Não há dúvidas sobre o talento literário do romancista Cormac McCarthy. Herdeiro da melhor tradição romanesca da América, seu estilo mistura influências de Ernest Hemingway, William Faulkner e Norman Mailer. Contudo, considerar seu romance A Estrada o melhor livro da década parece exagero. Mas foi exatamente isso o que fez a equipe responsável pelo suplemento de literatura do jornal inglês The Times.
Trata-se, de fato, de um excelente romance, mas não é melhor que o anterior do mesmo autor, intitulado Onde os velhos não têm vez e levado ao cinema pelos irmãos Cohen – exibido no Brasil como Onde os fracos não têm vez. Outro dado a se observar é que a presente década ainda não terminou. Precipitar a escolha é ignorar o que ainda pode vir por aí. Afinal, ninguém garante que não serão publicados livros mais contundentes ainda em 2009. Por outro lado, os senhores jurados não leram todas as obras publicadas no mundo desde o ano 2000 – tarefa humanamente impossível.
Divulgada no Brasil pela Folha de S.Paulo, a lista do Times inclui outros nove títulos, entre eles O Código da Vinci, de Dan Brown. Esse aparece em 10° lugar e ainda encabeça a lista dos piores livros da década. Outro exagero do jornal, cujos critérios de julgamento permitem misturar gêneros diferentes para criar conceitos nos quais vigora o ponto de vista de colunistas e críticos supostamente especializados.
O pior da história é que o Times não é o único veículo da imprensa mundial a publicar esse tipo de lista, geralmente baseada em opiniões pessoais nem sempre insuspeitas.
Honestidade e competência
A Estrada é de fato um grande romance e, como tal, é também uma obra de arte literária. Nesse sentido, sua leitura nos remete às grandes questões da condição humana. Diante de uma hecatombe não revelada, pai e filho perambulam numa paisagem inóspita como retirantes do fim do mundo. A atmosfera é de medo e suspense e remete às mudanças climáticas e à possibilidade de um apocalipse nuclear.
Já O Código da Vinci deve ser considerado apenas um livro de entretenimento, escrito com a técnica de redação dos best-sellers depois de muita pesquisa. A polêmica por ele despertada resultou muito mais da visão equivocada de leitores despreparados e do marketing da editora do que propriamente da intenção do autor. O livro é de leitura fácil e despretensiosa. Funciona como um passa-tempo sem maiores consequências.
Em outras palavras, uma obra não tem nada a ver com a outra, a não ser o fato de serem livros de ficção, frutos da criatividade e da imaginação de seus respectivos autores. São modelos diversos de literatura e em momento algum apresentam semelhanças técnicas ou estilísticas que lhes permitam algum tipo de comparação.
Tanto isso é verdade que parece natural gostar de um e odiar o outro simplesmente por representarem dois extremos no ofício da ficção. Em termos gastronômicos, seria o mesmo se comparássemos feijoada e caviar. No entanto, devemos reconhecer que, em ambos os casos, os autores atingiram seus objetivos com a devida honestidade e muita competência.
Interesses, modismos e preconceito
Em todo fim de ciclo ocorre a mesma coisa. Por falta de criatividade, jornais, revistas e sites especializados publicam pelo mundo afora suas polêmicas listas de melhores e piores. Influenciada pela imprensa estrangeira, a mídia brasileira também comete a veleidade de dar o veredicto sem que seus colunistas jamais tenham lido todos os livros disponíveis no mercado. Agem movidos pelo gosto pessoal ou pelo interesse comercial da casa, como se a opinião de meia-dúzia de pretensos especialistas pudesse de fato influenciar o gosto dos leitores ou refletir a suprema verdade.
Se assim fosse, Paulo Coelho não seria hoje um dos maiores vendedores de livros do mundo. Sua literatura não tem a genialidade de Cormac McCarthy e tampouco se beneficia da técnica de Dan Brown. Apesar disso, mesmo sendo massacrado ou solenemente ignorado pelos críticos de plantão, o ‘mago’ brasileiro agrada a leitores em diversos países. A qualidade de sua obra, no entanto, só será honestamente julgada pela posteridade.
Dar o veredicto final sobre uma obra em seu próprio tempo é sempre temerário. Tudo parece suspeito, pois geralmente os critérios de escolha dos melhores e piores adotados pela imprensa obedecem a interesses comerciais, a modismos passageiros, ao mero preconceito ou simplesmente à opinião pessoal dos resenhistas. Mesmo o Prêmio Nobel já não tem mais o peso do passado. Algum leitor saberia dizer de cor o nome dos cinco últimos contemplados?
‘Destaques’ são preteridos
Um livro, quando é bom, sobrevive ao tempo e à sombra do autor. É o caso de clássicos como Dom Quixote, Moby Dick, Crime e Castigo, Metamorfose, O Aleph, Memórias Póstumas de Brás Cubas e Grande Sertão: Veredas. Quanto mais o tempo passa, mais eles se firmam como obras-primas de valor inquestionável e acima de suspeitas.
Em vez de divulgar livros de diferentes gêneros e fazer pesquisas para saber o que os leitores andam de fato lendo, gostando e compreendendo, a imprensa geralmente se satisfaz com a publicação do parecer de colaboradores tidos como especialistas. Basta lembrar que Diogo Mainardi começou na Veja como crítico literário, falando mal de autores como Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e Jorge Amado. Como ficou evidente que ele não entendia do assunto, colocaram-no para falar mal do Lula, o que não exige nenhum conhecimento teórico.
As poucas críticas publicadas raramente buscam analisar a obra em questão. Trazem mais adjetivos que substância. Do alto da prepotência e muitas vezes incapazes de escrever um simples soneto – ou mesmo um conto de poucas linhas –, profissionais da opinião analisam a arte alheia como galinhas catando milho no teclado do computador.
Em vez de escolher e divulgar os ‘destaques’ do ano, da década ou do século, jornais, revistas e sites especializados insistem na desgastada fórmula competitiva de indicar os ‘melhores’ e os ‘piores’. Agem como se a opinião dos leitores não representasse nada e as preferências de críticos e resenhistas resumissem tudo.
******
Jornalista e escritor, Belo Horizonte, MG