Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

João Carlos Assumpção

‘ ‘Tirei a Globo do campo, ela me tirou da federação.’ Em palestra para empresários de São Paulo, foi essa a explicação de Eduardo José Farah para seu afastamento da FPF após 15 anos como presidente da entidade (1988-2003).

O ex-dirigente, que completou 70 anos ontem, culpa a emissora por sua saída de cena.

‘Eles me convenceram a fortalecer a Liga [Rio-SP], voltaram atrás e abandonaram o projeto. Daí fecharam com a CBF um Brasileiro mais longo e quase mataram os Estaduais’, disse Farah.

Marcelo Campos Pinto, diretor da Globo Esportes, refuta as declarações do cartola. Para ele, ‘a Globo não tem esse poder’. ‘Se tivesse, muita coisa já teria mudado no futebol. O Brasileiro [por exemplo] teria mata-mata, sistema de disputa mais atraente que o dos pontos corridos’, afirmou.

O executivo da Globo também considera injusto o ex-dirigente dizer que a emissora acabou com os regionais, embora tenha desistido de incentivá-los por achar o projeto caro demais.

E disse ainda que ‘Farah não nos tirou do campo’. ‘Tanto que vencemos na Justiça, transmitimos o Paulista e continuamos com a prioridade de renovação para o campeonato de 2004.’

Campos Pinto se referia a imbróglio pelos direitos de TV do Estadual. Cláusula no contrato do Paulista-02 previa o direito de preferência da emissora pelo torneio de 2003. Como a FPF insistia que a Globo não se manifestara, Farah assinou com o SBT. O caso foi parar na Justiça, e as duas acabaram transmitindo o Estadual.

Na conversa com integrantes da Corpes -Corporação de Estudos Sociais-, grupo de 50 empresários e profissionais liberais de São Paulo, Farah também alfinetou Marco Polo Del Nero, seu sucessor na presidência da federação.

‘A dona-de-casa, quando faz um bolo, tem que colocar um recheio, um chantilly… Com ele, [Del Nero] é a mesma coisa, deveria ter valorizado o produto que tinha, mas deu nota 5,5 [para o Paulista] e, depois, se arrependeu. Se fosse eu, teria dado nove’, afirmou, tirando risos da platéia.

O atual presidente da FPF, no entanto, nega que tenha se arrependido dos 5,5. ‘Tenho autocrítica e não sou mentiroso’, afirmou Del Nero, por intermédio de sua assessoria de imprensa.

O regulamento do torneio, que previa que os vencedores dos dois grupos da primeira fase se enfrentariam nas semifinais, e não na decisão, foi outro ponto que recebeu críticas de Farah. ‘Copiar [regulamentos anteriores] não é feio, mas copiar mal é horrível.’

Durante o Paulista, a federação justificou o cruzamento com o argumento de que havia sido aprovado em assembléia pelos clubes.

Mas não foi só sobre a Globo e a gestão de Del Nero que Farah teceu comentários. Durante cerca de duas horas, o ex-dirigente opinou sobre tudo, desde noitadas de jogadores -’Vágner Love tem direito de sair à noite’- até a administração Marta Suplicy -’a loira que parou São Paulo’.

Indagado por um empresário se, diante do fracasso do público do Paulista-04, cuja média foi de 4.263 pagantes por jogo, não seria melhor abrir os portões dos estádios, respondeu: ‘Se liberarmos a entrada, a torcida leva tudo, desde as privadas dos banheiros até as redes e as traves do campo’.

Sobre os dirigentes brasileiros, elogiou Mustafá Contursi, do Palmeiras, mas disse achar que Alberto Dualib já deveria ter deixado a presidência do Corinthians.

‘O Mustafá pecou em apenas um ano de sua gestão [em 2002, quando o time foi rebaixado para a Série B do Brasileiro], os outros dez [anos] foram muito bons.’

