Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Livrinho útil na observação da mídia

Adquiri o livrinho de Harry G. Frankfurt, publicado pela editora Intrínseca, meio que por acaso. Queria apenas algo para ler enquanto esperava a sessão de cinema começar. Acabei ficando tão interessado na obra que desisti de assistir ao filme para não interromper a leitura.

No início o autor faz uma distinção entre impostura e falar merda. Demonstra, para tanto, que o conceito de Max Black para impostura, que abrange elementos que poderiam ser atribuídos ao falar merda, não se ajusta corretamente à amplitude deste. Ao fim de sua detalhada análise, o autor afirma não crer que Black “apreenda de modo adequado ou com precisão o caráter essencial do falar merda”. Uma maneira bastante educada de dizer que Max Black falou merda.

Logo em seguida o autor recorre a Wittgenstein. Este filósofo estudou profundamente a linguagem e deu uma grande contribuição para o tema, pois “dedicou grande parte de suas energias filosóficas a identificar e combater o que via como formas insidiosamente nocivas de contra-senso”. Ao analisar detalhadamente um episódio relatado por Fania Pascal entre ela e Wittgenstein, o autor sugere que um dos dois pode ter falado merda.

Formas de embuste

Um pouco mais adiante o autor afirma que o “termo falação é também empregado, num uso muito mais disseminado e familiar, como equivalente pouco menos vulgar de falar merda. No verbete para falação com esse sentido, o Oxford English Dictionary sugere o seguinte como definitivo: Conversa ou escrita trivial, insincera ou falsa, contra-senso. Assim, não parece característico da falação que ela deva ser necessariamente carente de significado ou sem importância; de forma que contra-senso e trivial, além de sua imprecisão, parecem estar na pista errada. O foco sobre insincera ou falsa é melhor, mas precisa ser aguçado”. Trocando em miúdos, o autor do verbete do prestigiado Oxford English Dictionary falou merda.

Um pouco mais adiante o autor trata de um assunto precioso para os que se dedicam a observar a imprensa. “De fato, parece que falar merda envolve algum tipo de blefe. Encontra-se, certamente, mais próximo de blefar que de contar uma mentira. Mas o que se deduz de sua natureza pelo fato de ter mais semelhanças com aquele do que com este? Qual a diferença relevante aqui entre o blefe e a mentira?”

O próprio autor responde a estas questões. “Mentir e blefar são formas de embuste ou de logro. Assim, o conceito mais fundamental que caracteriza uma mentira é o de falsidade: o mentiroso é, em essência, alguém que divulga de propósito uma falsidade. O blefe, também, transmite uma coisa falsa. Entretanto, de forma diferente da mentira pura e simples, ele é mais um caso de tapeação que de falsidade. Isso é o que o torna próximo do falar merda. Pois a essência de falar merda não é algo falso, mas adulterado”.

Correndo o risco

Cabe ao jornalista divulgar notícias úteis procurando sempre preservar a veracidade e provocar estranhamento no leitor. Quando noticia uma inverdade porque foi induzido a erro por sua fonte o jornalista não compromete a integridade de seu trabalho. Mas, para que isto ocorra, ele terá que noticiar a falsidade da informação anteriormente divulgada como verdadeira. Caso divulgue informação diferente da que recebeu ou se recuse a admitir a falsidade da informação falsa que divulgou como verdadeira o jornalista pode ser considerado um mentiroso.

Mas se mentira pode ser facilmente detectada quando a verdadeira informação vem a público a adulteração da informação gera problemas bem maiores. Quando a informação é adulterada parte dela é verdadeira e parte é falsa e o jornalista pode ou não ter sido o autor consciente da adulteração. Caso tenha adulterado a informação podemos considerá-lo um “jornalista de merda”. Se não foi o autor da adulteração certamente produziu involuntariamente um “jornalismo de merda”.

