Mais uma vez, Venício de Lima, ao fazer a crítica aguda da ‘desorganização’ dos meios de comunicação de massa, contribui apreciavelmente para a reforma do nosso sistema político.
A Constituição de 1988 abre-se com a declaração solene de que a República Federativa do Brasil é um Estado Democrático de Direito. Acontece que nenhum desses três magnos princípios é adequadamente obedecido neste país. Não somos uma verdadeira república, porque o bem comum do povo, que os romanos denominavam exatamente res publica, não prevalece sobre os interesses particulares dos ricos e poderosos. Não somos uma autêntica democracia, porque o poder soberano não pertence ao povo, mas a uma minoria de grupos ou pessoas abastadas; o que é a própria definição de oligarquia. Tampouco constituímos um Estado de Direito, porque, com escandalosa frequência, as pessoas investidas em cargos públicos – no Executivo, no Legislativo e até mesmo no Judiciário – exercem um poder sem controle, e logram pôr sua vontade e seus interesses próprios acima do disposto na Constituição e nas leis.
Em suma, vivemos um regime político de dupla face. Para efeitos externos, a nossa República, como declara a Constituição, é um Estado Democrático de Direito. Para efeitos internos, porém, como todos sabem, a realidade é bem outra.
O povo brasileiro tem sido regularmente impedido de exercer o poder soberano. De um lado, por falta de adequada informação sobre as questões de interesse público; de outro, pela impossibilidade em que se encontra o conjunto dos cidadãos de manifestar publicamente suas opiniões ou protestos.
Liberdade pública
Na democracia ateniense, a comunicação cívica era presencial: o povo reunia-se na ágora, para discutir e votar as grandes questões de interesse da pólis. Nas sociedades de massas do presente, a comunicação dos cidadãos entre si exige a mediação da imprensa, do rádio, da televisão, ou da internet. Ora, no Brasil e em vários outros países, esses meios de comunicação de massa, com a só exceção (por quanto tempo?) da internet, foram ocupados e apropriados por particulares, que deles se servem em proveito próprio, ou das classes e entidades a que estão ligados.
Em verdade, nas sociedades contemporâneas os veículos de comunicação pública exercem função semelhante à do sistema de circulação sanguínea nos organismos animais. Trata-se de levar fatos, opiniões, ensinamentos, propostas ou espetáculos ao conjunto dos cidadãos, com a suposição de que estes saberão reagir a tais estímulos. É sempre o duplo movimento de sístole e diástole.
Ora, ninguém ignora que o sistema de comunicação de massa, aqui e alhures, tem funcionado com obstruções e insuficiências, semelhantes à manifestação de uma aterosclerose. Pior: na maioria esmagadora dos casos, não existe propriamente comunicação, no sentido original da palavra. Na língua matriz, communicatio, com o verbo correlato communico, -are, significava o ato de pôr algo em comum, de partilhar. Não é o que acontece hoje no campo das transmissões radiofônicas e televisivas, nem no da imprensa periódica: as mensagens são unilateralmente transmitidas ao público, e a este, salvo em hipóteses excepcionais, não é reconhecido o direito de contestá-las, e, menos ainda, o de abrir uma discussão a respeito delas.
Venício de Lima opõe com razão, desde o título da obra, os conceitos de liberdade de expressão e liberdade de imprensa (transformada, no sistema capitalista, em liberdade de empresa).
A partir das declarações de direitos do final do século 18, estabeleceu-se a distinção entre liberdade pública, com o sentido político de autogoverno ou autopoder, e liberdades privadas, como contrapoderes; vale dizer, instrumentos de defesa do cidadão perante os poderes oficiais.
Benjamin Constant, em conferência pronunciada no Ateneu Real de Paris, em 1819, sustentou que, enquanto os gregos e os romanos só se preocupavam com a liberdade pública, isto é, a participação do cidadão no exercício do poder político, e desconheciam a autonomia privada, os modernos atribuem ao Estado, praticamente, uma única função: garantir as liberdades individuais. Com isto, perdemos tanto uma, quanto as outras.
Hoje, é preciso compreender que entre liberdade pública e liberdades privadas não há oposição, mas sim complementaridade. A liberdade pública é o quadro de organização das liberdades privadas. Tomemos, por exemplo, a liberdade de voto em eleições populares. Durante o regime militar brasileiro de 1964 a 1985, a Constituição garantia a liberdade de voto, mas as eleições não eram livres: só podiam existir partidos autorizados pelo governo, e os candidatos a postos eletivos eram submetidos a severa triagem ideológica.
Agenda setting
Esse foi um caso emblemático, em que as liberdades individuais deixaram de existir, em razão do excesso de restrições regulamentares.
