Numa viagem recente a Nova York, o dono da Livraria Cultura, Pedro Herz, fez um teste: ao andar de metrô pela cidade, observou quantos passageiros portavam e-readers. Em dez dias, encontrou um único leitor com o novo equipamento.
Herz diz já ter visto burburinho semelhante em outros tempos, avalia que tudo não passa de ‘uma nuvem’ e atribui tanto barulho à sede da indústria eletrônica por escoar os novos produtos que cria em velocidade incontrolável. A ameaça real ao futuro do livro, opina, é ausência de novos leitores entre os jovens. Apesar do ceticismo quanto à nova coqueluche do mercado, ele informa que em março a Cultura passará a vender 150 mil títulos de e-books em suas lojas.
Neste ano, a rede, que tem nove unidades (cinco em São Paulo e as outras em Campinas, Recife, Porto Alegre e Brasília), abrirá mais três: Salvador, Fortaleza e uma segunda na capital federal.
Com mais de 3 milhões de títulos em catálogo e 1.400 funcionários (serão mais 400 para as três novas lojas), a Cultura teve faturamento de R$ 274 milhões em 2009, crescimento de 18% em relação a 2008.
Segundo Herz, está mantida a decisão de pôr fim à empresa familiar na terceira geração (ou seja, a de seus filhos) e de abrir em breve o capital. Por ora deu apenas o primeiro passo, se associando no ano passado ao fundo de investimento Capital Mezanino. O fundo tem hoje 16% da empresa e família Herz, 84% – Pedro é o presidente do Conselho de Administração.
Leia a seguir a entrevista que ele deu à Folha num restaurante paulistano.
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‘Uma nuvem que vai passar’
Quando a internet surgiu como uma ameaça ao mercado de livros, você começou antes a vender online. Agora, que o livro eletrônico paira como ameaça ao livro de papel, o que a Cultura vai fazer?
Pedro Herz – Em março vamos disponibilizar 150 mil títulos em formatos para e-readers. Eu acho que é uma opção a mais para o leitor. Não vamos vender o hardware, só conteúdo. Os formatos são tantos que pode ser que você compre num formato que o seu leitor [equipamento] não leia. A Amazon fez isso com o Kindle: se você comprar um e-book na [livraria] Barnes & Noble e tem um Kindle, não conseguirá ler. Foi um tiro no pé da Amazon, obrigar o leitor a comprar no seu formato. É o carregador de celular que só serve no seu, uma ideia totalmente superada.
Os formatos são vários, dependerá de como cada editora vai digitalizar seus livros. Vai ser uma barafunda porque se você tem um formato e teu e-reader não lê, onde o leitor vai reclamar? É o que está acontecendo um pouco nos EUA com a MacMillan e a Amazon, mas pela guerra de preços [por discordância sobre o valor dos livros, títulos da editora foram retirados do catálogo da Amazon, mas depois elas chegaram a acordo].
Não sei bem, está tudo muito cru, muito no início, e não sei bem como serão as vendas. Acho que bem pequenas. Acho o e-reader uma ferramenta fantástica, mas daí a virar o substituto do livro… Já vi esse filme antes, já vi o VHS chegar e dizer que ia acabar com o cinema. Já vi, na Feira de Frankfurt, dizerem que o mundo ia virar CD-ROM, e o mundo não virou CD-ROM. Dois anos depois não se falava nisso, as editoras me falavam: ‘Pô, perdemos um dinheirão, admitimos um monte de gente e não deu em nada.’ A sensação que eu tenho é que a gente está vendo uma nuvem que vai passar. Pode ser que chova, mas, num curto prazo, não vai acontecer nada.
‘Se eu quero ter mais tempo, para que um computador Fórmula 1?’
O sr. tem e-reader, usa para ler?
P.H. – Não, tem um monte na livraria, mas eu não uso.
E tem um monte para quê?
P.H. – Para conhecer. Eu estive em Nova York há pouco, passei dez dias, e fiquei muito atento a quantas pessoas eu ia ver lendo em e-reader. Gastei mais de US$ 80 em metrô, para cima e para baixo. Se eu te disser que vi um único cidadão com um na mão, você acredita? Em dez dias em Nova York, andando de metrô, onde todo mundo lia – ou uma revista, ou um jornal ou um livro –, eu vi uma pessoa com um e-reader. Um detalhe que me chamou a atenção foi que esse leitor lia segurando o aparelho com as duas mãos e as pessoas que liam livros usavam uma mão apenas. São coisas interessantes. Dos leitores que entrevistei informalmente nas livrarias, 100% disseram que não vão trocar.
Em que medida o rebuliço em torno do e-reader se deve ao poder de marketing da indústria eletrônica?