Felizmente para os “jornalistas de merda”, o autor afirma que “as pessoas tendem de fato a ser mais tolerantes com a falação de merda do que com a mentira”. Um pouco mais adiante Frankfurt esclarece que tanto “quem mente quanto quem fala a verdade atuam em campos opostos do mesmo jogo, por assim dizer. Cada um reage aos fatos como os entende, embora a reação de um seja guiada pela autoridade da verdade, enquanto a reação do outro desafia essa autoridade e se recusa a satisfazer suas exigências. O falador de merda as ignora como um todo. Ele não rejeita a autoridade da verdade, como faz o mentiroso, e opõe-se a ela; simplesmente, não lhe dá a menor atenção. Em virtude disso, falar merda é um inimigo muito pior da verdade do que mentir”.

Mesmo correndo o risco de estar a falar merda utilizarei dois exemplos para provar que o autor está certo.

Raízes profundas

Adolf Hitler e Truman Capote foram escritores. O primeiro escrevia como se estivesse falando a verdade e o segundo era um mentiroso contumaz e confesso. Ao contrário da literatura de Hitler, a de Capote não foi socialmente perversa. Isto prova que o mentir produz menos guerras e holocaustos do que falar merda.

O jornalismo americano da era Bush é especialmente patriótico pois celebra a superioridade militar absoluta dos EUA. Em razão de não questionarem o “destino manifesto” ou os benefícios do “culto ao militarismo”, os jornalistas conduzem os cidadãos americanos a uma armadilha: a aceitação da doutrina Bush de guerra preventiva. A guerra preventiva é uma violação clara dos princípios de Direito Internacional que foram construídos com a ajuda dos EUA. A violação do Direito Internacional transforma os EUA num Estado fora-da-lei e legitima os atentados “terroristas” aos olhos dos inimigos daquele país. A propósito, o que os jornalistas americanos chamam “terrorismo” os inimigos dos EUA podem chamar de “reação justificada e não militar ao militarismo americano”. Conclusão: em razão de seu patriotismo, os jornalistas americanos estão a falar merda e a criar condições para que seu país fique perigosamente isolado.

O autor finaliza o livro assegurando: “É inevitável falar merda toda vez que as circunstâncias exijam de alguém falar sem saber o que está dizendo. Assim, a produção de merda é estimulada sempre que as obrigações ou oportunidades que uma pessoa tem de se manifestar sobre algum tópico excederem seu conhecimento dos fatos pertinentes”. Um pouco mais adiante assegura que a “…atual proliferação do ato de falar merda tem também raízes muito profundas em várias formas de ceticismo, que negam o fato de que possamos ter acesso confiável a uma realidade objetiva e rejeitam, portanto, a possibilidade de sabermos como as coisas na verdade são”.

O livro é preciso e precioso, mas tem dois problemas.

Obrigação de meditar

Há pelo menos uma passagem em que o próprio autor pode ter falado merda. Frankfurt afirma que “…há certas semelhanças entre papo furado e excremento que fazem papo furado parecer um equivalente especialmente apropriado de falar merda. Da mesma forma que papo furado é uma fala que foi esvaziada de todo conteúdo informativo, excremento é matéria da qual foram removidos todos os nutrientes”. Qualquer um sabe que apesar de repugnante a merda pode ser utilizada como adubo, que preserva propriedades nutricionais úteis aos vegetais. Sendo assim, o excremento não pode ser comparado ao papo furado nem este ao falar merda.

O autor não fez uma abordagem do falar merda segundo o alcance da mensagem. Parece ser bastante razoável admitir a hipótese de que um cidadão que fala merda provoca menos mal do que um jornalista de merda ou um jornalista que eventualmente produz um jornalismo de merda. Em razão de a TV atingir um público maior, somos obrigados a concluir que falar merda na telinha luminosa é mais prejudicial do que num jornal escrito. Contudo, na TV a notícia vira ou pode virar espetáculo, de maneira que falar merda atrai ou pode atrair mais a atenção do público. Assim, quanto pior o jornalismo televisado maior seria sua audiência. Isto talvez explique a absurda audiência dos sanguinolentos noticiários vespertinos.

O livro é essencial a qualquer pessoa que se interesse pelo fenômeno da comunicação. Sua edição no Brasil em 2005 foi muito oportuna, principalmente porque em razão da internet todos podemos falar merda sobre todos os assuntos o tempo todo. Como a democratização do falar merda é um fato, temos a obrigação de meditar sobre este mister.

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Advogado