Mas pode também ocorrer que as liberdades privadas sejam prejudicadas pela ausência de regulamentação. É o que vemos hoje, em nosso país, no campo da comunicação de massa. A Constituição declarou livre a manifestação do pensamento (art. 5º, inciso IV), mas deixou a regulamentação do quadro geral de exercício dessa liberdade individual à legislação ordinária. Sucede que até hoje, passados mais de vinte anos da entrada em vigor da Constituição, as suas principais disposições sobre a matéria ainda não foram regulamentadas. O Congresso Nacional é sistematicamente paralisado pela pressão dominante das empresas de comunicação.
Se, numa sociedade de massas, as opiniões, idéias, protestos ou propostas só podem ser manifestados publicamente através dos meios institucionais de comunicação social, é evidente que esse espaço, por natureza público, não pode ser apropriado por particulares, atuando em ambiente não regulamentado.
O vale-tudo empresarial nesse campo, aliás, não é próprio do Brasil. Ele se espalhou pelo mundo todo com o movimento de globalização capitalista, a partir do último quartel do século 20. Não há dúvida, porém, que fomos dos primeiros a aderir à nova moda. Nos Estados Unidos, bastião inconteste do capitalismo, a desregulamentação dos mass media somente ocorreu com a lamentável lei de 1996 [cf. Ben H. Bagdikian, The New Media Monopoly, Bacon Press books, 2004, pp. 137/138; C. Edwin Baker, Media Concentration and Democracy – Why ownership matters, Cambridge University Press, 2007, pp. 1, 12 e ss]. Aqui, nem precisamos de lei para deitar abaixo a regulamentação mínima do setor. Neste ano de 2009, o Supremo Tribunal Federal, manifestando completa desinteligência dos princípios jurídicos em relação à realidade hodierna dos meios de comunicação de massa, julgou revogada a Lei de imprensa de 1967. O fundamento dessa decisão ‘libertária’ foi o fato de que ela fora editada durante o regime militar. Os empresários rejubilaram, exclamando como o velho sertanejo: a onça fugiu, o mato é nosso.
Nunca é demais repetir que público opõe-se a próprio. Público é o que pertence a todos. Próprio, o que pertence exclusivamente a um ou alguns. A comunhão ou comunidade é o exato contrário da propriedade. Nesse sentido, pode-se dizer que a liberdade de expressão, enquanto direito fundamental, não pode ser objeto de propriedade de ninguém, pois ela é um atributo essencial da pessoa humana, um direito comum a todos. Ora, se a liberdade de expressão se exerce atualmente pela mediação necessária dos meios de comunicação de massa, estes últimos não podem, em estrita lógica, ser objeto de propriedade empresarial no interesse privado.
É preciso lembrar que a globalização capitalista do final do século passado engendrou uma enorme concentração do controle privado das empresas de comunicação de massa. Nos Estados Unidos havia, em 1983, cinquenta empresas dominantes no mercado de imprensa, rádio e televisão; hoje, há apenas cinco [cf. Ben H. Bagdikian, op. cit., pág. 16]. Atualmente no Brasil, apenas quatro megaempresas dominam o setor de televisão: a Globo controla 342 veículos; a SBT, 195; a Bandeirantes, 166; a Record, 142; sendo que cada uma dessas ‘redes’ representa um segmento de um grupo, que explora também o rádio, jornais e revistas.
Com esse quadro reduzido de atores, as peças encenadas são sempre as mesmas. Quando eu era jovem – e já lá se vão alguns decênios – dizia-se que para ser bem informado era preciso ler vários jornais. Hoje, quem lê um dos nossos grandes matutinos leu todos os outros. Tirante algumas originalidades marginais, há absoluta convergência na defesa do capitalismo e na desregulamentação do setor de comunicação social. A escolha dos fatos a serem noticiados, ou dos assuntos a serem comentados – o famoso agenda setting dos norte-americanos – é basicamente a mesma. Até o estilo jornalístico, antes bem diverso conforme os periódicos, é hoje fastidiosamente homogêneo.
Princípios fundamentais
No passado, a edição de livros ou jornais representava o exercício de uma liberdade fundamental perante os órgãos do poder estabelecido. Era o modo de se desvendarem os abusos oficiais, perante o público leitor. Eis por que o soberano político, ou os chefes religiosos, não abriam mão da censura prévia. Os leitores eram constrangidos a pensar e a se exprimir como as autoridades ordenavam. Tal situação persiste ainda nos atuais Estados autoritários e totalitários.
