Eis um livro para todos, não apenas para quem aprecia as coisas literárias: Minhas Memórias de Escritores, de Salim Miguel, a mais reluzente estrela das constelações culturais de Santa Catarina, não apenas de sua literatura.
Nascido no Líbano, filho de um professor primário, Salim Miguel foi alfabetizado em alemão na pequena Biguaçu, região metropolitana de Florianópolis, e é um dos mais importantes escritores brasileiros, já reconhecido pelos mais de trinta livros publicados e por alguns dos mais prestigiosos prêmios nacionais, como o Juca Pato de Intelectual do Ano (2002), concedido pela União Brasileira de Escritores e o jornal Folha de S.Paulo.
Minhas Memórias de Escritores tem prefácio de Cícero Sandroni, atual presidente da Academia Brasileira de Letras. Ele lembra que o crítico Fausto Cunha comparou a obra de Salim Miguel à de William Faulkner. E destaca o trabalho da esposa do escritor, também escritora: ‘Seria Salim Miguel o que é e representa sem Eglê Malheiros? Não’, pois ela ‘se olha no espelho e se diz: há aí um outro. E este outro é Salim Miguel’.
Influenciado pelo batente no jornal, o escritor sempre procurou ser entendido pelos leitores, com os quais estabelece de chofre uma empatia, em qualquer texto.
A batalha que não houve
Ao falar de Biguaçu ou de Florianópolis, ele revela, às vezes apenas em indícios, que é um cidadão do mundo, um de nossos escritores mais cosmopolitas, entretanto sem perder o porto seguro de referências de Santa Catarina, onde passou sua infância e onde vive seu outono, na casa dos oitenta, já que nasceu em 1924.
Boa parte do livro é dedicada à entrevista que fez com outro escritor catarinense, Guido Wilmar Sassi, autor do romance A Geração do Deserto, transposto para o cinema pelo também catarinense Sylvio Back com o título de A Guerra dos Pelados. Catarinenses se ocupando de catarinenses, ‘cousa é que admira e consterna’, diria Machado de Assis, cujo centenário de morte propicia evocações muito pertinentes, salpicadas no livro, a começar pela capa. Catarinenses ocupando-se de catarinenses não é a norma, não. É a mais pura das exceções, pois em geral não vemos o vizinho!
Naturalmente, Salim Miguel não usa critérios geográficos para examinar os tempos idos e vividos. Usa o da qualidade. E com ele chega, por exemplo, ao gaúcho Apparicio Torelly, o Barão de Itararé, o Brando. O título, autoconcedido pelo próprio humorista, foi inspirado na batalha que não houve, mas foi anunciada, na Revolução de 1930.
Curiosidades e revelações
Lembra Salim Miguel que Itararé ‘se pensara Duque, mas sua modéstia o impedira’. Recorda também comovente passagem de Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, dando conta das invenções do humorista ‘tentando melhorar o ânimo dos deprimidos, ali confinados sem saber o futuro que os esperava’. E registra algumas máximas por ele deixadas, como essas três: ‘Queres conhecer o Inácio, coloca-o num palácio.’ ‘O homem que se vende recebe sempre mais do que vale.’ ‘Pobre quando tira a mão do bolso, tira só cinco dedos.’
Entrevistando Marques Rebelo, pergunta-lhe: ‘Quais os dez melhores escritores brasileiros?’. E ouve em resposta: ‘Só existem dois, eu e o Graciliano Ramos’. Aliás, Marques Rebelo fez um programa de leitura com cem escritores, ‘os cem de Rebelo’. Nenhum poeta na lista, que tem onze livros: cinco de Machado de Assis e um de cada para Manuel Antonio de Almeida, Raul Pompéia, Lima Barreto, Oswald de Andrade, Cornélio Penna e José Cândido de Carvalho.
Esse livro instigante mistura curiosidades esclarecedoras com revelações inéditas acerca de autores e livros. Quem navega na galáxia Gutenberg, não perde seu tempo em fazer uma escala no planeta Salim Miguel.
******
Doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é vice-reitor de Cultura e coordenador de Letras; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e A Língua Nossa de Cada Dia (ambos da ed. Novo Século); www.deonisio.com.br