Já Dualib, acredita, deveria pensar em passar o bastão para a frente, especialmente devido à difícil situação que o Corinthians vive em campo. ‘Ele é um homem de quase 85 anos, que segue trabalhando, não vale a pena manchar toda uma administração, com as conquistas que teve, por uma fase complicada como a atual.’

A curto prazo, com o time que tem, Farah não acredita que a situação corintiana vá melhorar, mas a médio e longo prazo mostra otimismo. ‘A dívida do Corinthians é de R$ 40 milhões, perto do Real Madrid, que deve US$ 500 milhões, não é nada.’ Colaborou Fernando Mello, do Painel FC’



FANTÁSTICO
Bia Abramo

‘O modo fantástico de fazer jornalismo’, copyright Folha de S. Paulo, 2/05/04

‘Para quem foi adolescente nos anos 70, a música-tema do ‘Fantástico’ era um signo da depressão dominical.

O começo do programa marcava o término inexorável do fim de semana, a iminência da segunda-feira e, mais, o fato de que todas as esperanças de iluminação e de descobertas incríveis tinham ido por água abaixo.

Em vez de ter conseguido transformar radicalmente sua vida naquela semana e, sobretudo, naquele sábado e domingo, esperança secreta de 11 entre dez adolescentes, só restava a modorra, ver o tal do show da vida pela tela da TV.

O ‘Fantástico’ parece ser uma espécie de Coca-Cola da programação de TV -a fórmula, a um tempo intragável e absolutamente bem-sucedida, pouco mudou nos mais de 30 anos que está no ar (o programa estreou em 5 de agosto de 1973).

Modernizam-se as roupas dos apresentadores, introduz-se aqui e ali toques futuristas -agora há até uma prima mais jovem de Max Headroom, a apresentadora virtual Nica Shelley-, mas o espírito continua o mesmo.

Tudo, no ‘Fantástico’, tem o mesmo peso -a reportagem tem apresentação dramatizada, o documentário da TV estrangeira é picotado à vontade, a ficção ‘alivia’ o momento-denúncia, o humor se segue ao futebol. E isso só para ficar nos formatos, pois o conteúdo segue regras ainda mais homogeneizadoras.

O obscurantismo anda de mãos dadas com a informação científica e tecnológica, a política se dá numa espécie de teatro distante, as ‘polêmicas’ inventadas pela novela têm o mesmo lugar e importância que os comportamentos que surgem de fato na sociedade e assim por diante.

Memória

Evidentemente, tomadas individualmente, o ‘Fantástico’, de fato, já produziu reportagens interessantes, trouxe imagens impactantes, fez um trabalho de registro de personagens da história recente do Brasil que tem valor jornalístico e histórico inegável. No recém-lançado DVD ‘Grandes Reportagens’, parte (boa parte, os dois DVDs somam mais de sete horas) dessa trajetória está recuperada e, de fato, vale a pena ver de novo, sobretudo num país em que há tão pouca memória audiovisual disponível.

A fórmula está tão entranhada no imaginário brasileiro que a revista dominical eletrônica da Record, ‘Domingo Espetacular’, tem tudo para se transformar na Pepsi Cola da programação de TV. É igual na concepção, ligeiramente diferente na execução.

Em tudo é um pouco mais precária -tem menos recursos para produzir material original, menos dinheiro para comprar bons programas e documentários internacionais-, mas ao mesmo tempo oferece um cardápio muito semelhante de emoções. Um golzinho aqui, uma denuncinha ali, algum maluco arriscando a vida numa corredeira e assim se dissipa o domingo.’



EXPRESSO BRASIL
Renata Gallo

‘Programa nacional sob olhar regional: é o ‘Expresso Brasil’ circulando na tela’, copyright O Estado de S. Paulo, 2/05/04

‘Expresso Brasil, que estréia hoje, às 21 horas, na TV Cultura, fala sobre as paisagens do Brasil, de suas pessoas, de seus costumes, mas é muito mais do que isso. A série, que percorreu no último ano 13 Estados brasileiros e complementa a primeira leva de documentários exibida em 1997 pelo mesmo canal, forma um completo mapa cultural dos 27 Estados do País por uma visão muito particular.

