Nas vésperas da virada de 1988, a jornalista Elane Maciel foi à festa de aniversário do fotógrafo Evandro Teixeira, seu colega no Jornal do Brasil. Encheu a cara de vinho branco e saiu feliz da vida, depois de comentar com Marly, mulher de Evandro, que no dia seguinte iria ver os fogos em Copacabana a bordo do Bateau Mouche.
Ela, que costumava todo ano ir ao Posto 6, em Copacabana, para assistir ao espetáculo que atrai milhões de devotos da virada às areias da praia, achou interessante atender ao convite do jornalista José Carlos Tedesco, assessor da Itatiaia Turismo, e embarcar como convidada no cais do restaurante Sol & Mar, na Enseada de Botafogo, para um passeio que custava US$ 200 aos comuns dos mortais. A ideia era comemorar a bordo seu próprio aniversário de 38 anos, no dia 31 de dezembro. A comemoração não houve, o barco afundou antes de chegar a Copacabana e ali mesmo morreram 55 de seus supostos 153 passageiros, mais que o dobro da lotação autorizada, constatou a perícia dias depois.
‘Samba no pé’
Na festa do Evandro, Elane se sentia muito alegre, mas não sabe por que comentou com a irmã Heloisa Helena, que a acompanharia no barco: ‘Esse passeio ou vai ser muito bom ou eu vou virar comida de peixe’.
Premonição? Ela diz que não. Hoje, aos 59 anos, sentada na murada da Urca numa dessas tardes de quase 40 graus no Rio de Janeiro, garante que nem passou pela sua cabeça – pelo menos conscientemente – a ideia de uma tragédia.
Dali da murada se pode ver ao longe o cais e a Enseada de Botafogo coalhada de barcos. Com o olhar meio perdido, Elane, hoje redatora de house organs, confessa que nunca teve disposição para relembrar a história. Foi a maior experiência de sua vida. E que mudou muito seu comportamento, seu relacionamento com as pessoas, seu enfoque de vida. Hoje, por exemplo, não briga mais por causas pequenas, não se aborrece com pequenas coisas. Diz que não vale a pena o desgaste, a vida boa é ligar para os amigos, falar com eles, estar com eles.
A conversa volta à festa de aniversário do Evandro. Elane conta que acordou cheia de ressaca no dia 31, dia de seu aniversário. Chegou a falar em desistir do passeio com a irmã, a quem havia convidado para acompanhá-la. Heloísa não deixou. ‘Vai perder um programa bom desses? Não vai não’, insistiu Heloísa.
No início da noite, já melhor da ressaca, deixou na casa de um irmão em Copacabana os filhos Leonardo e Juliana, à época com 13 e 9 anos. Quase em cima da hora marcada para a partida do Bateau Mouche IV, nove da noite, ela estacionou seu Uno vermelho novinho no cais da enseada e, a contragosto, deixou as chaves no armário de vidro do estacionamento, confiadas ao guardador.
No cais, um dos dois barcos que fariam a vigília dos fogos, o Bateau Mouche III, já estava lotado. Ela comentou com a irmã: ‘Que bom que a gente vai ficar neste aqui (o Bateau Mouche IV), que é bem mais alto, dá pra ver melhor os fogos’. Mal sabia que essa altura toda do barco, acrescentada numa operação irregular pelos armadores, ajudaria a tombar o barco de fundo chato, estável para águas calmas do interior da Baía de Guanabara, mas incapaz de resistir ao balanço das ondas do mar aberto.
Na entrada do barco, os organizadores distribuíram adereços – um colar de havaiana e uma espécie de chocalho. O acesso se fazia no piso intermediário (havia outro abaixo, com banheiros e um salão de boate, e um acima). Nesse piso intermediário, bem em frente à entrada, estava preparada a mesa da ceia de Ano Novo. No teto, exatamente sobre a mesa recheada de peru, farofa, tender e fios de ovos, pendiam num gradeado os 54 coletes salva-vidas surrados de isopor. Um norueguês exigiu e obteve um. Uma senhora comentou: ‘Lá vai o covardão’. Nunca se soube dele. Nunca se soube quantas pessoas de fato havia a bordo. A promotora Leny Costa de Assis, que atuou no caso, disse à TV Globo há cerca de cinco anos que muita gente que sobreviveu, estrangeiros inclusive, não se apresentou, por alguma razão. Muitos não quiseram aparecer, admite.
Como ali naquele piso intermediário com a mesa da ceia não havia lugar para elas, subiram acompanhando o som de samba animado que vinha lá da plataforma superior. Mas lá também não havia lugar. O barco estava lotado. Tão lotado que elas ficaram em pé, ao lado dos músicos, levando pisadas nos sapatos a cada balanço do barco. ‘Samba no pé’, comentou Elane com ironia. Chuviscava, o céu estava nublado e uma espécie de fog marinho não deixava que se visse nada muito além do cais.
Torrente de ações
As duas irmãs estavam vestidas de branco, como manda o figurino do Ano Novo. Elane de saia abaixo dos joelhos, bustiê, uma bata aberta nas costas e sandálias de salto alto. Heloísa de vestido branco e sandália. Acomodaram-se pouco tempo depois ao lado de duas senhoras, uma funcionária da Caixa Econômica, a outra, ela veio saber depois – mas nem se lembra mais de nomes –, mãe de uma colega jornalista que trabalhava na revista Pais & Filhos. Uma delas contou que tinha trazido uvas para fazer simpatia. A outra disse que tinha perdido um brinco, ao que a amiga sugeriu ter sido obra de Iemanjá. Que ela voltasse no dia seguinte cedo e entregasse à rainha das águas o brinco remanescente. ‘Foi Iemanjá quem levou. Ela vai querer o outro’, garantiu.
O barco partiu a caminho da festa com quase meia hora de atraso. O outro, o Bateau III, de menor porte e comandado por um mecânico, já havia zarpado também com lotação esgotada. E lá foram todos rumo ao mar aberto, proa na direção de Niterói pra cruzar entre a Fortaleza de Laje, de onde fugiu a nado durante a ditadura o líder político goiano Tarzan de Castro – e a base do Morro Cara de Cão, para passar em frente à Praia Vermelha e ganhar o mar aberto, a caminho do Leme, o início de Copacabana.
Mas essa primeira fase da viagem, digamos assim, não durou nem 15 minutos. Uma lancha da Capitania dos Portos, tripulada por dois sargentos, abordou o barco. Os militares conversaram com o mestre arrais Camilo Faro Costa, que veio a morrer no naufrágio. Ninguém ouviu o diálogo, mas se soube que a ordem da Marinha era para voltar ao cais. Voltaram, para tristeza de todos a bordo.
Assim que o barco encostou, entrou um oficial da Marinha que deu uma olhada por cima na massa compacta de passageiros e fez uma espécie de contagem das cabeças visíveis. Nos processos judiciais, os números levantados pelo oficial variam de 93 a 149, mas ainda hoje nem se sabe se eram mesmo os 153 computados oficialmente. Nada se soube da conversa desse oficial de Marinha com os tripulantes, nem mesmo nos demorados processos judiciais que indiciaram nove sócios, três funcionários da empresa e 10 militares da Marinha. Três destes militares foram condenados pela Justiça Militar a três meses de prisão, nenhum foi à Justiça comum. O processo contra os donos do barco já expirou e os parentes das vítimas estão sendo indenizados pouco a pouco por danos morais, à medida que se encerram as múltiplas ações judiciais impetradas contra o Sol & Mar, dono do barco, contra os sócios da Itatiaia Turismo e até mesmo contra a União, devido à responsabilidade apurada da Marinha no episódio. A Justiça estipulou uma média de R$ 800 mil para cada vítima.
Elane resolveu aproveitar a volta ao cais para desembarcar. Começou a se aporrinhar com aquele passeio. Não pode desembarcar, disse um marinheiro. Ela suspeitou, admite hoje, que tinha embarcado num ‘programa de índio’.
Não se sabe como, mas 20 minutos depois o barco foi liberado. A promotora Leny disse que havia testemunhos de suborno para a liberação do barco, mas que esse aspecto não foi considerado nos tribunais civis. Todas as condenações – poucas – foram por crimes tidos como ‘culposos’, não havia sequer a figura do dolo pela assunção do risco. A torrente de ações civis e criminais contribuiu para atravancar as conclusões, mesclando-se em diferentes varas e produzindo múltiplas interpretações.
Lastro inadequado
Os espanhóis Faustino Puertas Vidal e Avelino Fernández Rivera, donos dos barcos, fugiram para a Espanha, que negou a extradição dos dois. A imprensa noticiou que o ministro Tarso Genro foi à Europa pouco antes do Carnaval para resolver diversas questões de extradição com alguns países europeus, principalmente o caso Cesare Battisti, o terrorista italiano que o Brasil se recusou a devolver à Itália. Na viagem do ministro estaria também uma conversa com a Espanha sobre os donos do Bateau.
