Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Luz sobre o massacre de 1968

Trata-se do maior conjunto habitacional do México, o assim denominado Tlatelolco (de tlatelli, terraça na língua náhuatl), erguido nos anos 1950 ao norte do chamado Centro Histórico da capital mexicana: 112 edifícios hoje cinzentos e mal conservados, de 4 e 20 andares, milhares de apartamentos ocupados por uma classe média baixa – funcionários públicos subalternos, feirantes, empregados no comércio, estudantes – cercados de lojas, minimercados e botecos de todo tipo, quadras esportivas e centros culturais. Ao fundo, imponente e majestosa, a torre da moderna sede do Ministério das Relações Exteriores, além da grande atração turística, a Plaza de las Tres Culturas, onde resplandecem, num espetáculo visual de tirar o fôlego, numa zona arqueológica cuidada com carinho e respeito, construções do México pré-hispânico, da época colonial e dos dias de hoje.

Aí mesmo, nessa praça histórica, para muitos terreno sagrado, deu-se, ao cair da noite de 2 de outubro de 1968, um horrendo massacre estudantil, quando forças policiais e paramilitares do então feroz regime mexicano, na época presidido por Gustavo Días Ordaz, caiu com tudo em cima dos que ali protestavam, entre outras bandeiras, contra a repressão política e a falta de liberdade de expressão no país.

Durante 45 minutos, posicionados nas janelas dos prédios ao redor, atiradores de elite, apoiados por tropas federais na praça, dispararam contra a multidão estudantil indefesa, que corria atarantada e encontrava fechadas todas as saídas do lugar, na mais negra escuridão, ofuscados apenas pelas luzes dos helicópteros que sobrevoavam o local. Os que escaparam da matança foram presos e levados ao tétrico Campo Militar Número 1, torturados e desaparecidos (fuzilados, enterrados em covas clandestinas ou queimados).

Tom sóbrio

Até hoje as cifras são pouco confiáveis, ninguém pode afirmar com certeza quantos morreram, quantos sumiram do mapa. E raros sabiam, até agora, como, nos bastidores, Díaz Ordaz e seu secretário de Gobernación (equivalente a ministro do Interior) Luís Echeverría tramaram todas essas barbaridades – jamais esquecidas e muitos menos perdoadas pelas cabeças bem pensantes e mais sensíveis do México, sobretudo as famílias das vítimas, muitas delas ainda envolvidas na procura penosa, burocrática e com freqüência inútil do cadáver, ou do local onde jazem os ossos de filhos, sobrinhos, netos.

Agora, com a recente criação de uma Lei Federal de Transparência, que permite o acesso de todos os cidadãos aos documentos oficiais guardados no Arquivo Geral da Nação, é possível reconstruir até certo ponto os planos, ações e relatórios governamentais da época, que levaram ao enorme fiasco político e desastre humano de Tlatelolco.

Com base na leitura atenta e inteligente da papelada (dois quilômetros de extensão), cotejando nomes e datas, reconstituindo episódios e entrevistando sobreviventes das torturas, o jornalista mexicano Julio Scherer García, produziu, em forma de livro, uma longa (128 páginas), comovente e profunda reportagem sobre os fatos mais marcantes da tragédia. Seu texto é acompanhado de um ensaio, não menos contundente e perceptivo, sobre os abusos do poder no México desde tempos imemoriais, escrito por outro grande jornalista e escritor, Carlos Monsiváis, o cronista maior das misérias e glórias da alma mexicana.

Meio século de jornalismo nas costas, don Julio, durante oito anos diretor do jornal Excelsior em sua melhor época, de 1968 a 1976, quando manteve posição crítica diante do sistema; e, depois, de 1976 a 1996, diretor da revista semanal Proceso, é hoje escritor consagrado de livros sobre a atualidade sociopolítica do país.

Aborda temas de sua própria escolha, que conhece muito bem, escritos no tom sóbrio e escorreito da boa reportagem de antigamente – dados precisos e conclusões relevantes, sem firulas estilísticas ou tiradas literárias engraçadinhas. Diz ele, numa curta introdução:

‘Circula por aí a frase certeira: ‘o político lava as mãos em água suja’. Mas assim somos todos. No fim, ninguém pode mostrá-las sem mácula. Contudo, houve quem – e disso trata este livro – as lavaram no sangue imaculado de suas vítimas.’

Instituições a toda prova

Quase 40 anos depois, muito já se escreveu, com cores e tendências diversas, em jornais, revistas e livros sobre o massacre de Tlatelolco, sobretudo agora que o México vive, sob a presidência de Vicente Fox, um intenso período de democratização e ampla liberdade de expressão. Mas tanto Scherer como Monsiváis evitam análises simplórias ou ideológicas da questão. Os dois informam e refletem sobre uma página triste, complexa e dramática da moderna história mexicana, com várias e difusas facetas, incluindo os interesses e propósitos, às vezes escusos ou obscuros, das duas facções em luta eterna – a esquerda e a direita.

Para o presidente Díaz Ordaz, um político doentiamente conservador, o que existia então era uma ‘conspiração internacional de esquerda para desprestigiar o país bem na época em que o México seria a sede das Olimpíadas’. A Echeverría, dono do setor mais delicado do sistema, o da segurança interna, cabia ‘conservar a ordem, a fortaleza das instituições, a solidez do Estado’, agindo com rapidez e rigor absolutos para assim apresentar aos visitantes do mundo inteiro um México impecável.