P.H. – Não só o marketing é tão forte como a indústria, qualquer indústria, tem necessidade de criar modelos novos, seja do que for, e escoar os modelos novos. E existem coisas paradoxais: todo mundo trabalha para ter mais tempo de lazer, aí chega a indústria e desenvolve um computador que é um centésimo de milésimo de segundo mais rápido do que aquele que você tem e tenta te convencer a comprar o desgraçado. Peraí, mas se eu quero ter mais tempo, por que meu computador tem que ser Fórmula 1? Eu não tenho certeza se as pessoas querem essa velocidade toda. Eu troco de carro a cada cinco anos, e sou um cara que ando pouco. Quando compro um carro algum amigo já diz: ‘Esse carro é meu quando você vender.’ Se você me perguntar por que eu troquei, eu não sei te responder direito.
Vendas por internet
Qual a principal desvantagem do livro de papel?
P.H. – Imagina um advogado que vai fazer uma audiência no Acre e tem que levar aquela papelada do processo. Um editor de uma grande editora de livros, que recebe 50 livros novos por semana de todo mundo, para resolver se vai publicar ou não, ter isso digitalizado e num voo de 12 horas para a Europa ir dando uma olhada no que interessa ou não. É de uma utilidade fantástica, mas não sei se é a melhor ferramenta para o leitor de livros. E tem outra pergunta que eu faço: fará novos leitores? Quem não lê livro de papel, não vai passar a ler por causa do livro eletrônico. Eu não sei como reagirão os que estão na maternidade.
Acredito que quem faz leitor são os pais, inegavelmente. Os jovens leitores são filhos de leitores. Dificilmente aparece uma criança ou adolescente que não tenha os pais leitores. A grande campanha que na minha opinião deveria ser feita pelo governo é mais ou menos assim: ‘Se você não lê, como quer que seu filho leia?’ Essa é a pergunta que deve ser feita. Porque os meus filhos ‘liam’ sem ser alfabetizados, pegavam o livro na mão para imitar os meus gestos.
As vendas de livros pela internet representam quanto do total de vendas da Livraria Cultura?
P.H. – É a nossa segunda loja. A primeira é a da Paulista. [As vendas pela internet] representam 16% do faturamento [em 2009].
Esse índice vem crescendo nos últimos anos?
P.H. – Vem, mas as vendas das lojas físicas também.
O fabricante de papel
Proporcionalmente, qual cresceu mais?
P.H. – Não tenho a informação, teria de separar isso, ver quanto a internet cresceu sem abertura de lojas. Vi uma coisa interessante: abri uma loja em Brasília, que vai super bem. A [venda pela] internet na região fez isso [faz com a mão gesto de subida]. É de alguma forma um símbolo de segurança para o comprador. E muita gente usa a internet para pesquisa e realiza a compra fisicamente. É muito comum você ver o cara chegar na livraria com o que ele imprimiu na internet.
Li numa reportagem, com dados da Associação Britânica de Livreiros, que houve uma queda de 27% no número de lojas de rua em dez anos no Reino Unido – só em 2009 foram fechadas 102 lojas. É uma tendência inevitável também no Brasil? O sr. tem dados?
P.H. – São dados poucos confiáveis, não são representativos do mercado. Nós não somos sócios de nenhuma das entidades de classe. Os números de consumo de livros divulgados no Brasil embutem compras do governo e eu não sei se são confiáveis.
Mas uma pesquisa de 2009 encomendada por CBL (Câmara Brasileira do Livro) e SNEL (Sindicato Nacional dos Editores de Livros) fazia a separação entre essas compras…
P.H. – Eu não sou fornecedor do governo, não sei se o governo comprou mais ou menos, tenho que acreditar naquilo que dizem. Acho que falta nesta pesquisa um ingrediente que, não sei por que razão, fica fora, que é o fabricante de papel. Quanto foi vendido para publicar livro, que é isento de imposto. Os fabricantes de papel concordam com esse aumento? Houve um aumento de quantas toneladas de papel para livro? Eu não sei.
Leitores que preferiram não ter filhos
Mas o fechamento das chamadas livrarias de rua parece inexorável, as lojas novas que a própria Livraria Cultura abre são todas em shoppings…
P.H. – É, tem uma série de componentes. Por que se prefere o shopping? Por que é mais seguro, facilidade de estacionar. São poucas lojas de rua que oferecem essa comodidade. Numa cidade como São Paulo, onde o transporte público é ruim, você tem que andar não sei quantas quadras para deixar o carro numa loja de rua, o medo toma conta, os pais não deixam os filhos, isso no Brasil. Em Nova York ou Londres é um pouco diferente.
