Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Lavas e clavas do poeta

De repente senti os olhos molhados de novo ao ouvir um poema de Affonso Romano de Sant’Anna. Quando adolescia, era proibido chorar. Um dos sinais de que o homem substituía o menino que em mim habitava era a interrupção das lágrimas.

Há uma cena de minha infância que ainda hoje provoca emoção nos ouvintes. Eu era menino, seguia na procissão da sexta-feira da paixão com um castiçal de velas acesas nas mãos quando uma mamangava, espécie de abelha feroz, cravou seu ferrão na minha testa, bem perto do olho direito.

Morava na pequena Jacinto Machado, em Santa Catarina, era o ano de 1959, eu era coroinha, estava ao lado do padre Herval Fontanella, em cuja casa paroquial morava para que ele me preparasse para entrar no pré-seminário no ano seguinte, onde eu faria o curso de admissão ao ginásio, que tinha um ano de duração – meu Deus, quanto preparo! – e, transido de dor, comecei um berreiro.

O padre, que me ensinava sempre com muita doçura, cravou seus profundos olhos azuis em mim e disse com severidade: ‘Você não pode chorar; não aqui, não agora’.

Mas onde e quando? Segui cantando as rezas de praxe, o rosto molhado de lágrimas amargas, fazendo caretas horríveis que enterneceram até as mulheres do apostolado da oração e as filhas de Maria. Uma delas, virgem, casta, pura, branca, loura e linda, que nas aulas de catequese me advertia contra as entradas do Demônio em nossa alma – nunca esqueci, eram muitas, mas as mais perigosas eram cinco: olhos, ouvidos, mãos, nariz e boca – virou as palmas das mãos para mim, entrelaçadas no terço, e fez um gesto de quem pedia calma que a dor ia passar.

O mais difícil

A nossa pátria é a língua portuguesa, mas não é a única. A nossa pátria é também a infância, é dali que fomos exilados, e o torrão natal, como o de açúcar, é aquele pedaço que levamos dentro de nós a vida inteira. É ele o alforje com nossos tesouros imperecíveis e, como ensinam os evangelhos, onde está nosso tesouro, ali está nosso coração.

‘Meu conceito de jardim/ determina o que é praga/ ao redor de mim’, dissera Affonso num livro anterior. Tomei, então, um pincel e escrevi esses versos ao lado daqueles agora recitados por Tônia Carrero: ‘Em matéria de amor e de entrevista/ qualquer palavra mal dita é fatal’.

Já magoei amadas e leitores dizendo e escrevendo a palavra errada na hora errada, esquecido das verdades do ‘Domingo nos campos da Toscana’, muito mais pungentes na voz de Marina Colasanti, ‘Quando um caçador desce solerte a encosta com sua arma na mão’.

Sei que já foi chique homem chorar e o lenço na lapela é indício de que as lágrimas eram derramadas em companhia da mulher amada ou daquela que não se podia amar.

Mas foi ‘O pai’ que me fez chorar. Ao relatar ao poeta o meu choro, soube que nosso amigo comum, Roberto Drummond, já falecido, ao ler o mesmo poema, tinha se debulhado em lágrimas também. Os versos vêm repletos de comovente ternura. O pai leva o menino ao quintal e, apontando para o céu estrelado, explica-lhe alguns dos trinta apelidos que os irmãos lhe tinham dado, alguns dos quais aludiam a peixes e animais. ‘Entre couves e chuchus’ – notando a tristeza do filho, mostra-lhe estrelas e constelações – ‘tudo a brilhar em mim’.

O cedê é o número vinte da coleção ‘poesia falada’, da Luz da Cidade. Além do poeta, recitam seus versos, entre outros, Alessandra Colasanti, Elisa Lucinda, Neide Archanjo, Odete Lara e Edla van Steen. O ponto final é o mais difícil, num amor, numa crônica ou num romance, mas Affonso Romano de Sant’Anna dá uma dica em ‘Ponto Final’:

‘Eu, ponto de observação/ eu, ponto de interrogação/ eu, ponto./ Discurso sem conclusão’.

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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá (Rio de Janeiro), onde dirige o Curso de Comunicação Social