Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Mais Brasil nas estantes mexicanas

Numa rápida visita às boas livrarias da Cidade do México (Gandhi, Fondo de Cultura Económica, El Parnaso, Librerias de Cristal, El Sótano, El Péndulo, Unam), o observador mais atento logo constata a frustrante escassez de livros brasileiros traduzidos ao espanhol – tanto em ficção como não-ficção.

São várias as razões para nossa pobre presença cultural no México, mistura improdutiva de dispersão e parcos conhecimentos editoriais recíprocos, entre elas um interesse limitado pelo tema Brasil, quando não uma excessiva e fútil curiosidade por uma cultura dita ‘exótica’ – mulatas rebolantes, jogadores negros milionários, exuberantes modelos internacionais – cujo acesso é emperrado por um idioma nada fácil e de pouca utilidade prática. Obstáculos, contudo, que não parecem desestimular os 2 mil jovens que anualmente se formam em Português pela Universidad Nacional Autónoma de México (Unam). (Para aonde vão, em termos de trabalho, ainda não está muito claro nem definido.)

Pesam também na cabeça dos editores locais os inevitáveis fatores de ordem comercial: afinal, livro brasileiro vende? Vale a pena mesmo investir em traduções para uma tiragem de 3 mil exemplares no máximo, fenômeno Paulo Coelho à parte? Tampouco se acha fácil no mercado tradutores bem versados no português coloquial brasileiro.

Diante desse problema, de solução complexa, deve-se festejar a aparição recente, nas mesas de novedades das livrarias da capital mexicana, de três obras sobre o Brasil, sua política, cultura e sociedade, escritas ou traduzidas por brasileiros: um livro descrevendo a trajetória partidária e eleitoral do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de autoria do cientista político carioca Candido Mendes (tradução deste articulista); um longo ensaio comparando as carreiras intelectuais do brasileiro Monteiro Lobato e seu contemporâneo, o mexicano José Vasconcelos, da historiadora e professora da pós-graduação de Estudos Latino-Americanos da Unam Regina Crespo, paulista de Rio Claro; e uma antologia de ensaístas brasileiros, também de Regina, em co-autoria com o marido, o crítico literário e professor da pós-graduação em Letras da Unam, o mexicano Rodolfo Mata. (Mata, fluente em português, competente tradutor de Rubem Fonseca, publicou ano passado um livro sobre as vanguardas latino-americanas, no qual concede nobre e generoso espaço a Oswald de Andrade.)

Trata-se, é verdade, de livros mais dirigidos a um nicho particular, o mundo acadêmico, com passagens eventuais pelo político e o cultural; mas o importante, considerando o vazio já mencionado, é que são obras bem cuidadas em todos os aspectos do ramo, incluindo o visual-gráfico, projetando assim um pouco mais no México o Brasil intelectual, com destaque para sua riqueza ensaística. Os três livros completam um esforço permanente da cinqüentona e prestigiosa editora Fondo de Cultura Económica, que há muitos anos traduz ao espanhol, sem grande alarde, obras de sociologia, história e política brasileiras em sua coleção ‘Tierra Firme’.

‘Partido dos desvalidos’

Há pouco eleito pela revista francesa Le Nouvel Observateur como um dos 25 grandes pensadores em todo o mundo, o professor Candido Mendes é hoje tido também como um dos mais sérios estudiosos dos fenômenos políticos representados pela ascensão política de Lula e o crescimento do PT, assuntos sobre os quais tem escrito com freqüência, em artigos na imprensa e em livros, além de convidado habitual para palestras no exterior.

Embora já circulassem no mercado latino-americano outras três obras, duas delas biográficas, sobre o presidente brasileiro, a editora mexicana Edamex decidiu investir no livro de Candido Mendes (edição brasileira Lula: a opção mais que o voto, Garamond, Rio de Janeiro, 2004), por conta de uma de suas características mais interessantes: o relato da trajetória política de Lula, com ênfase nas famosas caravanas eleitorais ao longo do país, das quais ele, o autor, participou ao lado do hoje presidente, observando com o olho do sociólogo como amadureciam o cidadão e o candidato no contato íntimo, às vezes áspero e exaustivo, com a gente brasileira dos mais remotos rincões.

Por feliz coincidência editorial, o livro de Lula entra no mercado mexicano no momento em que a sucessão do presidente Vicente Fox, no próximo ano, esquenta e agita os grandes partidos, que afiam dentes para as eleições. O PRD – Partido de la Revolución Democratica, cujo ‘líder moral’ é Cuahutémoc Cárdenas, figura de respeito na esquerda mexicana moderada, empenha-se na quarta e derradeira tentativa de também ‘chegar lá’, inspirado no exemplo do amigo Lula.

Num belo e castiço português, aqui e ali de difícil absorção numa primeira leitura, Mendes mostra como o ex-torneiro mecânico pernambucano, obstinado às vezes, outras vezes desiludido, parte para a quarta tentativa presidencial, façanha lograda graças ao apoio de 50 milhões de votantes, supostamente cansados do chamado modelo liberal cultivado durante oito anos por Fernando Henrique Cardoso. Para tanto, Lula enfrentou, e venceu, temores e preconceitos de uma certa classe média, encantada com o fim da inflação e a criação da nova moeda, o real.