Os cicerones nesta viagem são escritores, músicos, poetas, líderes culturais ou atores, alguns de reconhecimento nacional, outros regional, mas que, em comum, amam a terra onde nasceram, estando nela vivendo até hoje ou não.

‘Não é um programa de pontos turísticos, mas um programa que tenta captar a essência de cada lugar’, explica, orgulhoso, o cineasta Phillippe Barcinski, diretor-geral da série e diretor de 6 dos 13 documentários. ‘O conceito é de um turismo cultural ou de um bairrismo inteligente’, complementa Gabriel Priolli, que supervisionou tanto a safra de 97 quanto essa última – e derradeira.

O programa procurou pessoas que tivessem vínculo com sua terra e o máximo de identificação com ela. Assim, a cantora Tetê Espíndola mostra a Chapada dos Guimarães, em Mato Grosso, onde costumava cantar imitando o som das araras; Luis Melo apresenta o teatro, todo feito de madeira, em Curitiba, onde, ao pisar no palco, se sentiu ator pela primeira vez; a violeira Helena Meirelles ensina como é organizada uma comitiva de bois no Pantanal, no Mato Grosso do Sul.

Entre os outros apresentadores estão: Tom do Cajueiro, do Rio Grande do Norte; João Almino, do Distrito Federal; Txai Macedo, do Acre; DJ Dolores, de Sergipe; Edla Van Steen, de Santa Catarina; Genésio Tocantins, do Tocantins; Lêdo Ivo, de Alagoas; Maria Barcelos, de Rondônia; Hermano e Verônica dos Tambores, do Amapá; e Elisa Lucinda, do Espírito Santo. São eles que compõem o eixo em torno do qual giram todos os assuntos.

‘O mais legal é que o programa põe em pé de igualdade os Estados mais conhecidos com os pouco conhecidos como o Amapá, Rondônia, Tocantins’, afirma Barcinski. Em Tocantins, também chamada de mini-Brasília por causa de seu planejamento, por exemplo, o diretor diz que se surpreendeu com a diversidade de paisagens e com o Jalapão, ponto turístico ainda pouco explorado.

Mas, mais do que encher a tela de paisagens belíssimas, deslumbrantes, Expresso Brasil mostra o prazer dos convidados em estar nela. ‘Eu evitava voltar para Curitiba porque cada vez que voltava eu sentia um mal-estar porque gostaria de estar em Curitiba, não fora de Curitiba’, relembra Luis Melo no episódio que vai ao ar hoje.

Agilidade – A produção da série teve o cuidado de pegar a mesma linha da safra de 97, que tinha entre os convidados Haroldo de Campos, de São Paulo; Ziraldo, de Minas Gerais; e Tom Zé, da Bahia. ‘A diferença é que naquela época havia pouca TV a cabo e internet e hoje tudo é mais rápido. Coloquei mais agilidade na série pensando justamente no zapping’, explica Barcinski.

‘Há uma unidade que identifica a série do começo ao fim, mas, ao mesmo tempo, há uma profunda diversidade entre cada episódio, pois cada pessoa tem uma visão diferente da outra’, diz Gabriel Priolli. A base do programa é a entrevista feita com o cicerone que acaba se tornando um roteiro a ser seguido. ‘O trabalho de roteirização se deu em campo, com a interação da equipe com o condutor’, explica.

No programa sobre o Paraná, o ator Luis Melo começa a narrativa falando de sua identificação com o Estado. ‘A minha paisagem é a araucária, é o pinheiro-do-Paraná, é a geada. Eu não consigo ficar sem’, diz. Daí, passa a falar de alguns pontos importantes da cidade e de sua infância. Melo visita Antonina, no litoral do Paraná, e mostra as transformações da cidade que, no passado, abrigava um porto. Fala dos carnavais que passou lá, da casa da tia e da cidade que, como ele mesmo define, foi esquecida e parou no tempo.

