Num momento em que a fragilidade da democracia brasileira ficou exposta com o recente episódio da saída do ministro da Defesa, José Viegas, no bojo da crise provocada pela publicação de fotos do jornalista Vladimir Herzog, assassinado numa divisão do Exército em 1975, em São Paulo, e a conseqüente resposta ameaçadora da caserna, é importante ler os episódios relatados em Jornalismo de guerrilha — A imprensa alternativa brasileira da ditadura à internet, do jornalista Rivaldo Chinem, que acaba de chegar às livrarias.
A partir da reescritura e atualização de Imprensa alternativa — Jornalismo de oposição e inovação (São Paulo, Ática, 1995), Chinem escreveu, praticamente, um novo livro, a rigor, uma grande reportagem sobre um momento muito triste da história brasileira – que melhor seria esquecer, não fossem alguns mortos que não se sabe até hoje onde foram enterrados pelos esbirros da ditadura (1964-1985).
Jornalismo de guerrilha não trata especificamente desses perseguidos que desapareceram na noite do arbítrio, mas de outros igualmente perseguidos: jornais e jornalistas que fizeram a imprensa alternativa, chamada carinhosamente de nanica pelo contista e jornalista João Antônio (1937-1996), meio de comunicação de poucos recursos, mas que desempenhou papel fundamental sobre o que, de fato, ocorria no país.
Não é novidade para ninguém que, durante a ditadura, muitos órgãos da grande imprensa, com as honrosas exceções, aceitaram passivamente a pressão que a ditadura procurava exercer para abafar a ferro e fogo tudo o que contrariava os seus interesses. Foi a partir da constatação dessa conivência dos grandes veículos com o terror e o arbítrio que nasceu a imprensa alternativa, jornais de vida efêmera que procuraram fazer a análise ou mesmo ler o que os jornalões nem sempre divulgavam nas entrelinhas.
Jornalismo de guerrilha traça um panorama sintético da história de cerca de 300 periódicos que nasceram e morreram entre 1964 e 1980 e que se caracterizaram por uma oposição intransigente ao regime militar, denunciando a tortura e a violação dos direitos humanos, além de criticar o seu concentrador modelo econômico – que, aliás, duas décadas depois, ainda se mantém intacto em suas linhas gerais.
Bolsões descontentes
Seu ponto de partida é a morte de Vladimir Herzog e a atuação dos censores que vetavam as notícias que alguns grandes jornais e a imprensa alternativa pretendiam publicar. O livro conta ainda a história dos jornalistas que se encarregavam de fazer essas publicações – a maioria a troco de nada ou de parcas remunerações, muito mais pela satisfação de combater o nazi-fascismo que se instalara no Brasil com 20 anos de atraso em relação aos países do Eixo derrotados na Segunda Guerra. Muitos desses jornalistas, como conta Chinem – e ele próprio foi um deles –, depois de fechada a edição e impresso o jornal, saíam às ruas com o objetivo de ajudar na distribuição dos exemplares em esquemas improvisados nas periferias das grandes cidades do país.
A obra, porém, detém-se com mais detalhes em três dos veículos alternativos que, inquestionavelmente, destacaram-se nos ‘anos de chumbo’, assumindo o papel de tribunas livres e independentes, por meio das quais a parte mais esclarecida da sociedade brasileira conseguia se expressar, malgrado o regime sufocante em que vivia: O Pasquim, Opinião e Movimento.
Se vale um depoimento pessoal, este articulista quer lembrar que teve algumas de suas resenhas de livros censuradas pela caneta vermelha dos censores que cuidavam em Brasília de examinar o material jornalístico do semanário Opinião, do Rio de Janeiro. Outras foram publicadas, mas com tarjas negras nas partes que o energúmeno travestido de censor entendeu de vetar.
Já o semanário Movimento, de São Paulo, divulgou o prefácio que o jornalista Marcos Faerman (1944-1999) escrevera para o meu romance Os vira-latas da madrugada, publicado em 1981 pela Livraria José Olympio Editora, do Rio de Janeiro. Publicou porque, dias depois do livro lançado, a editora decidiu mandar de volta a edição à gráfica para que fosse arrancado o prefácio, provavelmente com receio de que os chamados bolsões radicais do regime ficassem descontentes. Afinal, a editora, em má situação financeira, estava sob a intervenção do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
Luta quixotesca
Nos exemplares que foram para as livrarias salta-se da página 4 para a 8, espaço em que estava o prefácio censurado, mas quase ninguém percebeu o detalhe. A grande imprensa também nada noticiou, restando apenas a defesa solitária que fez o Movimento.
Para dar uma idéia do ambiente em que se vivia, basta assinalar que, na noite de 30 de abril de 1981, quando houve um lançamento coletivo na sede da editora, ocorreu também o triste episódio da explosão, no colo de um sargento, de uma bomba que se destinava a provocar uma carnificina durante a realização de um show no Riocentro. Além disso, bombas camufladas estavam sendo enviadas pelo correio às sedes de instituições que se pronunciavam contra o arbítrio, matando e mutilando pessoas indefesas.
O jornalista Rivaldo Chinem, 51 anos, foi repórter da Folha de S. Paulo, de O Estado de S. Paulo e da revista Veja, e dirigiu o jornalismo da TV Gazeta e da Rádio Tupi, em São Paulo. Foi ainda um dos jornalistas que enfrentaram a ditadura trabalhando na imprensa alternativa, tendo passado pelas redações do Repórter e de O São Paulo, então combativo jornal da Cúria Metropolitana de São Paulo, que tinha à frente o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns.
Chinem também colaborou nos semanários Opinião e Movimento e conheceu a fundo a luta quixotesca desses pequenos jornais contra a ditadura. Não haveria pena melhor para recontar a história daqueles dias de angústia.
******
Doutor em Literatura Portuguesa pela USP; autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003)