O advogado de Elane, João Tancredo – que tem mais 26 clientes no mesmo processo e conseguiu apreender R$ 40 milhões em bens dos empresários para cobrir indenizações –, ficou indignado com a fuga, na época, feita com passaportes e pela porta da frente do país.
A volta ao cais atrasou muito a viagem. Por isso, a ceia foi iniciada pouco antes das onze da noite, nem bem o barco chegava ao costão do Morro Cara de Cão, hoje mais conhecido como Morro do Pão de Açúcar, bem em frente ao local onde, no século 16, os invasores franceses acamparam para tentar tomar a cidade do Rio de Janeiro.
Elane deixou o grupo de pagode tocando lá em cima e desceu com Heloísa para jantar. Foi quando avistou num canto de difícil acesso a atriz Yara Amaral, sentada num banco por trás de uma escada caracol, acompanhada de uma senhora mais idosa. ‘Um lugar difícil de alguém escapar na circunstância do acidente’, reflete hoje.
A ceia foi rápida, Elane passou no banheiro, no piso inferior, abaixo da linha d´água, mas a área estava imprestável, tudo inundado. Havia forte infiltração de água pelo fundo do barco.
As duas irmãs subiram para arranjar um bom lugar na cobertura do barco para apreciar a queima dos fogos, coisa de mais meia hora de viagem. Mas a imagem dos banheiros inundados não saiu da memória dela. Ficaram encostadas na amurada, do lado esquerdo do barco, onde havia, sobre uma tábua forrada com uma toalha, uma fila de copos de vidro para o serviço dos garçons. O barco jogava muito, além do que seria razoável, e isso assustou Elane. Um dos garçons tentou tranquilizá-la. ‘No Natal tava muito pior, dona’.
Ela não se acalmou, antes cresceu sua preocupação. Encostada na tábua para evitar a queda dos copos, mal sabia que, na primeira grande adernada do barco, como se atingido por uma imensa onda, aqueles copos estilhaçados seriam responsáveis por cortá-la em várias partes do corpo, segundos antes de voar rumo às águas escuras, alguns minutos depois.
Nem tinham chegado ao Leme, estavam quase em frente ao Morro do Urubu, quando o cenário piorou muito. Ali já é mar aberto, e o barco começou a jogar violentamente. E adernava cada vez mais. Num desses balanços, Elane saiu voando bem acima dos passageiros que se agarravam na amurada do lado oposto, onde estavam as duas senhoras com quem havia conversado logo ao chegar.
Mais duas balançadas violentas e o barco de fundo chato, adaptado com duas pesadas caixas d´água no teto e com um lastro inadequado no porão para compensar o peso extra, rolou sobre seu eixo transversal, despejando em frente à Praia Vermelha os que ainda resistiam agarrados à sua estrutura e afogando sem chance os que se encontravam nas plataformas inferiores.
Fila de corpos
Elane começou a afundar. Parecia que não ia terminar nunca o seu mergulho. Acostumada às piscinas, buscava o fundo. Só que o fundo ali está a 20 metros. Enquanto afundava, ainda sem a dimensão da tragédia, ficou com medo de que algum peixe grande pegasse seu pé. Hoje ri dessa idéia desimportante. Voltou à superfície no exato momento em que o barco rolava para não mais reequilibrar-se. Eram 23h50m, registrou o inquérito.
Um pedaço da estrutura, ou um objeto que ela nunca soube o que era, atingiu sua cabeça. E ela voltou a afundar. Pensou que tudo tinha acabado ali. Achou que não teria outra chance. Mas não. Alguns segundos mais, que pareceram horas, e ela deu com a cabeça fora d´água novamente.
Elane nadava sem parar. Disse que conseguia ver muito pouca coisa, ainda chovia, percebeu que havia corpos boiando e que muita gente gritava, algumas pelos pais, outras pelos irmãos, pelas mães. Gritos desesperados em meio ao foguetório iniciado pontualmente à meia-noite. Um desses gritos estava muito próximo. Era Samanta, uma adolescente de 12 anos que nadava atabalhoadamente, gritando pelos pais e chorando. Elane diz ter agarrado a garota e aí então começado a raciocinar.
‘Meu pai sempre me dizia para nunca ficar perto de um barco que está afundando, porque ele leva a gente pro fundo. Nade pra longe, recomendava. E foi o que eu fiz. Peguei Samanta pelo braço, gritei com ela pra não parar de nadar, e segui em direção contrária ao ponto onde se concentravam alguns destroços, sofás, cadeiras e outros objetos’.
Elane pegou duas cadeiras que boiavam e, apoiando-se nelas, afastou-se dali, nadando, sem saber, em direção ao continente. Foi quando começou o espetáculo dos fogos, do outro lado do Morro do Leme. E ela avistou, bem em frente, um iate imenso, de onde vinha música alegre, e ela até podia ver as pessoas cantando e dançando. Mas ninguém as via. Gritou muito. Em vão. ‘A gente fica muito pequena numa hora dessas. A dimensão das coisas é muito grande. Até uma cadeira parece imensa quando a gente está apenas com a cabeça para fora d´água no meio de ondas enormes’.
Elane não assina embaixo das muitas versões de que os barcos de luxo que estavam por ali se recusaram a ajudar os náufragos. Não é verdade, garante. O fato é que ninguém via o que estava acontecendo, ou por estar muito escuro ou porque o foco das atenções estava nos fogos. Quando viram, trataram de acudir. O primeiro a perceber a tragédia foi o pescador Jorge de Souza Viana, que vinha de Jurujuba, em Niterói, levando sua família na traineira Evelym & Maurício para assistir ao grande espetáculo.
De longe, Elane viu a traineira recolhendo pessoas. E chegou a ver uma última luz do Bateau Mouche IV desaparecendo na água. Nadou de volta, furiosamente, quase sem fôlego, levando Samanta pelas mãos. Foi recolhida na traineira, que já estava cheia, inclusive com alguns corpos. Uma fila de corpos vestidos de branco. O garçom que tentara tranquilizá-la no primeiro temor estava semimorto num canto. Catatônico como ela.
Porta arrombada
Hoje ela percebe que havia quatro tipos de pessoas no barco do pescador: os mortos, os catatônicos – como ela –, os histéricos e os sobreviventes de sangue-frio, que ajudaram a salvar muita gente. ‘Se eu não tivesse entrado em catatonia, poderia ter salvado muita gente. Minha irmã fez isso na proa do barco. Como eu estava deitada na popa, só fui vê-la quando chegamos de volta ao cais, quase três da manhã’.
Como os mortos e os catatônicos não incomodavam ninguém, o pescador, conta Elane, foi implacável com os histéricos, maioria mulheres e crianças, pois eles atrapalhavam o resgate. Agiu como se fosse um ‘Analista de Bagé’, tratando não a joelhaço, como fazia o personagem de Veríssimo, mas a tapa, aqueles que não conseguiam conter o desespero. A psicologia rude do pescador permitiu-lhe salvar mais de 50 pessoas, inclusive o engenheiro Eduardo Shanza, que, sem forças para subir no barco e com insuportáveis 120 quilos para serem tracionados por seus salvadores, foi amarrado na borda e rebocado até o cais. Na chegada, Elane descobriu que Eduardo era pai de Samanta, que ela levou em segurança para a traineira. A avó da adolescente, executiva da Johnson&Johnson, morreu no acidente.
Recolhidos todos os náufragos visíveis, a traineira tocou a toda velocidade para o cais do Sol & Mar. Na proa, Heloísa pensava: ‘Como é que eu vou contar para os meus sobrinhos que eu insisti com a mãe deles pra vir neste passeio?’. Na popa, ainda sem acreditar que estava salva, e que aquela viagem numa verdadeira casca de noz, em meio a imensas ondas, pudesse terminar bem, Elane tivera pensamento parecido: ‘Como é que eu vou contar pra minha sobrinha que eu trouxe a mãe dela para a morte?’
Foi nessa viagem de volta, e não na queda violenta do barco, que sua vida passou em fotogramas. Não acreditava em chance de voltar viva. E disse pra si mesma: se este barco afundar, eu não tento mais me salvar. Eu não luto mais pela vida.
As irmãs se encontraram no cais. Pura alegria em meio à tristeza geral. Todos de branco, mas em frangalhos e morrendo de frio. Nos salões do Sol & Mar rolava a animada festa de fim de ano. Caminharam pra lá, mas as portas foram fechadas na cara deles. Um segurança disse rispidamente: ‘Não pode atrapalhar o réveillon!’ Mas os garçons perceberam o que estava acontecendo, arrancaram as toalhas das mesas e correram para envolver os náufragos, que invadiram os salões e acabaram com a festa.
Diante da balbúrdia, quem estava na festa percebeu enfim o que tinha acontecido. E saiu ao encontro no cais. Uma das primeiras pessoas a abraçar Elane foi sua ginecologista, Glauce Albuquerque, que largou a comemoração para ajudar de alguma forma. E ficou intrigada ao ver as duas irmãs em frangalhos. Pensou: gente, como é que essas moças que se vestem sempre tão elegantemente estão desse jeito em pleno réveillon? Elane ri. Único riso até este momento da narrativa.
Chega uma equipe da TV Manchete. Elane diz ao repórter que quer falar, que é jornalista e que viu tudo acontecer. O repórter desdenha. ‘Você não me interessa’. Chegam logo depois repórteres e fotógrafos dos jornais O Dia e O Globo. Elas caminham em busca de um telefone. Não havia a facilidade dos celulares. Havia só um telefone público, e uma imensa fila diante dele. Conseguiram avisar os pais e foram ao estacionamento pegar o Uno. ‘Cadê o tíquete?’, cobrou o guardador. Elane tinha apenas restos do que fora uma roupa linda sobre o corpo e o colar de havaiana que teimou em sobreviver a tudo. Estava descalça, como podiam imaginar que ainda tivesse guardado um maldito tíquete? Ela queria a chave do Uno pra ir embora dali o mais rápido possível. ‘Sem o tíquete eu não posso entregar a chave, minha senhora’, insistiu o guardador. Foi quando ela ouviu um estrondo. Um dos sobreviventes, que também queria suas chaves, arrebentou o armário a socos. Com as chaves do carro, só faltavam agora as chaves de casa, perdidas nas bolsas naufragadas.
Decidiram que iriam para a casa da Heloísa, porque o apartamento era mais moderno e a porta mais frágil, mais fácil de arrombar. O apartamento antigo de Elane, onde ela já não vive mais, ficava na Conselheiro Lafaiete, em Copacabana, na divisa com Ipanema, e sua porta era uma muralha da década de 1940.
Arrombaram a casa da Heloísa, telefonaram para os amigos. Elane se esqueceu de alguns, não havia como se lembrar de todos. Travaram a porta com uma cadeira, tiraram o telefone do gancho e foram dormir. Amanhecia. Estavam exaustas.
Mau presságio
O jornal O Globo já estava nas ruas quando o dia clareou. O Jornal do Brasil não iria circular no dia 1º de janeiro, decisão tomada no ano anterior. Elane poderia dormir tranquila. Mas que nada! A editora de Economia, Miriam Leitão, procurava sua repórter Elane desesperadamente. No telefone dela ninguém atendia: no da irmã, sinal permanente de ocupado.
Tim Lopes, colega de redação que viria a ser assassinado por traficantes do Morro do Cruzeiro há seis anos, disse que sabia onde estava Elane e que iria encontrá-la. E sabia mesmo, pois sua mulher morava em frente à casa de Heloísa. Pegou um carro e foi lá pedir a Elane que escrevesse um depoimento na primeira pessoa. Elane não tinha a menor condição para isso. Tim ouviu seu relato e escreveu a matéria.
Desde então, Elane evitou o assunto. Há dois anos, um juiz federal, como parte dos processos que ainda correm, pediu uma perícia para verificar se ela tinha sofrido algum dano psicológico. ‘Procurar dano psicológico em mim a esta altura? Eu perdi o sono durante muitos anos e ganhei pavor de barco’. Tanto pavor que, alguns anos à frente, ao embarcar em Mangaratiba na lancha que leva à Ilha Grande, Elane foi procurar um colete salva-vidas. Risada geral no barco. Mas ela insistiu. E foi a única passageira a cruzar o canal da Ilha Grande e desembarcar na Praia do Abraão devidamente paramentada com o colete. O exemplo do norueguês do Bateau está na memória dela, mas ninguém sabe onde anda o norueguês. Nem mesmo se era norueguês.
Elane chegou a ser procurada poucos dias após o acidente pelo genro de uma das senhoras que ela conheceu no barco. Ele queria a descrição dela, queria confirmar se era ela a pessoa com quem Elane havia conversado. Era a sogra dele. O pescoço dela foi partido ao ser jogada contra a amurada do barco no mesmo balanço que lançou Elane na água.
O rapaz contou que a sogra, pouco antes de embarcar, dera à filha uma pulseirinha que costumava usar sempre. A filha, com o adereço no pulso, foi passar o Ano Novo na Região dos Lagos. Na passagem do ano, no meio de uma festa, a pulseirinha deu um estalo e arrebentou. Ela pegou a pulseira arrebentada e, naquele momento, teve um mau presságio. Passou a noite em claro, até vir a saber, de manhã, que a mãe havia morrido no Bateau Mouche.
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Jornalista