‘A capa do caderno Vitrine do sábado retrasado pareceu de cara um tanto estranha, com um cabeludo ao estilo de Jesus cercado por meia dúzia de homens e mulheres de cada lado, remetendo livremente à ‘Última Ceia’ pintada em Milão por Leonardo da Vinci.
A fotografia tratava do Natal, quando -não diga…- se celebra o nascimento de Cristo. O simbolismo da ceia com os 12 apóstolos, ao contrário, é de despedida. Um leitor apontou ‘grave erro conceitual’.
Capa estranha, mas não surpreendente -mais que preservar a abençoada independência frente à Igreja, a Folha incorporou o gosto às vezes arriscado por licenças e provocações à fé alheia.
Também não surpreende a pele alva dos 13 modelos retratados na imagem produzida pelo próprio jornal. Brancos como a longa toalha (de linho?) e a parede ao fundo, eles não aparentavam posar para uma publicação brasileira, mas, quem sabe, européia.
Não havia, à vista, um só descendente de negro. A foto não representa o caldeirão racial do país onde a Folha é editada nem a diversidade dos seus leitores. Tem sido assim há um bom tempo na cobertura de consumo em geral e moda em particular. Ignoro se alguma vez não foi.
A edição de 14 de dezembro da revista Moda, que circulou com o jornal em parte do Brasil, dedicou a capa ao Réveillon. Nela se viram quatro modelos brancos, estrelas de editorial (pelo que entendi, uma espécie de ensaio fotográfico de moda) dirigido por um cineasta a convite da Folha.
Em um ensaio sobre biquínis, maiôs e sungas, os três modelos eram igualmente brancos. Idem a garota que vestiu ‘moda esportiva’. E a top model perfilada. E os atletas e modelos que apareceram em reportagem acerca de ‘estilo esportivo’. A exceção que reafirma a regra se encontrou em outro ensaio de verão, ‘Moda Sport Club’: o modelo futebolista era branco, bem como a ciclista, a tenista e a praticante de ioga -a corredora tinha ascendência africana.
Estava quase sozinha nas páginas, incluindo as de publicidade. Das 22 pessoas dos anúncios, 21 exibiam pele clara. Sobrou uma top paraense em campanha de grife paulistana. A modelo amazônica é das poucas que se vêem sem visual caucasiano.
O fenômeno é mundial. Em outubro, o diário espanhol ‘El País’ denominou-o ‘anômala representação da diversidade racial’.
O jornal citou levantamento sobre os 101 desfiles mais importantes da temporada primavera-verão de 2008. Em 31 deles ‘não havia uma só mulher negra’. Isso em Milão, Paris, Londres e Nova York. Em terra mestiça como o Brasil, fica mais absurdo ainda.
Como a distorção se expressa aqui, a Folha deveria alinhavar reportagens e estimular o debate sobre ela. Lamentável é reproduzir tons monocromáticos nas fotografias que produz.
Ouvi o editor de Moda, Alcino Leite Neto, um dos jornalistas mais talentosos que conheci na Folha.
Sobre a última edição: ‘A revista só conseguiu implementar parcialmente seu objetivo político de expressar nos editoriais toda a gama de etnias do país. Na Moda nº 19 [outubro de 2006] esse objetivo foi melhor alcançado, ao fotografarmos a descendente de japoneses Juliana Imai (uma das raras modelos dessa origem no meio da moda) e três das principais modelos negras em atividade no Brasil à época: Rojane, Carmelita e Akotirenee Juliana’.
‘É algo a ser trabalhado melhor ao longo do próximo ano pela revista, o que não será tarefa fácil. Seria menos complicada se boas modelos de outras raças que não a caucasiana fossem empregadas com mais freqüência pelas agências de modelos e fossem convocadas pelos estilistas, com regularidade e em bom número, para as passarelas. A revista não é um caso isolado.’
Nem novo: em outubro de 2005, o então ombudsman Marcelo Beraba subscrevia anotação de leitor sobre a ausência de afrodescendentes na revista Moda.
2008 renova a chance de mudar. Um bom ano a todos.’
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‘…sem drama e sofrimento’, copyright Folha de S. Paulo, 30/12/07.
‘Imagine o desespero das centenas de pacientes e funcionários que por volta das 22h da segunda-feira, noite de Natal, saíram às carreiras de dois prédios do Hospital das Clínicas depois de um incêndio logo sufocado, mas cuja fumaça provocou pânico.
É tudo o que os leitores puderam fazer após o primeiro dia de relato da Folha, na quarta (a edição da véspera foi concluída antes do episódio): imaginar. Não tiveram a oportunidade de conhecer o drama de quem estava no maior hospital da América Latina.
Em uma edição burocrática e fria, o jornal não publicou o testemunho de quem foi socorrido e de quem socorreu. Não é que não tenha contado bem. Não contou nada. Não se leu o depoimento de ninguém que fugiu do fogo.
As páginas gélidas se desenharam já na primeira, quando o incêndio e suas conseqüências para milhares de pessoas cujo atendimento foi prejudicado não mereceram mais que o título em apenas uma das seis colunas verticais, distante da manchete.
Dentro, não se acompanharam sustos, lágrimas e alívios. Apenas textos pálidos, sem sangue nem alma.
Pedi a palavra da Secretaria de Redação: ‘Houve erro de avaliação do plantonista responsável pela madrugada, que não considerou necessário ir ao local nem avisar as chefias. Isso prejudicou a cobertura’.
Com efeito, chegar tarde ao lugar dos fatos atrapalha o trabalho jornalístico, como evidenciam as fotografias (no fotojornalismo, não há como ‘reconstituir’ cenas a partir da voz de quem as viveu).
Mas o atraso na madrugada não impedia a Folha de, na manhã da terça, constatar que o sofrimento de muita gente fora maior do que a impressão original. Bastava dispor-se a procurar quem tinha o que falar e reconhecer a relevância jornalística das histórias.
Se não desse, que se apurasse à tarde. Ou ainda à noite (a edição São Paulo/DF foi ‘fechada’ à 0h35). Vacilos nos plantões da madrugada acontecem, e nenhum jornalista deixou de cometê-los.
Pior é quando o jornal não se comove com a dor dos que passaram a noite do Natal nas calçadas do HC -e priva seus leitores de conhecê-la.’