Afinal, na época, quase 10 anos depois da Revolução cubana e suas fortes repercussões no continente, já se abriam as primeiras rachaduras no fechado e sinistro sistema político mexicano comandado pelo partido no poder, o PRI (Partido Revolucionário Institucional). Os estudantes, açulados por grupelhos de extrema esquerda, ensaiavam arriscados protestos contra o regime e seus excessos. Os serviços de segurança detectavam esses sinais de insatisfação, farejavam possíveis reações populares à mão dura do governo.

O massacre de 1968 foi portanto, como bem observa Scherer, ‘espantoso, mas não súbito. Uma longa lista de fatos o precederam’. Quanto mais o sistema reprimia as manifestações de estudantes, trabalhadores urbanos e camponeses, entre julho e outubro, mais crescia a indignação no país e o resultado só podia ser uma espécie de culminação trágica.

Até seu último dia de vida, Díaz Ordaz assumiu a condição de único e total responsável pela medida drástica e extrema de reprimir e abrir fogo em cima da garotada, mas ao mesmo tempo sempre insistiu na mesma tecla: era fundamental ‘conter o avanço das hordas vermelhas’. Echeverria, frio e arredio, sempre negou seu papel direto na repressão, desligando-se dos horríveis efeitos da matança como se a ele não se reportasse então todo o aparelho repressor oficial.

Diz Scherer: ‘Está claro que Echeverría não pegou um fuzil nem deu a ordem expressa de matar. Díaz Ordaz também não pegou um fuzil e nem participou da barbárie desatada. Os dois, porém, posaram para o álbum fotográfico de uma história criminosa’. Do trabalho sujo, é claro, se encarregaram aspones disciplinados e enlouquecidos, numa seqüência coletiva e veloz, impessoal, de ordens e instruções quase impossíveis de rastear.

Para Monsiváis, o que se revela na reportagem de Scherer é ‘a conduta delinqüente de vários governantes mexicanos, e mais precisamente a ilegalidade em que incorreu o Estado mexicano em seu exercício de controle. Até que ponto o Estado fora da lei descrito por Scherer é um fato isolado ou se desprende das estruturas do poder no México? Este é o nosso tema central aqui’.

Falcões em vôo rasante

Um dos aspectos mais importantes do livro de Scherer e Monsiváis é que os autores não se detêm apenas no massacre de Tlatelolco. Vão mais além, entrando na década de 1970, quando surgiu no México, entre 1968 e 1977, a chamada ‘guerra suja’ – o extermínio programado, contínuo, cruel e sujo, outra vez, de grupos de esquerda (com destaque para duas guerrilhas rurais nas selvas do estado de Guerrero), parte deles composto de remanescentes do movimento estudantil de 68. Eram pequenos, é verdade, mas agiam como guerrilha urbana, incansáveis, barulhentos, inquietando o sistema e uma classe média atemorizada com suas ameaças feitas numa linguagem tosca, de retórica barata, de acordo com os slogans das cartilhas marxistas da época.

Houve então outro massacre, o de 10 de junho de 1971, uma quinta-feira de Corpus Christi, quando o agora presidente Luís Echeverría, com poder absoluto nas mãos, acionou um temível grupo paramilitar – Los Halcones (Os Falcões) – para acabar, prendendo ou matando, com outra passeata de protesto de estudantes, trabalhadores e os aproveitadores de plantão.

Dai para a frente, o pensamento de esquerda mais radical viveria e sofreria um período de mais torturas, homicídios, seqüestros e desaparecimentos. Em suma, uma repressão brutal, recheada de horrores, não muito diferente da dos vizinhos mais ao sul – Brasil, Argentina, Chile e Uruguai – unidos na conhecida Operação Condor.

O período retratado no livro, conta Scherer, teve também o equivalente mexicano do delegado Sergio Paranhos Fleury – um certo Miguel Nazar Haro, chefão do sistema de segurança interna, um dos maiores torturadores da época, há pouco preso no norte do país, aos 80 anos, caindo aos pedaços, balbuciante, e obviamente, negando tudo. Outro participante vital do esquema, o juiz Eduardo Ferrer Mac Gregor, encarregado de viciar e distorcer os processos contra o governo relativos a repressão de 1968 e 1971, assim garantindo com todas as letras da lei a mais vergonhosa impunidade dos algozes, também acabou, em tempos democráticos, no mais puro e patético ostracismo – por conta, diz Scherer, ‘de sua imoralidade desatada.’

Em 1977, lembra Monsiváis, outra figura notória da delinqüência oficial, o general Arturo Durazo Moreno, de alcunha El Negro, chefe de polícia da capital mexicana, violento e corrupto ao cubo, proclamava, não sem certa razão dentro do seu ofício: ‘Não posso dar moleza a assaltantes profissionais. Eles nos mandam balas e não podemos responder com malvaviscos’.

Responde hoje Monsiváis:

‘Não se discute o direito dos governantes em se defender, mas sim o esquecimento criminoso das funções essenciais do Estado, a abolição da prática dos direitos constitucionais. Não se preserva a ordem potenciando a impunidade, não se constrói uma sociedade mutilando a memória histórica, não se transcendem os crimes do passado remetendo ao esquecimento os nomes e as trajetórias dos criminosos, ainda à espera da sentença justa.’

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Jornalista e escritor brasileiro radicado no México.