Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

José Queirós

‘Uma notícia pode ser criticada por várias razões. Por ser inexacta, por ser incompleta, por misturar factos com opiniões, por não ser actual ou relevante ou imparcial, por estar mal escrita, por não respeitar as normas éticas do jornalismo. A lista poderia continuar, e ao provedor de um diário como este, onde se procura estimular a participação crítica dos leitores, chegam frequentemente queixas e observações úteis sobre falhas no trabalho noticioso. De algumas me tenho ocupado neste espaço, ciente de que a análise e correcção de erros é um dos mais importantes critérios de avaliação da saúde profissional de uma redacção.

Acontece também, e é menos raro do que poderia supor-se, que uma notícia seja criticada, não pelo modo como relata os factos que lhe dão origem, mas pelos próprios factos que noticia. É o caso clássico da confusão entre mensagem e mensageiro: se os factos desagradam, condena-se a sua divulgação. Basta consultar as áreas de comentários da edição electrónica do PÚBLICO para perceber que essa é uma atitude comum, o que se compreende face à apropriação pública desse espaço virtual como um foro onde se chocam, muitas vezes de forma sectária, preferências políticas, fervores clubísticos, certezas que dispensam argumentos.

Apesar de este ser um espaço dedicado à análise da qualidade e do rigor da informação, e não ao debate de ideias sobre os temas que atravessam o espaço público, também a mim me chegam com alguma frequência críticas a notícias que são, afinal, críticas aos factos noticiados. Tenho vindo a constatar que, na maioria dos casos, as notícias que são alvo desse particular tipo de escrutínio são as que relatam factos que de algum modo remetem para o questionamento de valores morais e religiosos enraizados em largos sectores da sociedade, com destaque para o que hoje se designa por ‘temas fracturantes’.

Achei oportuno referir hoje uma dessas queixas precisamente porque ela se integra num padrão de críticas que parece revelar alguma incompreensão sobre a matriz editorial do PÚBLICO, enquanto jornal que se pretende independente e atento aos sinais de transformação na sociedade, sem tabus e sem limites que não sejam os que decorrem da deontologia profissional e das regras de civilidade.

Em causa está a ‘indignação’ sentida por um leitor face à notícia intitulada ‘Milhares de preservativos serão distribuídos durante a visita do Papa Bento XVI’, assinada por Ana Cristina Pereira na edição do passado dia 25 de Abril. Resumo o que nela se relatava: um grupo de jovens lançou numa rede social a iniciativa ‘Preservativos ‘ao’ Papa’ em Portugal’, que rapidamente alastrou pela Internet, captando numerosos voluntários para uma acção apresentada como de ‘luta contra a sida’. A acção deverá ocorrer nos próximos dias em Lisboa e no Porto, durante a visita de Bento XVI ao nosso país, e consistirá na distribuição conjunta, nos locais de acesso às cerimónias, de preservativos e folhetos informativos sobre a prevenção da sida.

A enquadrar a descrição da iniciativa, a jornalista contava ainda que Diogo Figueira, o primeiro impulsionador do movimento, que no último Verão conheceu de perto os graves efeitos da epidemia num país africano, decidira reagir deste modo à inquietação que sentira face às polémicas declarações do pontífice romano acerca do combate à sida, durante a sua visita a África em Março de 2009. Recorde-se que, nessa altura, Joseph Ratzinger afirmara que o uso do preservativo não era uma solução para prevenir a doença, sugerindo que poderia até contribuir para a espalhar ainda mais. Tratava-se de mais uma reafirmação da doutrina tradicional do Vaticano, que defende a prevenção baseada na fidelidade conjugal e na abstinência sexual fora do casamento, mas o facto de ter sido feita numa deslocação ao continente mais devastado pela doença e contrariar as recomendações das agências sanitárias internacionais suscitou na altura fortes reacções negativas, a começar pelas de vários governos europeus.

A notícia referia ainda que ao blogue dos organizadores estavam a chegar mensagens ameaçadoras e insultuosas, a que estes respondiam reafirmando tratar-se de uma ‘acção de sensibilização pela positiva’. O PÚBLICO voltaria depois ao tema, noticiando na passada segunda-feira que, contrariamente a outros ‘protestos’ programados para o decurso da visita de Bento XVI, a iniciativa ‘Preservativos ao Papa’ continuava a ver crescer os apoios, embora tivesse desistido de uma intervenção em Fátima.