Como a crise de 2008/2009 atingiu o mercado?
P.H. – O mercado eu não sei, a nós não atingiu. Nós crescemos legal, 18%. Acho que a solução continua nos livros, então as pessoas começaram a ler, procurando explicações [para a crise] porque não aconteceu nada de novo, nós já vimos isso outras vezes.
O sr. vê algum novo nicho a ameaçar as vendas de livros nas livrarias?
P.H. – A grande ameaça que existe é a não-formação de novos leitores. As famílias [ricas] que tinham cinco filhos há um século, hoje ou não têm nenhum ou têm um, no máximo dois. O número de leitores cresce pouco, se é que cresce. Se você pegar o universo da classe D, esse pai não tem orgulho nenhum do que faz, nem a mãe. Então a compra de um lápis significa para ele um investimento na educação de um filho. Acho isso extremamente bacana, é um raciocínio válido, mas sabemos que é insuficiente. O apagão do ensino taí, a dificuldade que temos de admitir gente é homérica. A gente aplica testes básicos de conhecimentos gerais razoáveis. A gente quer que o candidato leia jornais, uma revista, que seja atualizado. Você pergunta para ele quem escreveu Dom Casmurro, ele levanta e vai embora. E são todos universitários formados. E não sou o único que tem esse tipo de problema. Falei com outros empresários, de outras áreas, que têm exatamente o mesmo problema. Gente que não encontra engenheiros, que não encontra médicos. Veja o resultado do Enem. Está difícil acreditar. Esse crescimento anunciado é sustentado? Ou é um momento de paternalismo que está aí? Estou procurando gente [para as lojas] no Nordeste, tem gente que não quer ser registrada. Perguntamos por que, e dizem: ‘Ah, porque eu recebo a Bolsa [Família], minha mulher recebe a Bolsa.’ E a população cresce nesses lugares do Nordeste. E gente esclarecida que pode ter filhos está tendo cada vez menos, se é que está tendo. Conheço casais de amigos, leitores, muito bem casados, felizes, que preferiram não ter filhos.
Bibliotecas fecham no fim de semana
O aumento da oferta de livros nos supermercados e expansão do comércio de livros usados on-line, por exemplo, podem ameaçar as vendas nas livrarias?
P.H. – Minha mãe começou a livraria achando que muito livro valia a pena ser lido e não ser comprado. Ela começou alugando livro. Sou francamente favorável ao comércio de livros usados. E há espaço para todo mundo. A rua da Consolação está cheia de loja de lustres. Peraí, o Brasil é muito grande. Sou francamente favorável. O que eu condeno é que um irmão mais novo não possa aproveitar o livro do irmão mais velho na escola. O que é que mudou na aritmética e na geografia? Por que tem que jogar fora esse livro? Hoje o governo até faz uma campanha para o aproveitamento [do livro didático], extremamente salutar, mas não é só. Por que o livro novo tem que ter um leitor por exemplar? Não tem biblioteca. Um livro, um leitor, é pouco.
Supermercado não me afeta em nada. Eu acho que contribui para a formação do leitor. Eu não quero fazer uma venda, eu quero um cliente. Se ele começar a gostar de ler, o próximo passo daquele que comprou um livro no supermercado será a livraria.
O que achou da Biblioteca de São Paulo, cujo modelo foi inspirado, segundo a Secretaria Estadual de Cultura, em livrarias tipo megastores?
P.H. – O [secretário estadual de Cultura, João] Sayad me falou que eles se inspiraram muito no modelo da [Livraria Cultura da avenida] Paulista, que é um local onde as pessoas ficam. Fiquei orgulhoso. É possível criar um lugar onde as pessoas se entretêm, têm opções para aprender e ver alguma coisa de concreto. A coisa mais bacana que achei é que ela vai funcionar nos fins de semana. Gente, o Brasil é o único país em que as bibliotecas fecham no fim de semana, quando os pais podem levar os filhos.
‘O Rio tem uma geografia que não nos ajuda’
Por que a Livraria Cultura resiste a entrar nas entidades de classe?
P.H. – Não vejo o porquê. Não vejo muito sentido para as entidades de classe em meu ramo. Não acredito muito no que eles estão fazendo ou fizeram em benefício [do setor].
Já sofreu represália por isso?
P.H. – Não, nunca sofri. E nós nos falamos, numa boa, com a Câmara [Brasileira do Livro], a ANL [Associação Nacional de Livrarias], o sindicato [nacional de editores de livros, o SNEL]. A relação é muito cordial. Mas não participo de reuniões, nem de feiras, nem de bienais. Acho que qualquer feira é um lugar de plantio, não de colheita. E as bienais são de colheita, mas é impossível colher alguma coisa na bienal. Todo mundo diz que perde dinheiro. Então está na hora de repensar esse modelo. E tem coisas que a indústria não tem interesse. Por que o livro do irmão mais velho não pode ser aproveitado pelo mais novo?