Sucede, porém, que nos atuais países em que a democracia existe só como fachada, a apropriação empresarial dos meios de comunicação de massa inverteu os papéis: de instrumentos de contrapoder, ou garantias da liberdade de expressão, eles passaram a compor o complexo do poder estabelecido, manipulando a opinião pública e fazendo com que os diferentes órgãos do Estado – o Executivo, o Congresso Nacional e até mesmo os tribunais – se inclinem diante de suas exigências.
A verdade que o poder político não se assenta apenas na coação física, mas necessita também, para ser estável, de um mínimo de obediência voluntária. Ora, esta, nas sociedades contemporâneas, só pode ser obtida com a colaboração dos meios de comunicação de massa. Quando estes últimos são organizados sob a forma de empresas privadas, atuando livres de toda regulamentação, eles se tornam os grandes mentores da opinião pública, distribuindo loas e labéus a aliados e adversários, assim como as autoridades religiosas do passado zelavam pela ortodoxia dos fiéis, prometendo a salvação para uns e a condenação eterna para outros.
A atual inversão de papéis fez com que o poder de censura passasse das autoridades estatais para os próprios órgãos privados de comunicação social. A menção a pessoas não gratas aos novos barões da imprensa, do rádio e da televisão é terminantemente proibida. Tudo se passa como se tais renegados houvessem desaparecido deste mundo, sem deixar vestígios. Conheço, assim, um professor universitário paulista que goza do odioso privilégio de ter seu nome censurado nos dois principais jornais de São Paulo.
O que importa hoje, portanto, antes de tudo, é montar uma estratégia de combate aos abusos consolidados no vasto setor de comunicação social. Como toda estratégia, ela implica a fixação de princípios, a montagem de um programa de reformas institucionais e a organização de forças políticas empenhadas em levar avante o movimento geral de transformação.
Os princípios fundamentais são os três acima citados: a República, a Democracia e o Estado de Direito. O essencial é preservar, sob controle do povo, o espaço público de comunicação de massa, e evitar cair nos desvios do estatismo e do privatismo.
Oligopólio empresarial
Ofereço a seguir, como contribuição à montagem de um programa de reformas institucionais, sob a égide desses princípios, as propostas seguintes:
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Prioridade absoluta deve ser reconhecida à criação de rádios ou televisões públicas; sejam elas de comunidades locais, com reduzido espectro de transmissão, sejam de âmbito nacional ou regional. Estas últimas devem ser geridas pelo Estado, mas com a participação majoritária, em seus conselhos de administração, de representantes legítimos da sociedade civil.**
As entidades privadas de imprensa, rádio e televisão não podem se organizar como empresas capitalistas, mas devem funcionar sob a forma de associações ou fundações. Metade, pelo menos, dos componentes do conselho de administração dessas entidades deve ser eleita pelos jornalistas que nelas trabalham.**
Nenhuma empresa privada de comunicação pode possuir o controle, direto ou indireto, de mais de um veículo.**
A concessão pública de funcionamento de entidades privadas de rádio e televisão, bem como a sua renovação, devem ser feitas sempre mediante licitação pública (Constituição Federal, art. 175), revogando-se o disposto no § 2º do art. 223 da Constituição [‘A não-renovação da concessão ou permissão dependerá de aprovação de, no mínimo, dois quintos do Congresso Nacional, em votação nominal’].**
O Conselho de Comunicação Social, previsto no art. 224 da Constituição Federal, deve ser composto, metade por representantes dos veículos públicos de comunicação social e a outra metade por representantes dos veículos privados.**
Devem ser criadas ouvidorias populares para fiscalizar a atuação dos veículos de comunicação social, em todas as unidades da federação.**
Além do direito de resposta tradicional, a lei deve instituir um direito de resposta para a defesa dos direitos coletivos e difusos, a ser exercido por associações ou entidades que tenham em seu estatuto social essa finalidade.**
Além dos partidos políticos, devem poder exercer o chamado direito de antena, já instituído nas Constituições da Espanha e de Portugal, as entidades privadas ou oficiais, reconhecidas de utilidade pública. Ou seja, elas devem poder fazer passar suas mensagens, de modo livre e gratuito, no rádio e na televisão, reservando-se, para tanto, um tempo mínimo nos respectivos veículos.Quando da independência dos Estados Unidos, James Madison, um dos seus Pais Fundadores, afirmou que um governo democrático (a government by the people), sem uma imprensa controlada pelo povo (a popular press), seria um prelúdio à farsa, à tragédia, ou a ambas as coisas.
No Brasil, a criação do oligopólio empresarial dos meios de comunicação de massa durante o regime militar (1964 a 1985) logrou, de fato, unir a farsa à tragédia. Não foi por outra razão que esse amálgama monstruoso mereceu de um jornal de São Paulo a leviana qualificação de ditabranda. [São Paulo, Primavera de 2009]
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Professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra