‘O jornalismo, especialmente no Brasil, é um fator bom ou mau para a arte literária?’, indagava o escritor João do Rio, em 1904, numa enquete com cinco perguntas publicada em A Gazeta de Notícias. Dos 100 intelectuais questionados à época, somente 26 se manifestaram. O resultado da pesquisa foi posteriormente reunido no livro O momento literário, considerado o painel mais completo da vida literária no início do século 20. O tema foi retomado em 2001 pela jornalista Cristiane Costa, num projeto de pesquisa premiado com a Bolsa Vitae de Literatura. O trabalho acabou provocando uma discussão teórica, que resultou na tese de doutorado ‘Jornalistas escritores no Brasil’, defendida em junho na Escola de Comunicação da UFRJ, sob a orientação do professor Muniz Sodré.
A jornalista refez a questão inicial levantada por João do Rio, desdobrando-a. A pergunta ‘Trabalhar em jornal é bom ou mau para quem deseja ser escritor?’ foi encaminhada a 30 jornalistas cujas atuações têm sido pautadas pelo exercício da literatura. As respostas fornecidas por Arnaldo Bloch, Bernardo Carvalho, Bernardo Ajzenberg, Luiz Ruffato, Michel Laub, Marçal Aquino, Fernando Molica, José Castello, dentre outros, contribuíram para atualizar a discussão, 100 anos depois.
Soma-se àquela questão uma outra fundamental para a compreensão do papel dos jornalistas escritores no Brasil. ‘Para a literatura, o que significou essa aproximação entre o escritor e o jornalista?’
Para compreender essa relação, a jornalista traçou uma história comparada da imprensa e da literatura no Brasil, dividindo-a em cinco períodos, cada fase revelando desafios distintos. O ciclo se inicia em 1808, com a chegada dos primeiros jornais e livros ao Rio de Janeiro, passa pela discussão modernista de 1920 a 1950, em que se revelam nomes como Graciliano Ramos, Monteiro Lobato e Carlos Drummond de Andrade, adentra os anos 60, com novos expoentes como Carlos Heitor Cony, Ferreira Gullar e Paulo Francis, e desemboca na fase que vai de 1980 a 2004, com o surgimento de uma nova safra de jornalistas escritores com orientações e preocupações distintas dos seus predecessores, com ênfase para Bernardo Carvalho, Marçal Aquino e Luiz Ruffato.
A pesquisa revela pontos de conflito e convergências na dupla lide a que estão submetidos os jornalistas escritores ao longo dos últimos 100 anos. Embora seja impossível chegar a um denominador comum das experiências tratadas na pesquisa, uma vez que ‘cada momento literário ou jornalístico tem seus próprios dilemas’, o trabalho amplia a compreensão da práxis jornalística e do processo que culminou com a sua profissionalização.
Cristiane Costa é editora do caderno Idéias, do Jornal do Brasil, e do Portal Literal. Escreveu Eu compro essa mulher (2000), ensaio em que faz um paralelo entre as telenovelas mexicanas e as do padrão Globo, Amor sem beijo (2002) e Coisas que eu diria a minha filha (2003), livros sobre comportamento adolescente. Por e-mail, ela concedeu a entrevista que se segue, na qual fala da sua tese pioneira.
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Como surgiu a idéia de se dedicar a esse tema?
Cristiane Costa – Durante aquelas noites de pescoção em que está tão tarde que ninguém tem mais pressa de ir para casa. É a hora em que o pessoal mais velho começa a contar histórias dos áureos tempos do Correio da Manhã, da revista Manchete, da Última Hora, do Correio Carioca, do Jornal do Brasil. Ficava fascinada, imaginando como seria uma redação repleta de intelectuais e escritores, do porte do Antonio Callado, do Ferreira Gullar, do Graciliano Ramos. As histórias que os velhos copidesques me contavam eram fantásticas. Por isso, resolvi investigar. O projeto de pesquisa levou quatro meses para ser feito. Mas valeu a pena. Em 2001, ganhei a Bolsa Vitae de Literatura com ele. A minha tese de doutorado ampliou as questões teóricas levantadas pela pesquisa. O trabalho deve virar livro em breve.