Para o leitor Luís Bonifácio, a notícia de 25/4 ‘mais não era que uma peça panegírica publicitária de promoção à referida acção de pendor claramente anti-católico’, que descrevia como ‘uma distribuição de preservativos nos locais onde Sua Santidade Papa Bento XVI irá dar missa’. Considerava-a ainda ‘manifestamente tendenciosa’, por ‘apresentar os católicos como pessoas que fazem ameaças à integridade física desses indivíduos’ (os organizadores), e apresentar estes como ‘pessoas responsáveis’ e ‘preocupadas com os doentes com sida em África’. Para concluir que ‘a peça escrita por Ana Cristina Pereira é apenas um acto de propaganda travestido de ‘informação’’.

Em resposta, a jornalista corrige as afirmações de natureza factual que resultariam de ‘equívocos’. Entre outros pontos, esclarece que (como escrevera) a iniciativa noticiada não visa distribuir preservativos ‘nos lugares das cerimónias religiosas, mas nos locais de acesso’, e que não descreveu como católicos os autores de insultos endereçados ao blogue dos organizadores (‘não seria sério — eles não assinam como tal’). De facto, as únicas pessoas referidas como católicas na peça são (devidamente identificadas) duas das promotoras da iniciativa, e apoiantes que se lhes juntaram, de alguns dos quais escreveu que ‘houve quem tivesse prometido que ia à missa, mas, antes ou depois, participaria na distribuição de preservativos’.

Como o leitor se referira à experiência vivida por um dos organizadores na África Austral para citar números segundo os quais a sida está mais espalhada em países onde não predomina o catolicismo, a jornalista, sem deixar de sublinhar os indicadores oficiais que atestam a gravidade do problema em toda a região, explica não ter achado relevante ‘comparar as taxas de prevalência de VIH com as taxas de fé católica nesses países’, por não se tratar, no caso, de um artigo sobre a sida em África, mas de uma notícia sobre um movimento que ‘capta a simpatia de milhares de pessoas e o apoio de mais de duas dezenas de associações’. Concordo, mas anoto que seria interessante apurar, num trabalho dedicado ao tema, se há alguma conclusão útil a tirar de tal comparação.

Voltando à notícia e ao respeito pelos factos: ‘O PÚBLICO não sonega nenhuma informação e publica tudo o que tiver interesse jornalístico — isto é, que for baseado num facto verdadeiro, inédito, surpreendente ou actual, que seja de interesse público e não colida com os preceitos éticos e deontológicos’. É o que se lê no Livro de Estilo do jornal e aqui claramente se aplica. E, se é verdade que nem ‘tudo’ se publica por motivos de espaço, a selecção deve orientar-se por critérios de relevância e oportunidade, que me parecem difíceis de contestar neste caso.

A fazer um reparo a esta notícia, eu diria que nela se dá uma importância desproporcionada (logo na abertura da peça, e dedicando ao tema vários parágrafos e duas citações) às mensagens de teor eventualmente ameaçador ou ofensivo endereçadas aos organizadores. Começa a ser difícil, hoje, lançar uma iniciativa aberta e identificada na Internet, especialmente quando relacionada com temas mais polémicos ou sensíveis, sem dar origem a uma corrente de ‘hate mail’ mais ou menos agressiva e geralmente anónima. Será lamentável, mas não merece que se lhe dê grande importância. Mas aqui estou apenas a manifestar uma preferência, entre outras possíveis no âmbito da liberdade de escolha editorial, que não afecta a correcção da notícia. Pode argumentar-se que a opção da autora dá até um certo colorido ao texto, tal como se pode considerar que lhe retira algum distanciamento.

Voltando ao que mais importa: factos são factos. Aceito que os factos noticiados possam ferir a sensibilidade de leitores como o que me enviou esta queixa. Outros factos da vida e da sociedade ferirão outras sensibilidades. Não é por isso que devem deixar de ser noticiados, nem é por isso que o seu relato pode ser considerado ‘tendencioso’. A notícia da ‘operação preservativos’ é relevante, oportuna e contribui para o debate público de um tema que não deve ser escondido.’