As discussões sobre o futuro do jornalismo giram quase sempre em torno do impacto das tecnologias digitais de informação e comunicação. Não são poucos os analistas que consideram encerrada a história da imprensa como “quarto poder”, como instituição que ajudou a sustentar o desenvolvimento das democracias modernas.
Mas há outros aspectos dessa questão tão ou mais relevantes do que as mudanças tecnológicas, cujos efeitos ocorrem com tanta velocidade que se torna impossível interpretar suas consequências em curto prazo. Um desses fatores, intangível e difícil de transcrever, é o que se poderia chamar de “espírito jornalístico”.
Talvez a observação não sirva para entender a crise que vive a imprensa tradicional em quase todo o mundo, mas com certeza vai bater no centro das causas da decadência da imprensa brasileira. Trata-se do desmanche de um determinado tipo de atitude e de um talento especial para encarar os acontecimentos, que já foram as características do fazer jornalismo. Uma porção desse material, de altíssima densidade, pode ser encontrada no livro que acaba de ser publicado pelo repórter Vital Battaglia. Seu título: Ah! – Atestado de óbito do Jornal da Tarde e outras histórias do jornalismo.
Primeira página
Battaglia – que começou na Última Hora, ajudou a fundar Notícias Populares e cumpriu o melhor de sua trajetória no Jornal da Tarde –junta nessa obra um conjunto de crônicas, a maioria sobre a cobertura do mundo futebolístico, que resume o que veio a ser o jornalismo que atualmente se encontra em processo de extinção.
São pouco mais de uma centena de deliciosas histórias sobre personagens e acontecimentos que ele testemunhou desde 1962, quando começou a carreira, até a última edição do Jornal da Tarde, em 31 de outubro de 2012. Para ele, o JT não morreu nesse dia. Sua agonia começou muito antes, quando os donos do jornal resolveram que eram também jornalistas.
“Atestado de óbito”, texto que abre o livro, tem apenas duas páginas e esclarece como o fim do Jornal da Tarde – que teria completado 47 anos de existência no dia 4 de janeiro deste ano – explica em boa parte o que está acontecendo com a imprensa tradicional no Brasil.
Vital Battaglia preserva no livro o estilo que marca sua carreira, um estilo que se desenvolveu em simbiose com o próprio Jornal da Tarde, produzindo um jornalismo no qual o centro da notícia eram as pessoas, não as estatísticas.
Talvez o ícone mais representativo dessa escola tenha sido a capa publicada quando a seleção brasileira de futebol foi derrotada pela Itália, na semifinal da Copa do Mundo de 1982, em Barcelona: a fotografia de um menino brasileiro chorando, feita por Reginaldo Manente, foi resgatada por Battaglia e enviada à redação, em São Paulo, e o editor Mario Marinho resolveu ocupar com ela toda a primeira página do jornal. A história da fotografia e dos bastidores da derrota estão descritas com maestria a partir da página 115 do livro.
Jornalismo literário
O olhar curioso do repórter é, provavelmente, o patrimônio que se perdeu nesse trajeto. Um olhar quase inocente, inspirador das perguntas que deveriam ser a essência da notícia, é a marca desse livro. Como, por exemplo, quando o autor se pergunta quais seriam as qualidades de um jornalista profissional capaz de conter as lágrimas nas ocasiões em que é obrigado a anunciar uma tragédia.
Battaglia lembra ter ficado impressionado quando o âncora do Jornal Nacional da TV Globo, William Bonner, noticiou friamente a morte de seu colega Tim Lopes, cujo corpo foi esquartejado e queimado por traficantes no Rio.
“O que me deixou menos perplexo foi que William Bonner não é esse homem de ferro que se viu na morte de Tim Lopes. Quando ele anunciou a morte de seu patrão, Roberto Marinho, ele chorou. E foi aplaudido por seus colegas por chorar a morte de um homem quase centenário”.
O golpe militar de 1964, os anos de censura, a agonia e morte de Tancredo Neves, a redemocratização e a modernização do Brasil e algumas tragédias transcorrem como pano de fundo das histórias sobre futebol. Uma crônica em homenagem ao repórter e escritor americano Gay Talese, tido como um mestre do jornalismo literário, é o penúltimo texto do livro de Vital Battaglia.
Depois, vem uma despedida na qual ela anuncia ter pendurado as luvas. Mentira: Battaglia segue sendo um dos últimos representantes desse tipo raro que era chamado de repórter.