Trabalhar na imprensa atrapalha ou ajuda o escritor?
C. C. – Por mais que tenha entrevistado jornalistas escritores contemporâneos, vasculhado vidas e obras dos que não estão mais vivos, é impossível formular uma resposta única para esta pergunta. Cada momento literário ou jornalístico tem seus próprios dilemas. Cada autor, uma forma de lidar com o problema. No entanto, é possível mapear os pontos de conflito e convergência entre os dois campos ao longo dos últimos 100 anos. E, numa apropriação do modelo sugerido pelo crítico uruguaio Ángel Rama em seu clássico ensaio ‘Dez problemas para o romancista latino-americano’, propor uma lista de 10 problemas para o escritor jornalista brasileiro. Com isso, explicitar o que há por trás do jogo de antagonismos entre imprensa e literatura. E, ainda, a histórica e indissolúvel interação entre real e ficcional.
E quais seriam alguns desses problemas?
C. C. – O problema número 1 é a dicotomia arte x mercado. Dividido entre essas duas grandes forças, o escritor jornalista sente-se como se fosse obrigado a escolher entre a prostituição e a miséria. O problema número 2 é a dicotomia artista x trabalhador. Mais do que a fábula da cigarra e da formiga, um velho conto de Hans Christian Andersen resume o sentimento de frustração que vez por outra assalta o escritor jornalista: ‘A pequena vendedora de fósforos’. Nenhuma fada madrinha, nenhum grilo falante vem ajudar a pobre órfã que, numa noite de inverno, tenta vender um a um os fósforos que tem na caixinha para comprar lenha. Sem fregueses nas ruas, ela risca um fósforo após o outro. E, no breve intervalo de sua chama, sonha. Ao fim, morre congelada, sem jamais ter tido a chance de acender uma grande fogueira. A literatura é o equivalente a essa grande fogueira, para o escritor jornalista.
Um outro problema seria a linguagem condicionada x liberdade criativa. Uma criança é capaz de falar todas as línguas quando nasce, mas vai desaprendendo os fonemas que não usa, até ser totalmente incapaz de pronunciá-los na vida adulta. Em contraste com a standartização da linguagem jornalística, fruto da economia de meios para comunicar uma mensagem ao maior número de interlocutores possível, a linguagem literária se mostra o espaço da experimentação por excelência. Mas, não se deve esquecer que, ao longo dos últimos 100 anos, a imprensa foi, em muitos casos, o laboratório da poesia e do romance nacional. Ensinou o escritor a afiar suas armas, transcrever falas e dialetos, manipular ritmos, cortar palavras, dominar a língua, aproximar-se do coloquial, comunicar-se com o leitor.
Dentro do modo de produção atual da notícia, como o jornalismo poderia se aproximar mais da fronteira da literatura?
C. C. – Depende do que você chama de jornalismo e o que chama de literatura. Essas palavras nem sempre tiveram o mesmo significado que têm hoje. Da poesia parajornalística de Gregório de Mattos ao folhetim-reportagem de Lima Barreto, do jornalismo-ficção de Nelson Rodrigues à crônica, passando pelo new journalism e ao recente movimento de narrative writing nos Estados Unidos, pelos inúmeros casos de jornalismo ficcional e pelo falso realismo de romances que mais parecem making of de reportagens, como Santa Evita, não faltam exemplos de crossover texts capazes de borrar as linhas de demarcação entre os gêneros literários. O que se percebe hoje é que o processo de separação entre o discurso jornalístico (news) e o novelístico (novel) foi fundamental para a constituição do romance moderno. A indiferenciação original teria que ser desfeita para que as narrativas factuais pudessem se distinguir das ficcionais e se pudessem constituir os dois tipos de discurso originários daquela matriz: o jornalismo e o ensaio acadêmico, de um lado, e o romance, do outro.
Hoje, os diferentes graus de separação entre jornalismo e literatura correspondem à divisão em dois modos distintos de produzir, publicar, difundir, ensinar, ler e criticar os textos, baseados em dois mitos: o da objetividade da imprensa e o da autonomia da ficção como uma categoria estética. Essa divisão instaura convenções narrativas diferentes para a literatura e para o jornalismo, estabelecendo um contrato de leitura entre emissor e receptor que está na base da polarização entre os dois campos.
Sob a ótica inversa, de que forma a literatura tem interferido na atuação dos escritores enquanto jornalistas?
C. C. – Temos ótimos exemplos durante o Modernismo. Com a crescente industrialização, a partir dos anos 20 o papel do escritor nos jornais já não era o de uma estrela, como nos tempos de Olavo Bilac e Coelho Neto. Ao homem de letras seria exigido que, em vez de que produzir contos ou poemas para ilustrar o jornal, escrevesse reportagens, entrevistas, corrigisse o texto dos repórteres, editasse páginas, chefiasse redações. E foi como jornalistas ‘braçais’ que escritores como Graciliano Ramos, Carlos Drummond de Andrade e Oswald de Andrade levaram para a imprensa os preceitos de uma literatura moderna, muito antes que lides, sublides e pirâmides invertidas fossem copiados do jornalismo americano. Há claramente uma identidade de projeto entre a ficção e o jornalismo produzidos por autores modernistas e realistas, embora a ruptura literária com o passado tenha se dado entre os anos 20 e 30 e a jornalística sido sistematizada apenas nos anos 50. O inimigo era comum: a literatice, o beletrismo, o penduricalho, o adjetivo. Portanto, não se deve estranhar que escritores identificados com este projeto tenham tomado para si o trabalho de chefe de redação, como Drummond, ou de copidesque, como Graciliano, ou ainda de repórter, redator, diretor de suplementos literários e até dono de jornais e revistas, como Oswald, reescrevendo o jornalismo, assim como a ficção e a poesia que se fazia até então. Um impacto semelhante ao provocado pela Semana de 22, separando a literatura parnasiana da moderna, seria repetido na imprensa nos anos 50, com a introdução do lide. Foi uma sentença de morte ao nariz de cera, aquelas intermináveis digressões que costumavam preceder a informação propriamente dita. A partir da importação do novo modelo, promovida por jornalistas brasileiros que passaram temporadas nos EUA, como Danton Jobim, Samuel Wainer e Alberto Dines, técnica jornalística e a arte literária começariam a se afastar definitivamente.
O recurso ao jornalismo, no caso brasileiro, tem sido associado à necessidade de sobrevivência do escritor. Como esse fenômeno está abordado em seu trabalho?
C. C. – Será que é apenas um salário no fim do mês a contribuição que a imprensa vem dando à ficção e à poesia brasileiras desde meados do século 19, quando os primeiros homens e mulheres de letras deste país começaram a se infiltrar nas redações? É possível que, trabalhando com a mesma matéria-prima, a palavra, em algum momento o muro que separa um discurso do outro não tenha se tornado apenas uma linha tênue? Ou que alguns aspectos da narrativa jornalística não tenham acabado por se incorporar ou mesmo renovar o texto literário (e vice-versa)? É verdade que, entre os problemas mais comuns para o escritor no Brasil, o principal é sem dúvida o econômico. Não faltam alusões a esta questão em vários momentos literários. Num artigo de pouco mais de cinco páginas, ‘O fator econômico no romance brasileiro’, publicado em 1945, Graciliano Ramos já chamava a atenção para a relação entre a precariedade da profissão de escritor no Brasil e a dificuldade de nossos autores em abordar questões relacionadas a dinheiro em sua obra. Para ele, o escritor brasileiro não toca na questão econômica porque tem medo de sujar as mãos com o dinheiro, ferindo sua imagem de artista desinteressado.
A questão econômica também se estende ao segundo maior problema apontado nas duas pesquisas, a minha e a de João do Rio. Quando tempo se torna sinônimo de dinheiro, o maior benefício do jornalismo para um escritor corresponde ao seu pior inimigo. A profissionalização oferecida pela imprensa tende a afastar o escritor de seu caminho, pois o tempo se torna mercadoria escassa. Mas a culpa seria do jornal? A sucessão de queixas e ressentimentos quanto à impossibilidade de viver de literatura no Brasil, em qualquer momento literário, aponta para uma razão estrutural. A situação dos escritores hoje não é muito diferente da identificada por Olavo Bilac, quase um século atrás. Basicamente, faltam leitores.
