâmica da crise final empurrou como fato consumado: o Palácio da Liberdade queria apenas, com a proclamação do ‘Estado de Beligerância’ (que precede o ato de independência), obrigar Jango a negociar. Mas ao deixar de reconhecer como legítima a autoridade de Goulart, facilitou a deposição e assanhou ambições.
Virgílio atribui a iniciativa de Magalhães, de cuja assessoria de imprensa acabara de exonerar-se, ao interesse de preservar a legalidade em proveito dos pretendentes – entre os quais ele – que armavam o jogo para a sucessão presidencial no ano seguinte. O golpe de Estado, no entanto, era considerado no figurino da intervenção cirúrgica tradicional, para pronta devolução do paciente aos cuidados dos políticos. Quem pode provar que houve apenas erro de cálculo? Sob a Constituição de 46 o conceito de legalidade sofria eclipses considerados politicamente corretos. Enquanto a oposição admitia que Jango não se libertaria do esquema sindical – não podia ou não queria? – JK não desistiu de vir a ser a única solução eleitoral ao alcance do PSD e do PTB. Fazia concessões. Adhemar de Barros era incógnita decifrável, Lacerda incluía instintivamente a deposição de Jango no seu cálculo eleitoral.
Informação interpretada
No depoimento de Virgílio, a idéia de retirar Minas da moldura federativa, com o sentido de forçar João Goulart a abrir negociação política e assim desanuviar a atmosfera nacional, não correspondeu ao desejado por Magalhães Pinto. Faltou o imprevisto, que é a incógnita das equações políticas: o general Mourão filho – por sua conta e risco alheio – foi o detonador da situação criada desde a sucessão de 60.
Magalhães é apresentado pelo autor com instrumento dos militares no papel de vencedor, na derrubada de Jango, em conseqüência de falha cometida por desatenção política, imprevidência e inexplicável ingenuidade. Do festival de erros de todos os lados, diz que o de maior conseqüência foi – consumada a deposição – Magalhães ter deixado de incluir a sucessão como prioridade nacional na proclamação de Minas. Depõe: ‘A precipitação dos acontecimentos (…) não permitiu que a nação conhecesse o plano de salvação da legalidade. Minas não patrocinou o golpe de Estado’.
Nos outros episódios que se destacam no livro, San Tiago Dantas mal aparece e logo passa a receber tratamento de personagem principal do seu tempo. Entra na vida de Virgílio (que veio para o Rio trabalhar no gabinete do presidente do IAPI) quando foi seu aluno na cadeira de Direito Civil na antiga Faculdade Nacional de Direito. ‘Fiquei deslumbrado com suas aulas’, ‘andando de um lado para outro’, com ‘admirável poder de síntese’, ‘persuasivo e lógico’, ‘dicção perfeita’, ‘delicadíssimo no trato pessoal, elegante no modo de se expressar’. Foi discípulo à primeira vista.
A política como assunto entre aluno e professor fez a aproximação, a política mineira fez o resto. ‘San Tiago fica sabendo que sou repórter político em Minas.’ Foi suficiente para que a política passasse a constituir ‘o principal assunto, tema obrigatório’, entre eles. O mestre confessou a vontade de fazer vida pública e já andava de conversa com os caciques federais. Mandato de deputado, teria dito Machado de Assis, aceita-se para começar. Benedito Valadares o queria candidato a deputado pelo PSD, Amaral Peixoto o pretendia para governar o Estado do Rio, João Goulart sentiu que podia consolidar o PTB mais à esquerda no espectro político da época e viu o futuro em San Tiago. Aflorou a tentação de livrar o trabalhismo da condição de linha auxiliar do PSD (Jango era o vice de JK). San Tiago acertou com Jango a candidatura a deputado por Minas e passou a agir. Virgílio preparou o primeiro encontro com os jornalistas de Belo Horizonte. Um sucesso de imprensa, e o bom começo reforçou o elo de amizade.
Virgílio logo depois fixou-se em Minas e viveu por dentro a sucessão estadual. Viu a disputa começar sob absoluto favoritismo de Tancredo Neves pelo PSD, mas a candidatura nasceu do pecado original – a ‘indicação feita de cima, sem maiores consultas’. O PSD era assim: decidia em segredo e depois formalizava publicamente. Mas os tempos já eram outros. Os fatos tomaram rumo imprevisível para quem estava longe deles: Tancredo derrotado, mas Jânio se elegeu e de repente San Tiago Dantas foi convidado para a chefia da delegação permanente do Brasil nas Nações Unidas, e Virgílio faz as malas. A renúncia, porém, veio antes do embarque. Pela veneziana das Janelas vê-se em retrospecto que o governador Magalhães Pinto e o deputado San Tiago Santas voaram juntos para Cumbica e ‘tentaram demovê-lo’ da insensatez. Em vão. Jânio não estava em condições de decidir.
Da renúncia ao parlamentarismo, a opinião pública se soltou. Mas a novidade adotada não foi bem sucedida. O ministério Tancredo Neves não funcionou (nem era para funcionar). Ficou abaixo da expectativa. Não passou mesmo de subterfúgio para encaminhar a posse. Faltou ao primeiro gabinete parlamentarista a convicção que sobrou ao segundo. Caiu Tancredo Neves, San Tiago foi indicado para o segundo e, por excesso de ênfase e convicção, surpreendentemente rejeitado pelo Congresso. Virgílio era assessor dele, acompanhou o episódio e retira do baú a informação devidamente interpretada. A seu ver, ficou ‘evidente que Jango (…) não tinha o propósito (nem interesse) de ‘queimar’ a indicação de San Tiago Dantas’, como se interpretou então, por ser o caminho mais curto para o presidencialismo. Tiveram ‘um prévio e formal ajuste de posições’ em relação as reformas de base que batiam à porta. Acertaram-se.
‘Fracassos e revezes’
O autor atribui o insucesso político a erro do próprio San Tiago, que conseguiu concordância do Congresso para expor e debater o seu plano de governo antes da aprovação do gabinete. ‘Incompreensível erro estratégico’, registra Virgílio: San Tiago interpretou como sinal favorável a aquiescência com a antecipação, que se transformou em armadilha, do programa do gabinete. Por conta da certeza da aprovação, San Tiago foi exuberante na demonstração política: desmontou com brilho a teoria da inflação com desenvolvimento, apontando as contradições e o efeito perverso no aumento das desigualdades. O PSD não gostou e não escondeu a decepção, e o PTB menos ainda. Era tudo com que a liberal UDN sonhava. A reforma agrária, reafirmada como compromisso entre as reformas de base, e a proposta de governar sem interferência do fisiologismo político desagradaram. O autor insinua que o juscelinismo, senão o próprio JK, operou profundamente a resistência. Desenvolvimento e inflação bailavam no ar da futura campanha presidencial.
Nem o PTB, apático e confuso, se empenhou na aprovação. A transferência da suspeita – de Goulart para JK – na rejeição ao gabinete San Tiago Dantas, é verossímil. À sombra da instabilidade, tiveram existência efêmera os dois gabinetes seguintes. O plebiscito veio a galope. Acabou-se o parlamentarismo e Jango ficou exposto ao mau tempo.
Virgílio tem versão própria (e controvertida) também sobre o que se passou em Minas, como conseqüência final do ciclo que foi da renúncia a 1964. Sustenta a convicção do ‘golpe antes do golpe’, do qual quer excluir a responsabilidade política do comando civil do movimento. Considera inconcebível que homens dotados de apurado faro político, como Milton Campos, Afonso Arinos de Melo Franco, José Maria Alkmim e o próprio Magalhães Pinto, este diretamente interessado na equação presidencial de 65, pudessem apostar em meios ilegítimos um ano antes. ‘Sem intenção de fazer história’ (mas não deixando de tentar), de tudo que viu e anotou, como fez toda a vida, Virgílio repassa episódios para reabrir questões políticas interpretadas de atropelo, em cima dos fatos. É inesgotável a disposição de medir forças com variantes de tudo que viu de perto e de dentro. O ‘Estado de Beligerância’, criado por Afonso Arinos como iniciativa de Minas, não tinha o objetivo de desviar a solução para o golpe tradicional (que utilizava a mão militar e logo depois devolvia o poder aos políticos), mas de obrigar Jango a negociar o acordo que garantisse a sua sucessão, ao preço de abrir mão do esquema sindical (CGT) e da ação de Darcy Ribeiro. Tudo dentro da Constituição, sem excluir os antecedentes que não a engrandeceram.
Não só dos episódios que viu de perto, ou envolvido pela forte admiração por San Tiago Santas, o autor – sempre na primeira pessoa do singular – inventaria com mão machucada o jornalismo e com mão pesada faz a varredura da ação sindical. ‘Como dirigente de classe acumulei (…) fracassos e revezes que somente agora me disponho a confessar’, ‘mais decepções que alegrias’. Virgílio trouxe o que contar de lugares por onde passou. E conta, às vezes com revolta, sempre com destemor.
Segredos revelados
A segunda parte do livro volta-se para a ação política, parlamentar e diplomática do ex-Chanceler. Justo tributo a um Homem Público de talento incontrastável, cuja imagem histórica permanecia ofuscada aos olhos das gerações mais novas. Virgílio se arriscou à empreitada com a ousadia de ex-aluno de Faculdade e com a autoridade moral do secretário-particular, que compartilhou momentos decisivos de uma trajetória política de raro brilho, precocemente interrompida.
O autor também não se esquiva de assuntos complexos, como a entrada do capital estrangeiro na mídia, fato que considera séria ameaça à pluralidade cultural no Brasil. A desordem ética na televisão é outro tema que não escapa à severa crítica de Virgílio, preocupado com a decadência intelectual das novas gerações de Imprensa. Com a firmeza de quem empenhou todas as energias e capacidade política na regulamentação profissional, recrimina ‘a irresponsável proliferação de cursos de jornalismo, mal estruturados e comprometidos com o lucro, com resultados puramente mercantis’.
Com San Tiago aprendeu a desconfiar da elite política brasileira. Denunciou, como discípulo, o que diria o mestre da expressão recorrente dos governantes de hoje. ‘Falta de vontade política’, a seu ver, não passa de desculpa para a incompetência: é ‘vazia, hipócrita, nada significa’.
Talvez a chave do enigma de Virgílio seja a surpresa, manifestação acidental de destino, sob a forma cirúrgica que feriu a vocação política a caminho das urnas. O salto se congelou. Depois da cirurgia optou pela História. Confiou ao texto os segredos dos quais não quer ser guardião. Lança-os ao debate dos vivos, em respeito pelos mortos.
******
Jornalista