Lévi-Strauss, de Emmanuelle Loyer, tem feito sensação. Lançado em setembro de 2015 na importante série “Grandes biographies”, da prestigiosa editora Flammarion, o livro reconta a vida desse que foi para muitos o antropólogo do século: Claude Lévi-Strauss (1908-2009). Em semanas, a obra conquistou o gosto do público e da crítica, e em inícios de novembro recebeu o importante prêmio Femina de ensaios.
Para compor as mais de 900 páginas dessa imponente biografia, Loyer consultou as 261 caixas do acervo pessoal de Claude Lévi-Strauss depositadas na Biblioteca Nacional da França e em seguida partiu para a coleta e análise de milhares de fontes e depoimentos dispersos em arquivos brasileiros, norte-americanos e europeus.
Somado a isso, ela contatou os principais discípulos, colegas e contemporâneos do autor dos Tristes tropiques, sendo que o crítico Antonio Cândido de Mello e Souza talvez seja o último remanescente vivo a testemunhar a presença de Lévi-Strauss pelo Brasil, por São Paulo e pela Universidade de São Paulo. “O Brasil foi o grande período de nossa vida”, diria o consagrado historiador Fernand Braudel (1902-1985) em uma de suas últimas aparições públicas em meados 1985. Claude Lévi-Strauss partilhava dessa convicção mesmo reconhecendo o peso dos contratempos vividos nos trópicos.
Ciente da importância da experiência brasileira para Lévi-Strauss, Loyer revisita esses tempos em detalhes e apresenta novidades sobre a versão francesa das missões universitárias no Brasil. Os jovens Fernand Braudel e Claude Lévi-Strauss participaram da segunda leva da missão francesa convocada para afirmar e consolidar a USP. Essa missão estava ancorada essencialmente no reordenamento da estratégia de inserção internacional da França no mundo após a primeira guerra mundial.
As tensões da era Vargas
Percebendo o declínio progressivo de seu prestígio cultural e político, o Quai d’Orsay, Ministério de Relações Exteriores francês, criou em 1920 o Serviço de Atividades Francesas no Exterior com a função de ampliar – ou amenizar o declínio – a influência francesa para além de suas fronteiras.
No primeiro momento, sob os auspícios da presidência de Raymond Poincaré (1920-1934), o foco das atividades visou o Oriente Médio. Mas com a ascensão do fascismo italiano e do nazismo alemão e de sua propaganda autoritária altamente persuasiva, a diplomacia cultural francesa se virou no sentido das Américas e Europa. Especialmente América do Sul e Europa central. O responsável pelo lado americano da investida foi o afamado psicólogo Georges Dumas (1866-1946), conhecido dos círculos parisienses como Monsieur Amérique latine.
Entre 1920 e 1938, esse Monsieur Amérique latine promoveria ao menos dezessete viagens ao Brasil e seria o responsável pela criação do Instituto Franco-Brasileiro de Alta Cultura no Rio de Janeiro em 1922, do Liceu Franco-Brasileiro em São Paulo em 1923 e pelas missões de professores franceses na Universidade de São Paulo e na Universidade do Brasil no Rio de Janeiro nos anos de 1930. De muito frequentar as oligarquias locais desse país ávido por modernização, Georges Dumas, de par com Armando Sales de Oliveira (1887-1945) e Júlio Mesquita Filho (1892-1969), definiu com zelo e perícia o perfil dos primeiros missionários franceses para a universidade dos paulistas.
Viviam-se as tensões da era Vargas. As chagas de 1932 estavam ainda abertas e muito vivas. O intuito do Monsieur Amérique latine foi, portanto, encontrar professores franceses discretos e cumpridores, dispostos a atravessar o Atlântico e conhecer o Brasil sem chocar as elites paulistas e paulistanas, absolutamente francófonas, conservadoras e católicas.
As expedições pelo Brasil
Nesse cuidado desembarcariam em terras uspianas durante 1934 com contrato inicial de doze meses Robert Garric e Michel Berveiller, para as Letras, Pierre Deffontaines, para a Geografia, Étienne Borne, para Filosofia, Émile Coornaert, para a História e Paul Arbousse-Bastide, para a Sociologia. O traço comum deles todos era sua maturidade, o pleno reconhecimento acadêmico na França, a exemplar sujeição ao catolicismo e a nula disposição para disputas ideoló
gicas além-mar.
A “turma Lévi-Strauss”, que chegaria em 1935, foi completamente diferente. Além de Fernand Braudel para a História e Claude Lévi-Strauss para a Sociologia, chegariam para a USP Pierre Monbeig, para a Geografia, Jean Maugüe, para a Filosofia e Pierre Hourcade, para as Letras.
Nenhum desses tinha carreira. Eram todos professores de secundário que exerciam suas funções em lugares afastados da capital francesa. Alguns eram judeus, outros socialistas e todos polemistas e combativos. Fora Braudel, que estava avançado em suas pesquisas de doutoramento, os demais chegaram sem destino acadêmico traçado. Todos vieram com contratos de três anos com imensas possibilidades de renovação.
Desde os primeiros tempos no Brasil, Lévi-Strauss, via sua primeira mulher, Dina Lévi-Strauss (1911-1999), teria acesso aos mais destacados círculos político-culturais brasileiros encabeçados pelo secretário de cultura de São Paulo, Mario de Andrade. Por razões pessoais e acadêmicas, seu contrato não seria renovado. Mesmo assim, entre 1935 e 1939 ele promoveria suas expedições pelo Brasil e desvelaria o universo Bororo, Caduveo, Gê, Guarai, Guaycuru, Kaingang, Karaja, Mundé, Nambikwara e Tupinambá, que seria o verdadeiro turning point de sua vida e de sua ciência, a Antropologia.
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Daniel Afonso da Silva é pesquisador no Ceri-Sciences Po de Paris