De que forma a sua pesquisa atualiza a questão proposta por João do Rio, em 1904?
C. C. – Empreendi uma nova enquete, entre 2001 e 2003. Meu objetivo principal era saber como os escritores contemporâneos responderiam à pergunta dele. O trabalho na imprensa ainda é um problema ou, a julgar pela grande quantidade de jornalistas que continuam tentando a literatura um século depois, uma alavanca na carreira de um escritor? A pergunta capital de O momento literário foi desdobrada em 13. Exemplo: pretendia ser escritor quando ingressou no jornalismo? A linguagem dos jornais oferece um aperfeiçoamento formal ou bloqueia o texto literário? A profissionalização por intermédio da imprensa permite a sobrevivência financeira do escritor ou o afasta de seu caminho? Visibilidade, ingresso no mercado editorial, maior penetração nos círculos intelectuais compensam fatores negativos, como a falta de tempo, por exemplo, ou o pouco espaço para a sensibilidade artística numa redação?
Os próprios escritores foram incentivados a fazer suas listas de prós e contras. Com isso, a concisa enquete de João do Rio foi transformada num amplo debate sobre jornalismo e literatura, em que é possível descobrir como conciliam as duas atividades (e às vezes outras, que vão de professor universitário a músico de rock) alguns dos principais nomes que começaram a se destacar nos anos 90. Embora não seja uma pesquisa quantitativa e parta de uma amostragem pequena, apesar de significativa, do universo dos jornalistas escritores brasileiros, é possível afirmar que, ao contrário de 1900, o lado positivo de trabalhar na imprensa foi mais lembrado do que o negativo.
Como o jornalismo tem atuado para modificar o trabalho dos escritores por você analisados?
C. C. – Varia de caso a caso. Em geral, o jornalismo permite um contato maior com a realidade, uma experiência de vida ampliada, porque o repórter se relaciona tanto com o mais miserável quanto com o mais poderoso, escapando dos limites de seu meio social. Isso já está presente em Machado de Assis. E permanece até hoje, na obra de um Marçal Aquino, por exemplo.
O escritor mineiro Roberto Drummond comentava que o jornalismo é o túmulo da literatura. Esse é um ponto de vista compartilhado pelo grupo de jornalistas escritores que você entrevistou?
C. C. – Muitos. Sem retorno financeiro, pelo menos a curto e médio prazo, a literatura só pode ser encarada como uma segunda atividade, a ser levada a cabo nas horas insones, com o cérebro e os dedos já esgotados por horas de trabalho. Nem mesmo nomes consagrados, capazes de conquistar os cargos mais altos do jornalismo, como Otto Lara Resende, escapariam do mesmo sentimento de frustração que eventualmente acomete todos os escritores que buscaram na imprensa uma forma de sobrevivência. Esbarrei com vários homens e mulheres fracionados, divididos entre o feijão e o sonho. No ‘vasto cemitério literário’, onde Otto Lara Resende calcula ter enterrado o escritor que poderia ter sido, há desde obras apenas esboçadas a corpos de desavisados que escorregaram no precipício, como Carlinhos Oliveira e Caio Fernando Abreu. Hoje, a literatura ainda continua sendo um part-time job para a imensa maioria dos escritores brasileiros, um ‘vício’ a ser sustentado pelo jornalismo.
Quais foram as conclusões do seu trabalho?
C. C. – Hoje, a pergunta de João do Rio – o jornalismo, especialmente no Brasil, é um fator bom ou mau para a arte literária? – seria respondida com um esmagador ‘útil’. Dez entrevistados disseram que a atividade na imprensa é positiva para um escritor. Dez afirmaram ser negativa. Um, mais ou menos. Um disse não ter importância. E um não respondeu esta questão. A possibilidade de viver de escrever foi considerada o principal ponto a favor da imprensa. A falta de tempo e a esterilização da linguagem, os fatores mais prejudiciais.
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Estudante de Jornalismo da Universidade Tiradentes (SE) e editor do Balaio de Notícias (www.sergipe.com/balaiodenoticias)