Os leitores não encontraram grandes motivos para escreverem ao provedor sobre a cobertura dos acontecimentos de Espanha feita pelo Público. Nem elogiando, nem criticando. Apenas alguma correspondência, quase toda sobre aspectos técnicos, irrelevante para a qualidade do trabalho produzido.
O jornal mobilizou, durante vários dias, meios excepcionais e dedicou ao massacre e às eleições o melhor do seu espaço com o trabalho de diversos enviados especiais, do seu correspondente e da redacção, expressos através de todos os géneros jornalísticos.
Para além da relevância absoluta dos factos ocorridos, teve influência na opção dos meios de comunicação portugueses o carácter específico dos atentados – que os transformou em assunto de interesse mundial – mas também o factor ‘proximidade’, um dos elementos que os jornalistas usam para seleccionarem o que deve ser noticiado. Sendo que, neste caso, a ‘ Lei da Proximidade’ se traduziu não apenas nos termos geográficos ou até culturais ou psicológicos, afectos à vizinhança de Espanha, mas também no debate que imediatamente surgiu, sobre as probabilidades de Portugal estar inscrito no calendário do terrorismo.
O que se passou em Madrid foi aquilo a que os teóricos, catalogando o tipo de factos que mobilizam a atenção dos jornalistas, chamam um ‘mega-acontecimento’ ou um ‘acontecimento noticioso excepcional’ ( por oposição ao ‘acontecimento de rotina’) ( 1). Factos que, nos seus desenvolvimentos posteriores, ganharam os contornos daquilo que outros especialistas designam por ‘acontecimentos mediáticos’, ou seja, factos que tendem a monopolizar as atenções gerais. (2)
Na reportagem destes factos, garantida pelo Público, encontraram alguns leitores, motivos de reparo. Para além de Victor Ferreira que, atento, detectou, alguns erros factuais, que caberiam no âmbito da rubrica ‘O Público errou’, o provedor registou as observações de dois leitores criticando, com razão, o uso de frases resultantes da mistura de palavras portuguesas e castelhanas: ‘ Nos últimos meses estive a viver em Espanha e irritava-me muito, ao ler os jornais, quando via nomes de portugueses escritos de forma ?espanholada? ( por exemplo António Guterrez, entre outros ). E pensava para comigo que isto seria impossível em Portugal…’ – comenta Luis Filipe Galvão, transcrevendo frases que encontrou no jornal, como ‘ assesinos, las guerras son vossas, los muertos son nostros’.
Esta expressão foi também referida, entre várias outras, por Filipe Cunha, num e-mail, cujo assunto assinalava: ‘Matança e outros espanholismos’. Citando diversos exemplos, o leitor põe em causa as frases que misturam português e castelhano, bem como o próprio uso da língua espanhola, sem tradução: ‘ Sendo o universo dos leitores do Público, está-se seguro, a população portuguesa, o pressuposto é o famoso de que todo o português lê e entende o ?espanhol?. É ele um mito, um erro e uma grosseria’.
Traduzir é a regra, naturalmente. O que não exclui o uso, de forma pontual e complementar, da língua original, se se considerar que assim se consegue, um maior grau de eficácia na transmissão da mensagem, junto de uma parte dos leitores.
Quanto à utilização da palavra ‘matança’, que o leitor considera ter sido usada por influência espanhola já que ‘ em português é feia e tem uma sonoridade e uma associação pecuária revelando-se totalmente inadequada e deselegante’, os dicionários não lhe dão razão: apresentam-na como sinónimo de mortandade, carnificina e morticínio ( algumas das alternativas que o leitor apontou), sendo que o dicionário Houaiss lhe atribui mesmo o significado de ‘massacre de muitas pessoas’.
Na sequência dos acontecimentos de Madrid realizou-se, em Lisboa, uma ‘Manifestação Pela Paz’, cuja cobertura jornalística, motivou uma queixa ao provedor, por parte de uma das entidades promotoras. Assinando como ‘dirigente da ATTAC’ e ‘co-organizador da manifestação’, Nuno Ramos de Almeida escreve: ‘ O Público colocou, na notícia de Domingo sobre a manifestação de dia 20 de Março em Lisboa, uma fotografia que se apresenta de uma forma manipuladora e desenquadrada jornalisticamente, com notórios objectivos de colar a manifestação ao terrorismo’. O e-mail acrescenta: ‘Na imagem vemos pessoas vestidas à ?palestinianos?, numa aparente homenagem aos bombistas suicidas. Em nenhum lugar, da notícia e da legenda se revela que a cena se enquadra numa representação onde existem outros elementos: soldados dos Estados Unidos da América, o Bush, etc… É visível a tentativa de identificar a manifestação com o apoio aos bombistas suicidas’ – escreve Nuno Ramos de Almeida, criticando depois os comentários feitos pelo director do jornal, em editorial do dia 24. Nesse texto, José Manuel Fernandes considera chocante a presença, naquela manifestação, de ‘umas criaturas que traziam ao pescoço lenços palestinianos e à cinta imitações das bombas dos terroristas, numa aparente homenagem a tais mártires’. No seu editorial, o director do Público, considera ainda chocante ‘ que ninguém na organização os tivesse posto à margem, o que mostra que a ?paz? por que se manifestavam até conviveria bem com o terrorismo suicida’.
