Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

‘Joicy’, ou elogio da reportagem

Uma das coisas que dão sentido ao jornalismo é a luta contra o preconceito. Mas, frequentemente, essa luta exige enfrentar o preconceito dos próprios colegas jornalistas. Foi o que aconteceu com Fabiana Moraes, repórter especial do Jornal do Commercio (Recife, PE), quando propôs a pauta sobre uma transexual do sertão pernambucano: muitos duvidaram do sucesso daquela empreitada, em parte pelo baixo prestígio social da personagem, que além do mais estava longe de corresponder à imagem – preconcebida, portanto, preconceituosa – que se costuma fazer de uma pessoa que se submeteu a uma cirurgia de redesignação sexual mas, embora seja do gênero feminino, não exibe os sinais comumente identificados à feminilidade – brincos, vestidos, batons, “delicadezas”. Um colega, inclusive, chegou a desdenhar do empenho da repórter: para ele, não fazia sentido perder tempo com uma personagem “pobre, burra e ignorante”.

Fabiana relatou essa história num dos debates sobre seu mais recente livro, O nascimento de Joicy, que reproduz a reportagem à qual ela dedicou seu tempo, seu talento e seu afeto e foi recompensada com o Prêmio Esso de 2011. A obra, já comentada aqui (ver “A necessária aliança entre sensibilidade e senso crítico”), foi lançada no Recife, no Rio e, agora, será apresentada em São Paulo, na quinta-feira (2/7).

Fabiana tem aproveitado esses encontros para fazer exatamente o que o seu livro propõe: aliar a discussão da prática do jornalismo aos problemas enfrentados pelas pessoas “trans”. Por isso, os lançamentos contam com a presença de representantes desse grupo e têm sido um espaço para mostrar a diversidade das questões de gênero, a variedade de comportamentos e as múltiplas formas de preconceito, que vão muito além da rejeição ou do deboche e se refletem nas restrições das oportunidades de emprego – ou seja, nas possibilidades de sobrevivência. A luta pela afirmação da transexualidade aparece, então, em toda a sua inteireza, como uma luta fundamental pelos direitos humanos. E, por ser uma afirmação da autonomia do indivíduo, é uma luta essencialmente ética.

Escrever para “descobrir coisas”

O trabalho de Fabiana sempre teve esse sentido de militância que acompanha o bom jornalismo – a militância comprometida com a defesa dos direitos fundamentais mas ancorada numa apuração rigorosa, não o proselitismo vazio que inunda a internet – e sempre privilegiou o universo da periferia, dos marginalizados, dos explorados de toda sorte: assim, tratou das profissões que ninguém quer, da vida mambembe, dos preconceitos racial e de gênero, da vida no sertão nordestino.

Os muitos prêmios que recebeu – entre os quais três Esso: o Regional, em 2007, com “A vida mambembe”, o de Jornalismo, em 2009, pela série “Os Sertões”, e o de Reportagem, por “Joicy” – indicam a valorização desse caminho, que Fabiana faz questão de reiterar nos debates em universidades, na esteira do lançamento de seu mais recente livro. São oportunidades para mostrar outros exemplos de fuga do lugar-comum. Como em “Os Sertões”, justamente, em que, diante da proposta de pauta, um editor logo imaginou uma publicação elegante em tons de sépia, que reproduzia os estereótipos sobre a região: a terra calcinada, o gado esquelético, a pele curtida e seca do sertanejo. “Não”, objetou delicadamente a repórter, “vamos primeiro ver o que encontramos e depois pensamos na edição.”

O resultado foi um sertão de muitas cores, bem distinto do marrom seco “que a gente ficou meio cansado de ver”, como se pode conferir aqui. É claro que estavam lá a terra calcinada, o gado esquelético e as pessoas de pele curtida e seca, mas havia muito mais: uma travesti vencedora do concurso Miss Gay e, para surpresa da própria repórter, perfeitamente aceita pela família, uma sem-terra cuidadosa que guardava seus batons e esmaltes em uma caixinha de plástico, o rapaz que, em Canudos, vendia DVDs de Mel Gibson, Latino e Beyoncé. Além, naturalmente, do padre que explorava a imagem de Cícero e a boa fé dos crentes. A edição das imagens também fugiu ao padrão: mostrou a produção das fotos, como num estúdio a céu aberto, com rebatedores e demais recursos normalmente escondidos do leitor.

“Eu escrevo para descobrir coisas”, disse certa vez Oduvaldo Vianna Filho, o Vianninha, a respeito de seu ofício de dramaturgo. O mesmo se poderia dizer dos bons repórteres. Pois foi para descobrir coisas que Fabiana descobriu esse outro sertão, da mesma forma que descobriu Joicy, improvável personagem que, além do mais, lhe permite falar da relação de solidariedade e conflito com esse “outro” que ora se expõe, ora se esconde, ora é afável, ora, rude.

Essa “delicada relação entre repórter e fonte” é o tema de sua palestra no Congresso Internacional da Abraji, na manhã de sábado (4/7, no campus Vila Olímpia da Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo). Será mais uma oportunidade para discutir os vários aspectos da prática da reportagem associada a outras áreas de conhecimento, que inevitavelmente giram em torno de questões de ética, fundamentais para o exercício do jornalismo.

>> Em Tempo: Com este artigo, interrompo minha colaboração com o Observatório da Imprensa, tendo em vista a saída do editor, Luiz Egypto, que comunicou sua despedida nesta edição. Foi um privilégio e um prazer trabalhar com ele. Deixo aqui registrado meu agradecimento pela oportunidade de ter contribuído regularmente com este site por quase três anos. Os muitos comentários que recebi com certeza me fizeram crescer intelectualmente e eu espero ter retribuído com meu melhor esforço nesse difícil mas necessário exercício de crítica da mídia.

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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)