Inimigos tradicionais da esquerda atribuiriam a vitória final, entre os principais fatores, à esperta competência dos marqueteiros políticos. Rebate Candido Mendes: ‘O inaudito do êxito, ao qual se resistem os cientistas políticos tradicionais, é o coletivismo que Lula representa, todo o contrário do messianismo ou da liderança carismática…’

Muito se deve também, observa o autor, ao próprio PT, ‘originalmente instituído como o partido dos desvalidos, sempre decidido, sem vacilação, até a conquista democrática do poder, com suas próprias regras de jogo e sua espera, paciente e disciplinada’.

Dois projetos nacionais

No espaço de um mês, resultado porém de um trabalho aplicado de cinco anos, a professora brasileira Regina Crespo apresenta em dois livros, num espanhol elegante, um abrangente, erudito e saboroso panorama da cultura, história e sociedade brasileiras dos últimos 100 anos, começando com um ensaio comparativo da carreira de dois combativos e brilhantes intelectuais, o brasileiro Monteiro Lobato e o mexicano José Vasconcelos, que nunca se conheceram pessoalmente (embora nascidos no mesmo ano, 1882), mas ao longo de suas vidas, no mesmo período histórico, batalharam e sofreram por um ambicioso projeto de nação bastante parecido.

De fato, Lobato, escritor, jornalista, editor, empresário, quis transformar o Brasil por meio de livros, saúde e indústrias. Vasconcelos, mecenas do histórico muralismo mexicano (Siqueiros, Rivera e Orozco), inovador ministro da Educação do México, sonhou transformar seu país com o apoio de um amplo programa cultural, sobretudo por meio de uma importante reforma educativa. Embora tenham provocado muita polêmica em seu tempo, entre 1920 e 1940, e deixado enorme influência em seus campos de atividades, com resultados respeitáveis, os dois, por uma série de circunstâncias históricas e políticas, não conseguiram implantar de forma plena e concreta seus objetivos.

Num estilo meio romanceado, que imprime ao texto um tom leve e fluente, a autora primeiro coloca os dois personagens em seu contexto geográfico: Lobato na São Paulo dos anos 1920, ‘centro político, económico y cultural en expansión, que intentaba consolidar su hegemonía sobre el conyunto del país’. Vasconcelos, na pós-revolucionária Cidade do México, que ‘mantenía su posición hegemónica como centro de decisión en términos políticos, económicos y de confluencia cultural…’

Assim, nas duas cidades, onde se concentrava a nata intelectual, política e cultural dos dois países, Lobato e Vasconcelos trabalharam arduamente, entre entusiasmos juvenis e desânimos depressivos, em seus projetos, o brasileiro longe da política militante, o mexicano nela bastante envolvido, tendo sido, além de ministro da Educação, candidato derrotado à presidência.

Lobato, ao mesmo tempo em que se convertia no maior escritor infantil do Brasil, pugnava por melhorar a vida da população, modernizar as estruturas econômicas do país, aperfeiçoar suas instituições.

Vasconcelos, convicto apaixonado dos conceitos e princípios do épico movimento revolucionário de 1910 e bem próximo do poder então vigente, queria emancipar o povo mexicano pelo saber, livrando o país, diz a autora, ‘de una barbárie que no asociaba simplemente al desorden que los caudillos habían promovido durante la Revolución. La asociaba principalmente a las raíces indígenas o, como prefería, al pasado azteca de los mexicanos. Su meta de construir un país más igualitario implicaba rescatar los indígenas de sus atavismos mediante el mestizaje y la educación…’

Vizinhos mais que distantes

Embora cresça aos poucos o comércio bilateral entre os dois países, aumentem os investimentos brasileiros no México e com mais freqüência surjam agora manifestações culturais como capoeira, moda e comida brasileiras, o fato é que os dois países ainda convivem, no campo cultural, como vizinhos demasiado distantes, por razões muito específicas, como observam Regina Crespo e Rodolfo Mata, co-autores deste livro sobre ensaístas brasileiros, entre elas, ‘La conformación política y cultural de Brasil muy particular con relación a la de los países hispano americanos…’

A idéia do livro portanto é aproximar os dois países, aproveitando a existência de uma rica e diversificada ensaística brasileira, porque ambas, embora tenham suas diferenças, fato extensivo aos demais países do continente, ‘comparten la preocupación por lo nacional y la búsqueda de la identidad como tradiciones temáticas incuestionables, que son frutos de pasados coloniales, fusiones culturales, procesos de independencia política más o menos contemporáneas y de una modernización económica y social semejante…’

Da obra constam 21 ensaios que vão desde Joaquim Nabuco, passando por Euclides da Cunha, Paulo Prado, Mário de Andrade, Alceu de Amoroso Lima, José Veríssimo, Plínio Salgado, Dante Milano, Sérgio Buarque de Holanda, Otto Maria Carpeaux (este com seu clássico texto sobre o estilo de Graciliano Ramos), Gilberto Freyre, chegando até Antonio Candido e José Paulo Paes, todos analisando, em grande estilo, aspectos da literatura, história, filosofia, sociologia, antropologia e crítica literária no Brasil dos últimos cem anos.

Um bom trabalho de tradução em equipe, sob a supervisão dos autores, e bem construídos perfis dos ensaístas selecionados, coroam a amplitude temática e as qualidades técnicas deste volume de mais de 500 páginas.

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Jornalista, escritor e tradutor brasileiro radicado no México