Nuno Ramos de Almeida cita estas passagens querendo demonstrar que o director do jornal ‘não só permite a manipulação de imagens para fins políticos, como, não contente, se aproveita desse desvio deontológico’, fazendo aqueles considerandos.
Há nesta reclamação, dois aspectos distintos: apreciações à conduta técnica dos jornalistas intervenientes nas matérias publicadas e leituras político-ideológicas, subjectivas, dessa conduta.
Quanto a estas últimas – inverosímeis face à imagem publicamente consagrada do jornal – foram desmentidas com veemência pelos intervenientes ouvidos a propósito: ‘Sou totalmente alheio à escolha daquela imagem para ilustrar a manifestação de Lisboa. Só a vi já impressa no jornal no domingo. Não posso, por isso, ter ?ordenado?a sua escolha com objectivos de manipulação, como é sugerido pelo queixoso’ – responde o director José Manuel Fernandes. ‘ Uma acusação de ?manipulação para fins políticos?é, para os responsáveis por esta página, uma acusação totalmente absurda’ – afirma a editora da secção Nacional, Ana Sá Lopes, acrescentando que ser ‘falso que a inserção da fotografia tenha sido realizada ?com notórios objectivos de colar a manifestação ao terrorismo’.
E o autor da fotografia, explicando que a escolha da foto foi sua e do editor-adjunto, desmente quaisquer manipulações ou pressões ‘ de directores, editores ou redactores’.
No plano jornalístico a questão resume-se à publicação de uma determinada foto, supostamente ilustrativa de uma notícia sobre uma manifestação. A legenda é, aliás, ‘ Em Lisboa os manifestantes acusaram Durão de ter atrelado Portugal aos interesses americanos.’
Miguel Madeira, o fotógrafo, explica que escolhe as fotos de acordo com critérios ‘jornalísticos e estéticos’ e que ‘é muito complicado conseguir arranjar uma foto que fuja à banalidade das fotos de manifestação’.
Mas o que mostra a fotografia ? Mostra algumas pessoas vestidas de palestinianos com explosivos à cintura. São manifestantes ?
Na notícia, não há nenhuma referência a qualquer presença que não seja de manifestantes. Ou seja: não há nenhuma alusão a qualquer coreografia ou encenação ou ‘performance’ . E no entanto, algo similar aconteceu porque é isso que a foto retrata. Porém a legenda é imprecisa e equívoca, não o referindo.
Embora a editora, Ana Sá Lopes, considere que o facto de a cena não ser referida no texto não impede a publicação da foto ‘sem referência explicita ao conteúdo da cena’, o provedor entende, pelo contrário, que a foto carece de uma contextualização, relativamente, à notícia (e também, relativamente, ao conjunto das figuras que integravam a ‘encenação’).
Citando o Livro de Estilo, ‘ As fotografias, independentemente do valor dramático e informativo específico, não podem estar desfasadas do sentido do texto. A autonomia da fotografia é total, nas fotonotícias porque é nelas que se concentra a informação, mas não é admissível, por maior que seja a qualidade de uma fotografia, paginá-la junto a um texto cujo conteúdo não tem nada a ver com a expressão da imagem’.
Embora tendo a ver com o texto, a relação existente não fica explícita.
Quanto à notícia, não é a sua correcção que está em causa. Segundo o seu critério, a jornalista pode não incluir o episódio – o que, aliás, parece ter acontecido com outros jornais. No entanto, respondendo ao provedor, Maria José Oliveira, regista que à encenação (por um grupo que chamado GAIA), assistiram diversos dirigentes políticos e que ‘ a todos eles, a performance do GAIA – que revelava o paradoxo de, numa manifestação pela paz, ostentar métodos de acção terrorista – foi indiferente. Não assisti a qualquer manifestação, gesto ou movimento de repúdio por parte daqueles que agora desvalorizam o assunto.’
Teria sido útil a notícia dar-nos a conhecer estes factos e, com eles, teríamos percebido melhor a fotografia.
P S – Pelas respostas de jornalistas, a quem pedi comentários sobre a questão, fiquei a saber que Nuno Ramos de Almeida é jornalista do diário ‘24 horas’.
(1) – Em ‘Jornalismo’, edição Quimera, Nelson Traquina, que adopta a expressão ‘mega-acontecimento’ (dando o exemplo do 11 de Setembro de 2001) cita a tipificação da socióloga norte-ameericana Gaye Tuchman que define o ‘acontecimento noticioso excepcional’, como ‘ um acontecimento não programado e especificamente imprevisto, imbuído de tal dose de noticiabilidade que provoca uma reacção excitada e um tumulto na redacção’.
(2) – ‘Normalmente, afirma-se que determinado acontecimento é mediático quando suscita uma excepcional atenção dos media, exercendo certa hegemonia nos espaços destinados à informação ou interrompendo, na rádio e na televisão, a sequência de programas’. Mário Mesquita, ‘O Quarto Equívoco’, Minerva Coimbra.’