Saudosismo – A infância é assunto recorrente em quase todos os programas. Os apresentadores revisitam lugares que freqüentavam quando jovens. E a câmera não deixa de captar o desconforto e um certo tom de desapontamento de um ou outro. ‘Nossa, parecia bem maior’, diz Tetê, ao visitar um teatro de Cuiabá; ‘Olha a casa da minha avó toda destruída’, constata a escritora Edla Van Steen, ao ver um sobrado em ruínas em Florianópolis.

Além de se deparar com a casa de sua avó abandonada, Edla, que mora em São Paulo há muitos anos, encontrou a cidade onde nasceu completamente mudada:

‘A praia e a cidade estavam infestadas de argentinos, a ponte velha estava interditada. Percebi que Florianópolis não tem mais os ângulos que eu imaginava que tinha’, diz, saudosista. Nem por isso o passeio foi desagradável. ‘Não lastimo nada porque o cheiro de Santa Catarina continua comigo’, afirma.

O poeta Lêdo Ivo também se emocionou com o que viu em Maceió. ‘Presumo ter guardado, tanto na minha prosa como na poesia, a imagem de uma cidade que não existe mais’, diz, para depois de alguns minutos concluir: ‘Hoje sei que não estava deixando Maceió. Na verdade, estava levando Maceió comigo.’

Um dos episódios mais divertidos é o de Mato Grosso do Sul, que tem a violeira Helena Meirelles como apresentadora. A história de Helena, por si só, já daria um documentário, quiçá um filme. Helena está com 79 anos, mas foi apenas em 93, quando foi escolhida entre os 100 melhores violeiros do mundo pela revista americana Guitar Player, é que conseguiu destaque nacional.

Antes do sucesso, Helena fugiu de casa e foi dada como morta pela família.

No episódio do Mato Grosso do Sul, ela visita um dos bordéis em que trabalhou como violeira. Com muito bom humor, abre a porta dizendo: ‘Olá, putaiada’. Também conta que, quando foi dar à luz a um de seus 11 filhos quase o teve sentada em um bar, bebendo cerveja.

Helena viveu no Pantanal e diz que a região é o lugar de ‘mais fartura’ que conhece, que lá só passa miséria quem tem preguiça. No programa, mostra como os condutores de boiada fazem o legítimo arroz-de-carreteiro e arrisca montar no cavalo e conduzir os animais.

Reincidente – Elder Aragão, conhecido mundialmente como DJ Dolores, participa do Expresso Brasil pela segunda vez.

Antes de sua carreira decolar como DJ, Aragão trabalhava com televisão e foi um dos diretores na primeira fase do programa. Agora, voltou à série como narrador. Uma posição, diz, um pouco incômoda. ‘Sou muito tímido. Sempre me senti mais confortável atrás das câmeras. Na música também é assim. O DJ sempre fica atrás da banda’, explica.

Aragão não visitava sua cidade, Propriá, há cerca de 20 anos e teve um choque ao ver o Rio São Francisco. ‘Lembro que, quando criança, a enchente do rio fazia parte do calendário natural da cidade. Na minha memória, o São Francisco era um rio poderoso.’ O problema é que nesses anos em que Aragão esteve longe de Propriá o curso do São Francisco foi redesenhado e suas águas perderam força. ‘O rio estava fraco, seco, dava para andar no meio dele. Fiquei muito triste, deprimido’, diz.

Depois de ter vivido essa experiência, Aragão concluiu que valeu a pena contar a história, mas ele preferia não ter vivido certas situações. ‘Tem coisas que estão organizadas nas gavetas da nossa memória que é melhor não mexer’, explica. Para ele, o programa é, no fundo, ‘uma espécie de reality show porque confronta as memórias dos convidados’.

Reality show de extremo bom gosto, que fique claro. O saudosismo e as emoções dos cicerones, misturados com as imagens de tirar o fôlego, fazem do programa uma obra-prima que merece ser guardada. Se é o papel da TV pública oferecer um programa de qualidade e conteúdo, Expresso Brasil não poderia ter encontrado caminho melhor.’