Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Ler e ver com o ouvido

Acho que há dois tipos de gente. Aqueles que dispersam e aqueles que ajuntam. Aliás, são três, os tipos de gente. Pois entre esses dois existem os que nem dispersam nem ajuntam, ficam na deles tocando a vida e suas coisas sem dissipar muito de um lado e sem acumular muito do outro.

Mas voltando aos dois tipos iniciais, creio que isto é reprodução de duas forças da natureza: a centrífuga e a centrípeta. Lembram-se do ginásio? A centrífuga é para for a do eixo de rotação, a centrípeta é para dentro. (Será que acertei?) Pois é assim. Tem gente que soma, tem gente que diminui. E com isto é que a natureza vai se auto-regulando. Imagine se todo mundo só desbaratasse. Conheço uma família onde um dos herdeiros conseguiu dissipar três boas heranças. E deixou seus descendentes na pior. E sem remorso. Enquanto isto seu irmão conservou tudo e foi acumulando tanta coisa, que quando morreu parecia estar numa dessas tumbas de faraós. E não tinha herdeiros.

Portanto deve ser coisa da natureza. E da cultura. Isto me veio à mente por duas razões. Estive lá no Recife outro dia participando da reunião da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), que reuniu quase dez mil professores para discutir dezenas de temas. Falei para um público surpreendentemente numeroso, sobre as perplexidades que nos causam a pretensa arte de nosso tempo. Os dezessete leitores que me seguem sabem a que me refiro. Mas não é isto que interessa aqui. E, sim, o fato de ter conhecido naquela ocasião Luiz Cardoso Ayres, filho do conhecido pintor pernambucano Lula Cardoso Ayres, que mantém uma fundação para cuidar da obra do pai. E além disto é um fantástico colecionador de filmes de cinema. Não são vídeos e DVDs, são os filmes em celulóide mesmo. Tem uns três mil, e só de Chaplin, quase oitenta. Há ali coisas que nem as cinematecas possuem. Todos os clássicos do gênero estão lá. E ele os exibe para um seleto público aos sábados. Tudo por sua conta e risco. Corresponde-se com colecionadores de todo o mundo trocando preciosidades entre si. E além disto uma imensa coleção de música de cinema.

E mencionando música de cinema, eis a segunda coisa que reforça o time dos que somam e aglutinam em oposição aos dilapidadores. Refiro-me a esse trabalho de monge beneditino e de Hércules, ao mesmo tempo, realizado por João Máximo ao lançar os dois volumes de A música do cinema (Ed. Rocco). É um levantamento de cem anos do cinema americano, inglês, francês, italiano e outros como o brasileiro. Já conhecia trabalhos de João Máximo na área do futebol e da música, convivi com ele em redações. Mas agora, como diria meu pai, ele me ‘deu um quinau’. Isso é obra para ser traduzida em várias línguas. E é compêndio para gente consultar e ao ler, se emocionar até chorar ao deparar-se com nomes que se incrustaram em nosso jovem imaginário cinematográfico onde desfilam beijos, rostos, pernas e aventuras. Gary Cooper, Ava Gardner, Tyrone Power, Joan Fontaine, Jean Simons, Loreta Young, Maureen O’Hara, Frederic March, Janet Leigh, Stwart Granger e etc. E bota etc. nisto. São milhares de nomes de filmes, de atores, diretores, produtores, enfim, uma enciclopédia, que só um somador e acumulador de conhecimento poderia produzir. Só que tudo isto vem também congeminado com a sonoridade que sai de nossa memória aos nomes de Victor Yound, Enio Moricone, Nino Rota, Miklos Ròzsa, David Raskin, Leonel e Alfred Newmann e outros ligados à música clássica como André Previn e Aron Copland.

A maioria das pessoas parece não prestar atenção à música de cinema. Claro, há os musicais que tornam isto mais óbvio. E há casos como a abertura de 2001 de Kubrick, transformando Assim falou Zaratrusta de Richard Strauss num hit popular. Por outro lado, não se pode imaginar um filme de Fellini sem a sonoridade de Nino Rota. Nas suas muitas variantes a música de cinema é vital. E sobre isto, vale, entre outros, o depoimento do ator George Peppard: ‘Há uma longa cena em Home from the hill (Herança da carne, 1960), durante a qual a câmara se fixa em mim enquanto caminho para o cemitério. As pessoas vivem me dizendo o quanto apreciam o meu desempenho, quando, na verdade, eu não faço nada além de caminhar olhando para a frente. Quem representa ali é a música de Kaper’.

Este livro de Joâo Máximo é para ser ler com o ouvido.

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Professor, poeta e escritor; e-mail (santanna@novanet.com.br); texto publicado originalmente no Estado de Minas, 15/2/04