Numa entrevista em 2006, o sr. afirmou que a indústria editorial era defasada, não tinha visão e não tratava o livro como negócio. Permanece assim?
P.H. – Bastante. Quando comecei [a vender livros] na internet [em 1995], a gente desenvolveu um software para as editoras nos mandarem os seus catálogos num formatinho já pronto, txt, com informações básicas (autor, título, sinopse), para alimentar a internet. Se eu te disse que zero respondeu. Tive que fazer tudo eu. Para divulgar o livro de uma editora ‘x’. Ninguém viu o potencial da internet do qual falo há 15 anos. Está tudo pronto lá, autor, página, preço, medidas. Não quero informação confidencial, quero informação que eu não tenha que sacar funcionários para fazer uma coisa que já está pronta. Hoje uma grande queixa dos internautas é a falta de resenhas [sinopses] dos livros. Eu é que tenho que fazer a resenha do livro que você editou? Pô, me entrega isso pronto, amigo. Muitas mandam, mas muitas não.
Qual o cronograma de abertura das novas lojas?
P.H. – Brasília será a primeira, entre abril e maio. Fortaleza está marcado para 19 de maio. E Salvador em julho. Estamos procurando um lugar no Rio de Janeiro, mas está dificílimo. Não acho lugar, não tem um espaço. O Rio tem uma geografia que não nos ajuda. O problema de espaço é tão complicado que um prédio encosta no outro. Tenho que chegar ao Rio com a mesma identidade, não posso chegar com um posto de serviços. Preciso de pelo menos 1.800 m2, com um pé direito que permita um mezanino. Não acho nem para discutir o valor.
O taco e o facão dentro da mochila
De início o sr. resistiu a vender outros produtos e virar megastore. O que mais poderá ser agregado às vendas nas suas lojas?
P.H. – Chegamos à conclusão de que o leitor também ouve música e vê filme.
Mas, por esse raciocínio, esse mesmo leitor assiste a TVs de plasma, compra aparelhos eletrônicos… Significa que outros produtos poderão ser vendidos também?
P.H. – Dessa linha não.
Então de que outra linha?
P.H. – Não sei. Temos alguma coisa de produtos educativos, uma pequena parte de Lego. E começamos uma pequena coisa agora [no final do ano passado] com games, mas não hardware.
Em relação ao caso do cliente que foi atacado [na cabeça com um taco de beisebol por um homem] dentro de uma loja da Livraria Cultura em dezembro passado, o que mudou para vocês?
P.H. – [estende um exemplar do último número da Revista da Cultura] É o meu editorial. [Herz se refere ao episódio como o ‘triste dia 21 de dezembro’, no qual ‘um cliente e nós fomos violenta e covardemente agredidos. É assim que me sinto’. Diz que o caso é ‘muito revelador sobre o mundo em que vivemos, sobre a legislação que nos rege (aparentemente um doente mental reincidente que estava à solta e só agora, que agrediu uma vida, e não algo material, foi detido)’. ‘Quantos doentes mentais estão na rua agredindo pessoas… E o que fazer? A resposta eu não tenho. Só reflexões e pesar.’]
Há algo que possa ser feito para evitar casos como esses?
P.H. – Tem, com relação à lei. Ele já tinha quebrado os vidros da livraria [um ano antes], e o delegado soltou ele meia hora depois. Para agir contra ele [na época], eu teria de abrir um processo. Só que ele não fala uma frase emendada na outra, é um doente mental, é louco. Então o Estado não cuida do doente mental. A ideia de abolir o manicômio foi para que a família tomasse conta, mas a família aí se dá conta que dá muito trabalho e que custa dinheiro, e abandona o cara, que fica solto, até fazer o que ele fez. [Segundo Herz, o agredido continuava em coma à época da entrevista, e o agressor permanecia detido por tentativa de homicídio.]
Vocês modificaram algo na segurança das lojas?
P.H. – Não há o que mudar. Entre a entrada do cara na livraria e a agressão passaram-se menos de dois minutos. O delegado falou que se as imagens da agressão vazarem na internet, esse preso corre risco de vida, porque ele agride de uma maneira tão violenta e tão covarde que os presos não toleram isso. O cara está agachado olhando o livro numa estante embaixo, ele vem por trás e mete o taco na cabeça do cara. Ele entrou sem nada na mão, só com o taco e o facão dentro da mochila, de boné, bermuda…