Em busca de pistas que me levem a reconstituir a trajetória do crítico e jornalista austríaco-brasileiro Otto Maria Carpeaux (1900-1978), conhecido aqui emViena como dr. Otto Karpfen, cheguei à esquina da Wahringerstrasse com a Turkengasse, no centro histórico de Viena. É nesse endereço que está localizado o antigo Instituto de Química da Universidade de Viena, onde o jovem Otto Karpfen estudou entre os anos 1920 e 1925.
No segundo volume de sua autobiografia, o escritor búlgaro Elias Canetti (1905-1994) relembra os tempos em que estudou no mesmo local e descreve-o como “o velho instituto enfumaçado, situado no começo da Wahringerstrasse” (Uma luz em meu ouvido, Companhia das Letras, trad. Kurt Jahn). Não há dúvida, é este o prédio em que os dois estudaram, pensei, parado na calçada da Wahringer, numa fria tarde de inverno.
Canetti viveu muitos anos em Viena e foi nessa cidade que conheceu Veza, com quem viveria por toda a vida. Veza era uma mulher liberal, extremamente culta e que se recusava a seguir os padrões socialmente estabelecidos para as mulheres. Nos anos 1920, frequentava os círculos literários de Viena e as famosas conferências públicas de Karl Kraus, que por essa época era uma figura central na cidade e se tornaria um dos jornalistas mais importantes da Europa no século 20. Foi mais ou menos no mesmo período que Carpeaux conheceu sua futura mulher, Hélene. Casaram-se em março de 1930 e ela o acompanhou por toda a vida.
O abandono da língua materna
Carpeaux e Canetti estudaram Química no mesmo instituto e por pouco não foram colegas. Canetti era cinco anos mais jovem e se formou em 1929, quatro anos depois de Carpeaux. Creio que não vou errar por muito se disser que ambos se “conheciam” dos corredores do velho instituto, onde hoje funciona o curso de Medicina Genética da Universidade de Viena. Talvez até tenham conversado.
Não lembro de nenhum artigo de Carpeaux sobre Canetti, mas a trajetória de ambos tem muitas coincidências. Além da origem judaica, da juventude vivida em Viena e da mesma profissão de químico – que ambos jamais iriam exercer –, os dois deixaram a cidade em 1938, quando Hitler entrou triunfante na ex-capital do império austro-húngaro.
As coincidências, no entanto, param por aqui. Canetti refugiou-se na Inglaterra e, depois da guerra, passou a viver na Suíça. Carpeaux, que abandonara formalmente o judaísmo em 1933, teve um destino bem diferente. Fugiu para a Holanda e, um ano depois, chegou ao Brasil. Canetti tornou-se um dos principais escritores do século 20, premiado com o Nobel de Literatura em 1981. Carpeaux tomou um caminho sem volta: no Rio de Janeiro, deixou para trás não apenas seus pais (era filho único, conforme me garantiu Wolf-Erick Ecstein, do Setor de Registros do Israelitische Kultusgemeinde, de Viena), sua biblioteca e sua amada pátria, mas também sua língua materna, pois passou a escrever em português. Poucas coisas podem ser tão avassaladoras para o indivíduo quanto o abandono da língua materna. Há os conhecidos exemplos de Conrad e Nabokov com o inglês, mas eles fizeram uma opção. Já o caso de Carpeaux é diferente, pois ele não teve escolha. Aprendeu rapidamente a língua portuguesa e adotou-a como seu idioma por uma questão de sobrevivência.
Uma fuga desesperada
Carpeaux foi obrigado a abandonar também uma promissora carreira de ensaísta e jornalista, que se abria para ele em Viena nos anos 1930. Era redator da revista semanal Berichte zur kultur und Zeitgeschichte e, aos 31 anos, já publicava artigos sobre literatura no importante jornal Neue Freie Presse, ambos de Viena. No Brasil, tornou-se um crítico extraordinário, que produziu artigos incansavelmente durante 35 anos para diversas publicações. Mas escrevia em português e estava do outro lado do Atlântico. Aqui em Viena, percebo que seus rastros simplesmente desaparecem a partir de 1938, o que mostra que o idioma pode ser um confinamento e uma exclusão.
Nós, no Brasil, certamente ganhamos, como o comprova sua extensa obra brasileira. Mas não tenho certeza quanto a ele, principalmente quando penso no seu talento e na dimensão que seus artigos e ensaios ganhavam na década de 1930. E agora, que descubro outros mais aqui em Viena, fico a pensar que, se tivesse ele tido condições de permanecer na Europa sua obra teria uma dimensão mais profunda da que teve no Brasil, onde seus livros carregam as marcas inevitáveis da mediação cultural, do comentário, do trabalho de segunda ordem. Meu único conforto é pensar que se nós, no Brasil, ganhamos com sua inserção em nossa cultura literária, ele, ao cruzar o Atlântico em fuga desesperada, escapou da morte.
***
[Mauro Souza Venturaé crítico literário, professor da Unesp e autor de De Karpfen a Carpeaux (Ed. Topbooks). No momento, passa uma temporada em Viena, Áustria, onde faz pesquisa sobre os escritos europeus de Otto Maria Carpeaux]