Em sua primeira incursão no gênero, o chamado romance histórico, o publisher e editor da revista Varig, Roberto Muylaert, poderia ser enquadrado, preguiça crítica ou mania classificatória à parte, numa tendência recente na literatura brasileira – a dos jornalistas convertidos, com respeitável sucesso de público e crítica, em biógrafos e historiadores. Além dos já consagrados Ruy Castro, Fernando Morais, Jorge Caldeira e Dênis de Moraes, na área da biografia, e de Eduardo Bueno, o ‘Peninha’, e sua série de livros sobre os tempos coloniais, há pouco revelou-se também Laurentino Gomes, com seu ótimo 1808.
Muylaert, contudo, engenheiro de formação, acrescenta um saboroso algo mais ao gênero, recurso que lhe permite, apoiado numa pesquisa meticulosa, e contando muito bem uma história, fazer impressionantes descrições técnicas do interior, claustrofóbico e opressivo, de um submarino, do funcionamento macabro das câmaras de gás nazistas, de um trambolho grotesco e ineficaz chamado gasogênio.
Com base num texto claro e fluente, o autor desfia episódios da Segunda Guerra Mundial com repercussão no Brasil; amplia e refina uma estrutura narrativa e de linguagem, como no pungente relato biográfico do goleiro Barbosa, inerte, paralisado, vencido por um leve toque de bola do meia-esquerda Gigghia, no segundo gol uruguaio na final da Copa do Mundo – e a conseqüente e funda tragédia nacional de 16 de julho de 1950.
Lembranças do gasogênio
Assim, de novo, ele não se acomoda num ritmo linear, preferindo trabalhar de forma fragmentada, entremeada com capítulos (e trechos) de enorme fôlego, nos quais a pontuação pouca falta faz, só atrapalharia. O narrador, lúcido aos 79 anos, é quem conduz o fio da trama.
Com essa estrutura solta e ao mesmo tempo trepidante, conta a história de como, em 1942, um submarino nazista, o U-199, chega à Praia Grande (SP) em busca de uma boa cachaça, louca idéia de um jovem tripulante brasileiro de Blumenau que está a bordo.
Da Praia Grande, onde encontra uma única construção, um certo Hotel dos Alemães, ele começa uma trajetória cheia de aventuras e tropeços: na tentativa de voltar ao submarino, o brasileiro Werner Hoodhart, filho de pai alemão, conhece e anda pela São Paulo dos anos 1940, faz uma rápida incursão ao Rio de Janeiro, ali se envolve fugazmente com uma espiã nazista que opera dentro do próprio Palácio do Catete onde Getúlio Vargas reina escoltado pela sombra de Gregório Fortunato, o famoso e temido ‘Anjo Negro’, e, finalmente, regressa ao mar para presenciar, consternado, da praia, o terrível destino do seu submarino.
Da São Paulo dos anos 1940, Muylaert parece lançar mão de suas próprias lembranças de garoto paulistano, intrigado, entre outras coisas, com o tal do gasogênio – feia geringonça colocada na parte de trás dos carros, movido a carvão de churrasco, para economizar gasolina em tempos de guerra, mas que sujava, poluía e exigia que o coitado do motorista carregasse ‘sacos de carvão, grelhas, filtros, ventoinhas, tudo sob densa poeira negra’.
Frota de carrões
Instruído por alguém, o jovem vai tocar a campainha de um casarão da Rua Estados Unidos, no então nascente Jardim América. Os donos da casa, que o acolhem, se locomovem a bordo de um Chevrolet 1939, tomando, dentro de casa, os cuidados necessários – luzes apagadas – diante dos temores de bombardeios noturnos.
Fala-se então das agruras da cidade nesse clima, numa época em que a metrópole deslanchava seu crescimento urbano. Agruras, bem entendido, para os menos favorecidos, que não conseguiam farinha branca nas vendas e mercados, sendo obrigados a engolir outra, escura, com que se fazia ‘um pão preto e duro, com gosto ruim’.
Enquanto isso, a alta burguesia da cidade, já concentrada na região da Avenida Paulista, preocupada com seu gordo patrimônio, escondia em garagens palacianas sua frota de carrões – Packards, Cadilacs, Hudsons, Lincolns, Oldsmobiles, Chryslers, Dodges, bem cuidados pelos motoristas ociosos, que, flanelinhas em punho, tiravam brilho da fina lataria importada.
Hitler e o charlatão
Mas o melhor do livro o autor reserva para o final, quando oferece algumas histórias mais compactas, ‘coisas interessantes’ da Segunda Guerra Mundial, lembradas pelo próprio herói, o catarinense Werner, agora um velho marinheiro, recurso que confere ao livro mais força dramática.
Incluído nesse pacote, vai também algum eventual mal-estar por parte de leitores mais jovens, pouco familiarizados com a cruel, obscena, medonha ‘solução final’, o extermínio dos judeus nos campos de concentração, enquanto, em seu bunker em Berlim, o Führer, acometido de patéticos achaques físicos, era mimado por seus aspones mais devotados.
Assim, ficamos sabendo, o médico pessoal de Hitler, um tal de dr. Morell, administrou ao seu paciente, um hipocondríaco de carteirinha, entre 1941 e 1945, 80 remédios diferentes, incluindo, em 1944, uma falsa penicilina.
Werner então pondera ao seu interlocutor, com uma perplexidade meio ingênua que levaria a muitas outras reflexões e indagações ao longo da história recente do mundo: ‘Como uma pessoa tão poderosa, responsável por uma guerra em que morreram 60 milhões de pessoas, era capaz de se entregar, de forma ingênua, sem reservas, a alguém que seria classificado de charlatão, por qualquer pessoa com um mínimo de equilíbrio e sensatez?’
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Jornalista e escritor