A imprensa começava a perder interesse no desaparecimento de Lucie Blackman, jovem inglesa que chegara ao Japão em 2000 para trabalhar como hostess num bar, quando o jornalista inglês sediado em Tóquio Richard Lloyd Parry viu na história um livro em potencial.
O motivo, depois de meses de investigações infrutíferas, foi a entrada em cena de um novo personagem: Joji Obara, milionário japonês filho de zainichis (imigrantes coreanos), tão discreto em público quanto capaz de atrocidades entre quatro paredes.
As peças que Lloyd Parry juntou a partir do crime cometido por Obara em meados de 2000, e de outros que passaram a vir à tona, fazem de “Devoradores de Sombra” um thriller digno das várias listas de melhores do ano (ou da década) que frequentou desde o lançamento, em 2011.
Lançada agora pela Três Estrelas, selo editorial do Grupo Folha, a obra amarra a trajetória de Lucie, os riscos vividos pelas mulheres que trabalham na noite de Tóquio, a corrupção policial japonesa, o preconceito sofrido pela comunidade coreana no país e a abjeta vida de Obara, de garoto solitário a empresário que por décadas registrou em vídeo os estupros que cometeu.
“As reportagens que fiz na época não davam conta da complexidade da história. O que faz exatamente uma hostess? Por que o julgamento durou tanto? Qual o problema da família de Lucie?”, diz Lloyd Parry, por e-mail.
Obara “era diferente de qualquer personagem” que o autor tivesse encontrado antes. Nascido em Osaka, em 1952, filho de um casal coreano que migrou para o Japão antes da Segunda Guerra, cresceu numa mansão –seu pai fez enorme fortuna, não se sabe exatamente como.
Sem amigos, foi mudando de nome e acumulando propriedades durante a vida até se tornar esse homem do qual várias hostesses guardavam péssimas e poucas lembranças –os encontros com ele sempre terminavam com elas apagadas, drogadas, num apartamento na praia.
Polícia
Boa parte do livro é dedicada à descrição da investigação promovida pela polícia japonesa, cuja atuação, para Lloyd Parry, demonstra uma “incompetência institucional” –apesar de uma quantidade enorme de pistas, foram sete meses até o corpo da vítima ser localizado.
Uma das razões, para o autor, foi um modelo de investigação que prioriza a confissão do acusado. Para a polícia japonesa, segundo ele descreve, não basta saber que um crime foi cometido e como, mas descobrir por quê.
“Não foi só que eles demoraram demais a descobrir o que tinha acontecido com Lucie depois que ela desapareceu. Joji Obara deveria ter sido mandado para a cadeia vários anos antes –pelo menos em 1992, quando matou outra jovem mulher, Carita Ridgway”, diz o autor.
Por anos, várias mulheres que terminaram encontros com Obara desacordadas o denunciaram, mas a polícia nunca fez nada a respeito.
“Não sei como é no Brasil, mas, na Inglaterra, há o senso comum de que é injusto culpar a vítima de violência sexual pelo que aconteceu com ela. A morte de uma prostituta –e Lucie estava longe de ser uma– é tão trágica e inaceitável quanto a morte de uma freira.”
Para o jornalista, a polícia não dava atenção às denúncias por não acreditar que fosse necessário se preocupar com quaisquer violências que as hostesses sofressem nos encontros com seus clientes.
Foi preciso Tony Blair, então primeiro-ministro britânico, se manifestar a respeito para o caso ser solucionado, e Obara, condenado.
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Raquel Cozer é colunista da Folha de S.Paulo